4 de maio de 2016

Conceitos básicos de Física Quântica VIII

Imagem de uma chama de um fósforo. 
Esse fenômeno extremamente vulgar e macroscópico 
tem sua explicação na Física Quântica.
É comum ouvir relatos de que a física quântica (FQ) foi feita para explicar fenômenos microscópicos e está cercada de mistérios.  Por exemplo, Hélio Schwartsman publicou recentemente (1):
Quando alguém apela a efeitos quânticos para explicar qualquer fenômeno em escala um pouco maior do que a de partículas subatômicas, são grandes as chances de que estejamos diante de um picareta "new age".
Isso é, entretanto, uma afirmação equivocada.

É verdade que existem ainda questões relacionadas a interpretações mais profundas dos fundamentos da FQ. É também verdade, conforme discutimos em posts anteriores (2), que existem fenômenos quânticos que não possuem equivalentes em nosso mundo "clássico". Talvez o formalismo quântico não ajude muito a tirar esse impressão porque as relações entre grandezas na FQ exigem tratamento em espaços matemáticos diferentes daqueles da chamada "Física Clássica". Porém, no nosso entendimento, o problema é pouco motivado por esses mistérios, mas sim por uma visão de mundo simplificada, em que tudo o que é "observável" (3) é considerado "ordinário" e o que não é "misterioso". 

O macroscópico é ordinário, o microscópio é misterioso

Em suma: tudo aquilo que consigo ver, tocar, cheirar etc, e que está sob a classificação de "fenômeno macroscópico", é considerado da alçada das explicações comuns. Isso está bastante difundido em textos populares que tentam explicar física quântica, inclusive na avaliação de Hélio Schwartzman. O que não é visível ou detectável não existe, é mistério ou é assunto para mentes privilegiadas. De acordo com esse raciocínio, a FQ seria aplicada apenas ao que não se vê, como é o caso de átomos ou partículas subatômicas, pequenas demais para serem detectadas pelos sentidos humanos.

Mas, na verdade, isso esconde dificuldades ainda maiores no processo de explicação na ciência. A base da explicação em qualquer ciência não necessariamente envolve aquilo que se vê, porque devemos separar as causas das consequências. Assim, em muitos fenômenos ordinários os efeitos são visíveis, mas as causas não são. Do contrário, crê-se que, para que haja explicação, as causas devem estar igualmente acessíveis, o que raramente é o caso. Exemplos não faltam:
  • Em genética: os efeitos das anomalias, doenças e outras disconformidades observadas facilmente por exame de seres orgânicos está, muitas vezes, nos genes, que são causas inacessíveis diretamente;
  • Em física: a temperatura dos corpos (que podemos sentir por toque) está relacionada à velocidade de partículas minúsculas que compõem o material que são causas inacessíveis diretamente;
  • Na medicina: a temperatura e os sintomas dos pacientes acometidos por uma doença podem ser causados pela influência de minúsculos organismos (bactérias ou vírus) que são inacessíveis diretamente (3b);
  • Em geologia: a explosão de lava observada em vulcões se deve à movimentação oculta de magma nas profundezas da terra, que são inobserváveis. 
É quase que uma regra geral na ciência que causas sejam sempre ocultas, não diretamente observáveis ou apenas inferidas indiretamente por meio de outras medidas, frequentemente envolvendo complexas teorias e relações causais. Isso também é verdade para a FQ.

Já discutimos aqui e em outros trabalhos os diversos níveis de explicação que os fenômenos estão sujeitos. Explicações ordinárias frequentemente envolvem causas simples. Assim, se ocorre um problema no meu carro e acho que pode ser por "superaquecimento da água no radiador", a causa aventada é um evento observável (água aquecida). Em ciência, a maior parte das explicações não são desse tipo. Elas envolvem descer até outras causas, ainda mais fundamentais, que devem ser inferidas indiretamente (3).

A Física Quântica e o problema da consciência.

Como a manifestação da consciência é considerada uma coisa "misteriosa", então somente a FQ, um mistério igual, talvez forneça alguma explicação para a mente. Essa é a linha de raciocínio seguida por uma imensa literatura - frequentemente bastante entusiasta (4) - que busca aplicar conceitos, noções e resultados da FQ em problemas da mente. É uma linha aparentemente natural de inquérito, já que a FQ é uma teoria extremamente bem sucedida (paradigma científico), que fornece explicações para uma ampla classe de fenômenos materiais. Não seria natural que ela também explicasse a mente?

Uma lista de fenômenos macroscópicos (ver abaixo) com causas quânticas (ou seja, explicados pela FQ) pode ser levantada como uma excelente motivação para a crença da generalidade da FQ em contraposição ao que clama o autor da referência (1). Assim, não duvidamos que exista um fundamento microscópio para a movimentação de matéria no cérebro associada aos fenômenos da consciência. Acreditamos ser até mesmo trivialmente verdade que a FQ tenha um papel importante a desempenhar no sistema nervoso, ainda que muitos neurocientistas, por falta de conhecimento no assunto, continuem a propor explicações que dispensem a FQ. Mas, com o desenvolvimento normal da ciência, acreditamos que FQ eventualmente fará parte do currículo de cursos de biologia (5), uma vez que seus fundamentos subsidiam a compreensão de inúmeros fenômenos físicos ordinários.

Porém, isso é bastante diferente de se afirmar que a FQ irá solucionar o problema da consciência. Aqui há dois pontos de vista que vale a pena detalhar:
  1. A noção de que a FQ é importante, que tem uma lógica diferente da ordinária, que não está naturalmente integrada ao senso comum e que não dispõe ainda de uma interpretação absolutamente consensual sobre seus princípios pode despertar nos neurocientistas a ideia de que a consciência necessite de outra abordagem, de um tratamento especial, que não se beneficie tanto de paralelos "clássicos" ou que novas técnicas de medida sejam necessárias para a exploração dos fenômenos da consciência;
  2. A assunção direta de que a FQ seja responsável pela consciência, atropela o debate sobre as diferenças marcantes entre aspectos da matéria e aqueles associadas à "coisa pensante", resultando em uma extrapolação sem bases suficientes em nosso conhecimento presente.   
Um materialismo travestido

A afirmação de que a FQ é responsável pela consciência é uma forma de materialismo que não é considerada de forma correta por espiritualistas que defendem explicações quânticas da consciência como uma maneira de se libertar do materialismo.

De fato, ao se propor que a mente é quântica não se pode deixar de atribuir aos átomos - que têm reconhecidamente natureza quântica - a causa última de sua manifestação. De outra forma, a física quântica apenas introduz uma lógica diferente, onde a incerteza é incorporada nas relações entre seus elementos (função de onda) que se reduzem, quando analisados de forma isolada, a entidades sem nenhum dos atributos reconhecidos publicamente como característicos da mente. Em suma:  o uso puro e simples da FQ no tratamento aparente do problema de consciência, em que pese o formalismo extravagante que introduz, pouco ou nada contribuirá fundamentalmente para o problema da consciência, a menos que se considere essa uma entidade separada do cérebro por princípio, conforme descrevem algumas interpretações quânticas do famoso "problema da medida".

Assim, embora seja bastante comum que espiritualistas defendam abertamente a FQ e sua relação com a mente, não se pode deixar de notar os grandes obstáculos à implementação prática dessa relação e até mesmo as consequências negativas para o desenvolvimento do dualismo. E, retornando ao assunto inicial desse post, propostas de teorias sobre o problema da mente ou da consciência de novo terão que enfrentar um fenômeno cuja causa não é observável, embora os efeitos o sejam. Mas, continuarão céticos a negar a existência do problema ?

Lista de fenômenos ordinários que são explicados pela Física Quântica

A lista abaixo é uma pequena compilação que está longe de ser completa. Explicar como cada um desses fenômenos ocorre obviamente não caberia no espaço deste blog. O leitor deve entender que as causas desses fenômenos caem na classificação de entidades não observáveis. A FQ explica como essas entidades se relacionam (como elas interagem) e criam as impressões que são, por sua vez, observáveis. Assim, por exemplo, a relação entre a temperatura e a cor de uma estrela (que são observáveis) está ligada à estrutura de distribuição de energia das partículas ou átomos que geram a luz. Para uma referência adicional a essa fenomenologia ver (6). 

Astrofísica
  1. Propriedades de estrelas de nêutrons e anãs-brancas;
  2. O funcionamento das estrelas (cor, brilho, dimensão, evolução e idade etc);
Fenômenos luminosos
  1. Cor dos objetos;
  2. Emissão de luz das chamas;
  3. Mudança de cor de reagentes em reações químicas;
  4. Transparência de materiais;
  5. A curva de luz do corpo negro;
Eletricidade e magnetismo
  1. O comportamento de condutores elétricos, isolantes, semicondutores;
  2. O transistor;
Fenômenos térmicos e fluídicos
  1. A supercondutividade elétrica de materiais a baixas temperaturas;
  2. A superfluidez de materiais a baixas temperaturas;
Química
  1. A razão da matéria ordinária (atômica) ser estável;
  2. A estrutura da tabela periódica;
  3. As ligações químicas;
Energia
  1. Tempo de vida de substâncias radioativas;
  2. Reações nucleares;
  3. Usinas atômicas;
Biologia
  1. A eficiência energética da foto síntese (5)
Referências e notas

Agradeço ao Alexandre Caroli pela referência e citação de (1).

1)  H. Schwartsmann. "Mente quântica". Acesso em Fevereiro de 21016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/02/1737578-mente-quantica.shtml


3) As inferências envolvem, inclusive, a busca por fenômenos diversos que comprovariam o efeito das causas admitidas;

3b) É verdade que foram desenvolvidos mecanismos ou equipamentos que permitem observar o que não pode ser acessado diretamente pelos sentidos. Mas, aqui, o leitor deve atentar para a arapuca lógica que dispensa a noção de que o funcionamento desses equipamentos exigem a crença em muitas explicações ou teorias. Portanto, esse estado aumentado de observação, embora utilize os sentidos, não dispensa a crença, o que torna inviável a fundamentação de nosso conhecimento exclusivamente nos sentidos humanos.

4) O próprio Helio Schwartsman cita o texto de Wendt, A. (2015), Quantum mind and social science, Cambridge University Press, como "uma obra séria que trata de ontologia sem recorrer a deuses". Outras referências são:
  • Mindell, A. (2012). Quantum mind: The edge between physics and psychology. Deep Democracy Exchange.
  • Lockwood, M. (1989). Mind, brain and the quantum: The compound'I.'. Basil Blackwell.
  • Penrose, R. (1994). Shadows of the Mind (Vol. 4). Oxford: Oxford University Press.
  • Stapp, H. P. (2004). Mind, matter, and quantum mechanics (pp. 81-118). Springer Berlin Heidelberg.
  • Clayton, P. (2004). Mind and emergence: From quantum to consciousness.
  • Stapp, H. P. (2001). Quantum theory and the role of mind in nature. Foundations of Physics, 31(10), 1465-1499.
  • Goswami, A. (1990). Consciousness in quantum physics and the mind-body problem. Journal of Mind and Behavior.
  • Woolf, N. J., & Hameroff, S. R. (2001). A quantum approach to visual consciousness. Trends in cognitive sciences, 5(11), 472-478.
  • Bass, L. (1975). A quantum mechanical mind-body interaction. Foundations of Physics, 5(1), 159-172.
A principal revista que explora essa abordagem é a Neuroquantology (acesso em fevereiro de 2016). 

5) Quantum mechanics explains efficiency of photosynthesis. Ver http://phys.org/news/2014-01-quantum-mechanics-efficiency-photosynthesis.html (acesso em março de 2016)

6) R. Healey. How Quantum Theory Helps us Explain. Disponível em: http://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1110/1110.6554.pdf. Acesso em Fevereiro de 2016.

2 de abril de 2016

Ruprecht Schulz: estranho caso de uma suposta "reencarnação"

Seria isto um porco voador?
Pesquisas em reencarnação são ainda consideradas "temas tabus" entre as linhas acadêmicas, justamente por implicarem em algo que não está de acordo com o consenso geral sobre o ser humano e sua existência no mundo, uma criatura que fatalmente morre e aparentemente desaparece. As diversas áreas da ciência não preveem nenhum objeto de estudo onde se possa incorporar o assunto "reencarnação", logo a imensa maioria dos acadêmicos torce o nariz para algo que identificam como não "científico" e que lhes parece uma ideia excêntrica.

Não se admira assim que relatos e evidências de reencarnação caiam na categoria de "anomalias". Mas, não é uma tarefa simples separar o "joio do trigo" em se tratando de qualquer anomalia, o que se aplica obviamente à reencarnação.  Há casos descritos como anomalias que são prejudiciais a própria tese, por se apresentarem como "anomalias dentro de anomalias". Naturalmente, essas ocorrência animam céticos que rapidamente "throw the baby out with the bathwater" (1) e invalidam toda a tese com base em alguns casos mais que suspeitos.

Evidências sobre reencarnação como anomalia têm origem em duas fontes principais: i) informes de crianças que se lembram de vidas anteriores e ii) relatos de memórias via regressão hipnótica. Se o primeiro caso é considerado bastante forte pelo caráter "acima de qualquer suspeita" dos relatos infantis, o mesmo não se pode dizer do segundo, onde a total inexistência de uma "teoria da mente" dificulta separar lembranças de sonhos de eventuais memórias anteriores, inviabilizando a aceitação das descrições. Além disso, ocasionalmente, existem relatos excepcionais de adultos que dizem se recordar de vidas anteriores mesmo em estado de vigília, isto é, sem nenhum apelo ao hipnotismo ou sonhos.

Tudo isso indica que é preciso redobrado cuidado por parte daqueles que pretendem "provar" a tese da reencarnação - ou extrair regras para seu mecanismo - com base na busca exaustiva e empilhamento sistemático de casos. Em particular, salta aos olhos a necessidade de se estabelecer métodos de pesquisa apropriados, de examinar se os dados obtidos são confiáveis e sobre a consistência metodológica aplicada à pesquisa. Mais ainda, partindo-se de uma contexto ateórico (ou seja, sem a orientação de uma teoria), é provável que evidências sejam mal interpretadas, uma vez que já se mostrou há muito que uma evidência é contaminada pela visão que se tem de seu contexto (2).

O cenário é bastante complicado porque, como dissemos, inexiste uma "teoria da mente" que permita estabelecer claramente as origens e as consequências para eventos mentais com base em evidências colhidas de memórias de longo prazo sequer dentro de uma existência, quem dirá entre existências.

O caso Ruprecht Schulz (RS)

Os pesquisadores de reencarnação mais conhecidos na atualidade são I. Stevenson (1918-2007) e Jim Tucker (ver nosso post sobre ele aqui). Entre as inúmeras evidências estudadas por Stevenson, o livro "Casos Europeus" (3) descreve ocorrências tiradas de relatos não orientais, numa tentativa por Stevenson de mostrar que a reencarnação é um fenômeno "universal" (4).

Em particular, nessa obra existe um caso que exorbita dos relatos quase uniformes de crianças que se lembram de vidas anteriores. Trata-se do "caso Ruprecht Schulz" (ver também 5) que está longamente descrito no livro. Aqui apresentamos um resumo por simplicidade e destacamos os prontos problemáticos do caso.
Ruprecht Schulz, nascido em Berlim, a 19/10/1887, comerciante, declarou a I. Stevenson, em entrevista feita em agosto de 1960, ter tido memórias (ver abaixo) de uma vida pregressa por volta do início da década de 1940 (início da II Guerra Mundial). Nessa descrição, via-se como um rico comerciante, ligado a atividades portuárias, que cometeu suicídio. A força dessas lembranças fez RS escrever a diversas cidades portuárias da Alemanha, a partir de julho de 1952. Uma resposta veio da cidade de Wilhelmshaven afirmando ter sido palco do suicídio de um tal Helmut Kohler (HK), corretor marítimo, em 23/11/1887. Segundo informações colidas por RS com parentes de HK, este teria se suicidado depois de se ver em condições econômicas difíceis e de ter sido roubado por um funcionário mais próximo que fugiu para os Estados Unidos. 
As informações tabuladas por Stevenson nas páginas 272-274 de (3) são parte de um relatório construído parcialmente com as informações que RS conseguiu de Wilhelmshaven, quando ele já estava com mais de 50 anos de idade. O que chama a atenção no caso RS é a inconsistência entre a data do suicídio de HK e o nascimento de RS, indicando uma aparente violação da relação "causa efeito" - a personalidade anterior ainda estava encarnada quando seu novo corpo já vivia em outro lugar.

Natureza peculiar das "memórias" de RS.

Longe do problema das datas, o que mais me chamou a atenção no caso RS é o caráter muito especial de suas memórias. O que se espera de alguém que se lembre de sua vida passada? Que suas memórias - se se referem realmente a algo experimentado - acompanhem o sujeito e não dependam de onde ele se encontra. Mas isso não aconteceu com RS.

Antes, porém, consideremos como RS descreve suas "memórias". Na p. 266, no final de sua descrição de como teria se vestido e se matado ele afirma:
"Podem chamar essas imagens de clarividência, mas para mim elas são lembranças". (grifos nossos)
RS parece confundir lembranças com visão de imagens pois, no meio da descrição declara:
"O sentimento foi ficando mais forte e então - não em um transe ou estado de sono - como algo quase visível aos olhos, pude me observar como eu naquela época." (grifos meus)
Tomando com base que ele não tenha inventado nada, sua descrição aparentemente em terceira pessoa não deixa dúvidas que ele teve uma "visão". E mais ainda, essa visão apenas ocorria se ele estivesse em contato com determinado ambiente. Conforme atestam as anotações de I. Stevenson sobre as memórias de RS, em 2 de maio de 1964 (p. 266 e 267):
"Ele nunca as tinha a não ser quando estava no escritório durante o seu turno aos domingos. Estava completamente acordado nessas vezes. Ele experimentou novamente as emoções da situação lembrada e viu as lembranças como uma imagem interior, não como uma visão projetada." (Grifos meus)
Depois enfatizar que RS não estaria em um estado "alterado" de consciência, Stevenson parece ter "reinterpretado" a descrição ao anotar que o sujeito "via lembranças como uma imagem interior" (admitindo nenhum erro de tradução em relação ao original). Esse ponto é de fundamental importância, pois fica clara aqui o papel das ideias preconcebidas do pesquisador. Por que é importante afirmar que RS teve as "lembranças" em estado de vigília? A razão é simples: Stevenson (e provavelmente RS) acreditava que lembranças comuns só podem ocorrer se o sujeito não estiver em "estado alterado de consciência" (leia-se, "mediunidade" ou "hipnotismo").

Mas seria esse o caso? O Espiritismo abre um leque grande de possibilidades. Primeiro porque não se pode afirmar absolutamente o caráter "normal" da consciência de RS uma vez excitada por certos detalhes do ambiente.  Ao contrário, o fato do "fenômeno" apenas ocorrer quando em contato com certo objetos, cria fortemente a impressão de mudança desse estado. Depois porque acessar as lembranças como algo "quase visível aos olhos" permite inúmeras interpretações dentro da fenomenologia mediúnica. Finalmente, a exigência de "estado alterado" não é condição sequer necessária para a mediunidade ou "obtenção de informação anômala". Em "O Livro dos Médiuns", II Parte, Capítulo 15, Parágrafo 182, "Médiuns inspirados", podemos ler:
Todo aquele que, tanto no estado normal, como no de êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações estranhas às suas idéias preconcebidas, pode ser incluído na categoria dos médiuns inspirados. Estes, como se vê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva, com a diferença de que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao inspirado, ainda é mais difícil distinguir o pensamento próprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é o que, sobretudo, caracteriza o pensamento deste último gênero. (grifos nossos)
São registradas descrições de "sensitivos", com variados graus de faculdade, que podem "ver imagens" ao contato com objetos, inclusive tendo sensações relacionadas aos envolvidos na "cena" (o que implica em algum grau de "psicometria"). Contra isso seria possível antepor o argumento de que RS não era médium ou não teria manifestado nenhum tipo de mediunidade em sua vida (o que também é avançado por Stevenson). Mas isso se fundamenta exclusivamente na palavra do sujeito como o próprio Stevenson reconhece (ver abaixo). Ou de outra forma, é possível que RS tivesse tido outras experiências "anômalas" em sua vida, mas deixou-se influenciar por aquela que mais lhe atraiu dentro de sua crença em reencarnação.

De qualquer forma, estamos diante de um problema metodológico que depende da existência de outra teoria sobre memórias e visões. Stevenson desprezou certos detalhes que a ele não pareciam relevantes, mas que, na verdade, são cruciais para determina a "origem" das informações.

Inconsistências em algumas afirmações

Parece que Stevenson deixou de considerar a consistência entre os relatos dispersos como declarados por RS. Por exemplo, na p. 265 de (3, edição em Português), podemos ler a declaração dada por RS a Stevenson em 1960:
"As memórias começaram a surgir para mim na época dos ataques de bombardeios em Berlim durante a guerra."
De acordo com Stevenson, RS cita a data de 1942, quando ele estaria com mais de 50 anos. Porém, na p. 268 da mesma referência, há a citação de uma carta de RS ao filho de Kohler (datada de 1952), dizendo que suas lembranças começaram na infância, "desde muito novo". Qual das versões corresponde ao que teria acontecido?

Com relação às memórias alegadamente atribuídas à infância, elas podem ter sido criadas à posteriori, depois que RS se convenceu que era mesmo a reencarnação de HK. Por exemplo, sobre a cidade de sua alegada desencarnação, RS afirma na carta "me pareceu mais tarde e mais claramente, que essa cidade era Wilhelmshaven" (ainda na p. 268). Só que, segundo Stevenson (conforme está na p. 263), ele apenas tivera a impressão de que sua suposta vida anterior teria sido em "uma pequena cidade portuária", tendo escrito para várias cidades (existiam poucas "pequenas cidades portuárias" na Alemanha no final do Século XIX, e teria sido óbvio incluir Wilhelmshaven). De qualquer forma, o caso RS, no quesito "memória", é muito diferente se comparado a outros estudados por Stevenson.
Wilhelmshaven, cidade da suposta vida anterior de RS. Nela, RS afirmou ter "reconhecido" prédios (de sua vida no Séc. XIX), mesmo tendo sido destruída na II Guerra Mundial. 
Outra afirmações de RS aceitas sem contestação por Stevenson é o "reconhecimento" de prédios em Wilhemlshaven:
Em outubro de 1956, Ruprecht e Emma Schulz foram até Wilhelmshaven, onde se encontraram com Ludwig Kohler. A cidade tinha sido muito danificada pelos bombardeios durante a então recente guerra. Ruprect acreditou reconhecer a Prefeitura e um antigo arco. 
Sem que se garanta que as construções "reconhecidas" por RS tenham sido reconstruídas, é difícil acreditar que isso pudesse acontecer com um cenário que foi destruído com a guerra. Com relação ao seu comportamento "ex suicida" de infância, o caso se contamina pela ausência de "comprovações" (como Stevenson tipicamente insiste em outros casos) por parte de terceiros já que, segundo o pesquisador (p. 277):
"Ruprecht permanece quase que totalmente o único informante das declarações antes de elas serem confirmadas" (grifos nossos).   
O problema da quebra da relação "causa-efeito"

No nosso entendimento, o problema teórico mais grave levantado pelo caso RS é a aparente quebra de causalidade no relaxamento da relação entre Espírito e seu corpo por uma questão de problema de data. Vê-se que essas extrapolações levam a imaginar que um Espírito possa reencarnar nos moldes de uma "possessão", depois que seu outro corpo já esteja formado e vivo.  Existem três caminhos ilógicos possíveis :
  1. Aceitar isso como uma possibilidade "de fato", o que implica em acreditar em que até o momento da "possessão", o corpo existente tenha vida meramente material ou;
  2. Imaginar algum cenário mais exótico (e, por isso, esdrúxulo) de "quebra de causalidade" (tipo "viagem no tempo"). Incluo essa consideração aqui, pois acho difícil que alguém não tente "salvar as aparências" com explicações desse tipo.
  3. "Divisão do Espírito" (conforme se acredita na ref. 5). Durante as cinco semanas que separam o nascimento de RS e a desencarnação de HK, o Espírito de HK estaria ao mesmo tempo reencarnado em dois corpos (!)
Então, o preço a se pagar por aceitar o caso RS como reencarnação é relaxar a coerência e lógica da ideia das vidas sucessivas, com prejuízo grande para toda a tese e reforço considerável das explicações céticas. Seria realmente esse o caso?

Nossas conclusões
  1. Tão só com base nos relatos levantados por I. Stevenson, não é possível afirmar a identificação de HK como a reencarnação anterior de RS;
  2. Isso é, de fato, manifestado por Stevenson, que classifica seus casos como "sugestivos", dentro de sua prudência acadêmica;
  3. Ao contrário, a impressão que temos é de 'algo faltando' no caso, possivelmente associado às alegadas "memórias" de RS que mais se parecem com "visões";
  4. O maior problema do caso RS é a caracterização de suas "memórias". Por dependerem de um "lugar" e "horário", é provável que estejam associadas à informação externa que lhe foi passada por outro agente "psíquico";
  5. É provável que o caso RS tenha sido interpretado forçadamente por Stevenson como de reencarnação. Stevenson chega a falar em um dos mais "fortes" que investigou, a despeito da marcante diferença na maneira como as "evidências" foram obtidas, na inconsistência nas datas e do tipo de relato feito por RS; 
  6. Por que Stevenson teria feito isso? Aventamos a hipótese de que ele não quisesse descartar - segundo sua abordagem - casos europeus, que se mostraram escassos frente aos orientais. A busca por tais casos era uma questão "de honra" para Stevenson, que enfrentou heroicamente ataques do ceticismo. Ou, de outra forma, é provável que, no contexto oriental, algo parecido ao caso RS tivesse sido facilmente descartado por Stevenson;
  7. A data de nascimento do suposto reencarnante é anterior à desencarnação da personalidade pregressa. Isso constitui uma contradição à lei de causa e efeito e cria uma anomalia dentro de outra que é facilmente explorada (com razão) por céticos;
  8. Por uma questão de consistência com todos os outros casos e como resultado lógico da "conservação" da personalidade em outro corpo, não faz sentido sustentar uma "hipótese ad-hoc" (6) que permita ao Espírito desencarnar tempo depois que seu "corpo físico" esteja vivo ou coisa ainda mais fantástica. Stevenson não se preocupou muito com essas consequências e isso faz eco com outras críticas (céticas) às conclusões de Stevenson;
  9.  A "força" desse caso é maior para crentes que colocam fatos mal interpretados acima da importância da teoria e sua consistência interna;
  10. A suposto reencarnante não teve sequelas do suicídio: indiretamente isso cria um problema na aceitação do método de Stevenson porque ele mesmo descreve casos em que mínimas marcas de nascença seriam provocadas por agressões físicas no corpo do indivíduo no instante da morte. Stevenson considera a existência dessas marcas importantes sinais de validação de seu método. Se uma agressão compulsória pode deixar uma marca, como é possível um caso em que o suposto reencarnante tenha se matado com um tiro na cabeça e não tenha nenhuma marca, mas apenas lembranças que se parecem com "visões"? 
  11. Uma vez aceito o caso RS, resta evidente questionar todos os outros em que marcas de nascença são observadas, já que, se inexiste relação "causa-efeito" em apenas um caso, fica fácil desqualificar essa necessidade nos outros;
  12. Outras causas podem ter sido responsáveis pelas "visões" alegadas por RS e associadas a suas lembranças posteriormente.  Com a confirmação dessas visões, RS conseguiu levantar uma personalidade equivalente em sua busca obsessiva (quiça impulsionada por essas causas), que deu origem a todas as outras "evidências" que Stevenson ressalta a apoiar o caso;
  13. O caso RS ressalta a importância de uma teoria que integre tanto informações de fatos históricos associados a existências anteriores como memórias em diversos estados da consciência. A pesquisa da reencarnação não terá êxito se desacompanhada de considerações sobre a fenomenologia psíquica, que representa outra fonte para a aquisição "anômala" de informação.
Referências

(1)  "Jogam o bebê fora junto com a água do banho".

(2) Fácil entender isso. Para um cético, alguém que afirme ter uma vida anterior será interpretado como doente mental, seus sonhos como criações da fantasia etc. Como se vê neste post, a interpretação de qualquer relato como "prova" de vida anterior não considera a possibilidade da informação anômala ter sido obtida por outras vias psíquicas, que não a da memória propriamente dita. Isso só é possível se se dispuser de uma teoria abrangente, que permita separar os fatos em categorias que devem ser, elas próprias, previstas na teoria.

(3) Stevenson, I. (2003). European cases of the reincarnation type. McFarland. No Brasil, há uma edição traduzida desse livro com o título "Casos Europeus de Reencarnação". Ed. Vida e Consciência. 1a, Edição, 2010. No que é citado neste post, seguimos a versão em Português.

(4) Uma das críticas levantadas contra a ideia de reencarnação com base em evidência de fatos é o número muito grande de casos (de crianças) em países que aceitam tacitamente a noção como a Índia. Críticos levantaram a hipótese de uma raiz "cultural" para o fenômeno, o que reduziria sua importância como evidência.


(6) Uma "hipótese ad-hoc" é uma explicação criada com um determinado objetivo. No caso aqui, aceitar a possibilidade de que o Espírito possa ter um corpo em outro lugar enquanto ainda não desencarnado é uma explicação criada para "salvar as aparências" ou acomodar os dados disponíveis com a tese principal.  O que supostamente dizem "os fatos", interpretados de acordo com determinados pressupostos e sob risco de falhas (erro de data, falsas memórias etc), é salvo pela adoção da hipótese.


9 de março de 2016

Anomalias possíveis na psicologia de pacientes transplantados


O magnetismo animal pode assim ser definido: 
ação recíproca de dois seres vivos por meio de 
um agente especial chamado fluido magnético. 
(A. Kardec, Instruções práticas 
sobre as manifestações espíritas. 
Vocabulário Espírita. Magnetismo animal.

Todos os objetos que você vê 
emoldurados por substâncias fluídicas 
acham-se fortemente lembrados 
ou visitados  por aqueles que os possuíram. 
(André Luiz, "Nos domínios da mediunidade".)

Quero um coração. Pois cérebros não nos fazem felizes
 e a felicidade é melhor coisa do mundo. 
L. Frank Baum, "O mágico de Oz".


Este texto complementa o artigo "Mudança de personalidades em transplantados cardíacos" que foi publicado no site "O Consolador".
Quase sempre as evidências para a natureza espiritual do ser humano são encontradas em fenômenos invulgares, onde menos se espera. Esse é o caso de reportes sobre mudanças inesperadas de gostos ou "traços" psicológicos em pessoas que receberam órgãos transplantados. Numa época em que se diz que tudo é "gerado pelo cérebro", no mínimo essa anomalia é bastante bizarra a ponto de atrair a rejeição feroz de céticos que dizem ser o fenômeno irreal.

O fenômeno é raro, mas nem por isso pouco notado. Além disso, é mais comum em pacientes que receberam transplantes de coração. Tornou-se famoso o caso de Claire Sylvia (1,2):
No dia 29 de maio de 1988 uma mulher norte-americana chamada Claire Sylvia recebeu um coração transplantado no hospital de Yale, em Connecticut. A ela foi dito apenas que seu doador foi um homem de dezoito anos de idade, residente no Maine (nos Estados Unidos) e que morreu de um acidente de motocicleta. Logo após a operação, Sylvia declarou sentir como se tivesse bebido cerveja, algo que ela nunca teve atração. Mais tarde, passou por uma vontade incontrolável de comer nuggets de frango e uma tendência inesperada de vistar restaurantes da cadeia KFC. Também desenvolveu interesse por pimenta verde, o que, particularmente, ela nunca tinha gostado antes. Começou então a ter sonhos recorrentes, onde aparecia um nome, Tim L, que ela imaginou ser o dono do coração. Com base em uma pista que lhe foi concedida, buscou no obituário e jornais da região do Maine e pôde identificar o jovem cujo coração ela tinha recebido. Seu nome, de fato, era Tim. Depois de visitar a família de Tim, teve confirmado seu gosto por nuggets de frango, pimenta verde e cerveja. (Itálicos nossos).
Outros casos podem ser lidos em (3), registrando-se, inclusive, mudança de orientação sexual (ver caso 5 na ref. (3)). No Brasil, uma novela foi feita explorando o fenômeno (3b).  Obviamente existem muitas explicações céticas para ele (4), desde aquelas que desqualificam esses relatos (com o título odioso de "evidência anedótica"), que o tornam irrelevante pela sua raridade ou que explicam tudo por efeitos de medicação. Segundo esse proposta cética, ainda que existam tais relatos, eles são tão raros que são esperados estatisticamente e seriam frutos de impressões errôneas nos pacientes, ou seja, ocorreram mudanças de gostos etc, mas elas foram erroneamente atribuídas ao transplante (4).

Do ponto de vista puramente materialista, a explicação de tais memórias anômalas é dependente da existência de "memórias celulares", o que é frequentemente adotado pelos que consideram esses relatos (5). Essencialmente: a informação sobre gostos, tendências etc estaria registrada em algum mecanismo celular, dependente ou não da genética, e essa informação seria acessada pelo corpo do paciente transplantado gerando a mudança de comportamento.  

Influência magnética do órgão transplantado ?

Do ponto de vista espírita, não esperamos que tais ocorrências sejam comuns mesmo. Para existirem, provavelmente um conjunto mais extenso de condições deve prevalecer, e não somente um transplante.  Uma delas é uma sensibilidade do receptor ou indivíduo sobre o qual a influência se estabelece. Essa sensibilidade não está distribuída de maneira uniforme e frequente na população.  

Sabe-se que as fontes de influência sobre a personalidade de um Espírito (esteja ele encarnado ou não) são múltiplas e, envolvem, segundo o Espiritismo, um meio de transporte conhecido como fluido. Esse conceito não é o mesmo encontrado em física - o de uma substância sobre a qual não persistem forças de cisalhamento etc - mas tem uma concepção integralmente nova. 

Um fluido é uma substância de natureza "semi-material" que, tanto quanto nos é possível inferir pela literatura espírita, é produzida pelo perispírito (que não existe, alias, desacompanhado de seu espírito) em combinação com fluidos ambientes - ou todas as coisas com as quais o Espírito entra em contato. É através do perispírito que a mente sente o mundo a sua volta:
O perispírito é o órgão sensitivo do Espírito, por meio do qual este percebe coisas espirituais que escapam aos sentidos corpóreos. Pelos órgãos do corpo, a visão, a audição e as diversas sensações são localizadas e limitadas à percepção das coisas materiais; pelo sentido espiritual, ou psíquico, elas se generalizam: o Espírito vê, ouve e sente, por todo o seu ser, tudo o que se encontra na esfera de irradiação do seu fluido perispirítico. ("A Gênese", Capítulo XIV. Os fluidos II. Parágrafo 22.)
A ação dos fluidos é bastante discutida por A. Kardec nas suas diversas obras e é um componente importante para a teoria espírita da mediunidade, em particular nas suas explicações para a mediunidade curadora. Não são incomuns, durante as incorporações, que médiuns descrevam sensações, impressões e até mesmo lembranças associadas à Entidade comunicante. Essa influenciação se dá por meio dos fluidos da Entidade que atuam sobre o perispírito do médium.

Entende-se assim um fluido espiritual como um elemento intermediário, capaz de transportar características que são tipicamente associadas ao Espírito (gostos, impressões e memórias), porém, por meio de algo que  é localizado no espaço e no tempo e que pode ficar impregnado em coisas materiais, inclusive objetos. As sensações dilatadas do Espírito são assim explicadas de forma independente dos cinco sentidos ordinários, o que permite entender uma grande quantidade de fenômenos psíquicos.

Obsessão ?

 Ação fluídica desse tipo estabelece-se particularmente nas chamadas "obsessões":
Nos casos de obsessão grave, o obsidiado fica como que envolto e impregnado de um fluido pernicioso, que neutraliza a ação dos fluidos salutares e os repele. É daquele fluido que importa desembaraçá-lo. ("A Gênese", Capítulo XIV. Os fluidos II. Parágrafo 45.)
Porém, não há porque sustentar que, depois de um transplante, exista qualquer influência obsessiva do desencarnado doador com o transplantado. Certamente, tal possibilidade existe, mas seria sempre provocada por outros fatores, todos eles comumente associadas aos processos típicos de obsessão, jamais por causa do novo órgão. Se fosse obsessão, por que a mudança seria mais observada com o coração ? Não seria ela ligada a todos os órgãos? 

A explicação que nos parece mais plausível para essas raras mudanças de personalidade com os transplantes estão fundamentadas na impregnação do tecido do órgão com o fluido do desencarnado, fluido esse que pode influenciar o perispírito do transplantado, fazendo surgir nele alguns traços associados à personalidade desencarnada. Não se trata, porém, de uma mudança integral de personalidade, o que exigiria um estado completamente passivo do transplantado. Se isso for possível, sua ocorrência seria bastante transitória e ainda mais rara.

Assim, tudo se passa como em um fenômeno de psicometria (7). Esse termo não pode ser encontrado na obra de A. Kardec, mas seu conceito é anterior a ele (6). Kardec chama de "dupla vista" uma grande variedade de fenômenos psíquicos dentre os quais se inclui a psicometria (6b). Portanto, a raridade das ocorrências de alteração de personalidade em transplantados fica estabelecida sobre uma sensibilidade peculiar, que talvez não seja tão rara como no caso da psicometria clássica, mas que não deixa de se manifestar de forma continuada, por causa da influência do objeto imantado de fluido do desencarnado, em seu novo recipiente. Esse contato é de tal natureza (trata-se da conexão de um órgão vital) que a modificação se estabelece de maneira bastante perceptível pelo transplantado.

Não é difícil imaginar também, para que a intensidade do efeito seja maior, que deva existir uma afinidade entre o fluido impregnado no órgão e o do perispírito do paciente transplantado. Aqui apenas especulamos com base em um paralelo que podemos fazer entre esse fenômeno e o da própria mediunidade, que exige essa afinidade em outra ordem de fenomenologia. 

E por que o coração?
"E, naturalmente, o cérebro não é absolutamente
responsável por qualquer sensação.
A visão correta é que a sede e a fonte
das sensações é a região do coração."
(Aristóteles, 8b)

É crença comum que o principal órgão responsável pela sensibilidade é o cérebro. Em consonância com a tese materialista, tudo é produto do cérebro e o coração é apenas uma bomba de sangue. Porém, mesmo numa descrição puramente material, neurônios (ou células nervosas) não existem exclusivamente no cérebro.

Recentemente descobriu-se que o coração é sede de aproximadamente 40 mil neurônios (8), o que foi chamado "pequeno cérebro do coração". Essa descoberta fez crescer a importância dos relatos de mudanças de personalidade em transplantados cardíacos, como a Ref. 9 mostra, e relembra a explicação Aristotélica da sede das sensações (8b).

O cérebro provavelmente é a interface mais importante, do lado material, para o Espírito, que armazena muitos fluidos a se relacionar com o perispírito e facultar à mente suas sensações. Isso implica, do ponto de vista espírita, que tais fluidos espirituais, capazes de produzir modificações parciais ou completas na personalidade no Espírito sob sua influência, bem como em suas sensações, encontram-se disseminados por todo o corpo, provavelmente mais adensados no sistema nervoso central (11).

Não é verdade, porém que, com o transplante, as conexões neurais preexistentes sejam restabelecidas (10). Isso não acontece, ou seja, os "neurônios cardíacos" do coração transplantado ficam sem função. Uma possível via de compreensão maior desse fenômeno é através de estruturas no corpo espiritual, conforme descritas por vários autores como André Luiz em "Evolução em dois mundos" (12). Portanto, a mudança de personalidade e surgimento de novas sensações (que precisam ser melhor caracterizadas e descritas) abre espaço potencial para a validação da tese da existência de órgãos no perispírito.

Outra conclusão é que, enquanto o sucesso físico do transplante de um órgão exige condições entre doador e recipiente, para que um "pedaço" ou "traço" da personalidade seja "transplantado", deve existir uma condição de sintonia entre fluidos, assim como algum grau de passividade no transplantado.

Teste seu conhecimento

A partir deste post, apresentamos algumas questões para participação dos leitores, que podem enviar suas respostas pela seção de comentários. Não há prazos nem limites de participação. Nas suas respostas, faça referência  à numeração das questões.

Participe!
  1. De acordo com a tese dos fluidos espirituais: elabore uma explicação ou predição sobre o que se espera com relação à mudança de personalidade de transplantados com a idade do paciente. O fenômeno seria mais comuns em crianças ou adultos?
  2. Imagine o seguinte caso: um paciente que recebeu um transplante de coração vive durante muito tempo com ele, mas vem a falecer por outra causa. Seu coração é então transplantado em outro paciente. Se as condições forem satisfeitas, elabore o que se esperaria com relação à mudança de personalidade: (a) Usando a teoria materialista de "memória celular"; (b) Usando a teoria espírita. (Dica: seria possível a coexistência de traços de duas personalidades no segundo transplantado?)
  3. Elabore uma discussão sobre a validação da tese espírita dos fluidos magnéticos impregnados no órgão doado usando a resposta da questão anterior;
  4. Usando o conhecimento espírita e o comentário (10) abaixo, disserte sobre a via de influência sobre o perispírito em transplantados cardíacos. Quem mecanismos perispirituais poderiam substituir as vias rompidas para o transporte das sensações a partir do coração? 
Referências

1 Sylvia, Claire. A Change of heart: a memoir. New York; Warner Books, 1997. O que descrevemos aqui é um comentário algo hilário, mas que reflete a forma direta que americanos costumam fazer em textos populares.

2 http://galileu.globo.com/edic/102/con_transp1.htm (acesso em janeiro de 2015).

http://www.paulpearsall.com/info/press/3.html (acesso em janeiro de 2015).


4. Em http://bigthink.com/neurobonkers/dont-be-taken-in-by-the-bad-science-of-cell-memory-theory (acesso em janeiro de 2016) encontramos um texto que se opõe (corretamente) às explicações do tipo "memória celular", mas que faz isso negando as evidências. Uma desqualificação mal feita pode ser constatada ao se ler isto:
"Only 6% (three patients) felt their personality had changed due to their new heart — a finding that could clearly be due to either random chance, or the patients misattributing the real cause of any change in their personality. Both of the studies are approximately two decades old, if this is the best evidence for a claim that would have such profound implications for our understanding of the workings of the human body, then I think we can safely assume the theory is bunk." "Tradução: Apenas 6% (três pacientes) sentiram suas personalidades mudar com o novo coração - uma descoberta que pode claramente ser explicada por pura sorte ou pelo paciente atribuir erroneamente ao transplante a causa real da mudança. Ambos estudos têm aproximadamente duas décadas de existência e, se essas são as melhores evidências para uma alegação que teria tamanha implicância no nosso conhecimento do funcionamento do corpo humano, acho que podemos seguramente refutar a teoria.  
5 Pearsall, P., Schwartz, G. E., & Russek, L. G. (2000). Changes in heart transplant recipients that parallel the personalities of their donors. Journal of Near-Death Studies, 20(3), 191-206.  http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/10882878

6. Uma descrição recente de psicometria foi feita por Jader Sampaio em http://espiritismocomentado.blogspot.com.br/2013/01/o-que-e-psicometria.html

6b. A "Revue Spirite de janeiro de 1866 traz, por exemplo, a descrição de uma jovem cataléptica da Suábia, com manifestações típicas de psicometria.

7. Dissemos "como em um" e não "exatamente como".  A mudança de gostos com o transplante parece ser algo novo que merece melhores estudos.

8. Armour, J. A. (2007). The little brain on the heart. Cleveland Clinic journal of medicine, 74, S48.

8b. Gross, C. G. (1995). Aristotle on the brain. The Neuroscientist, 1(4), 245-250.

9 . Your Second Brain is in your Heart Neurons. Trust your Gut Feelings. Acesso em janeiro de 2016. http://hubpages.com/education/your-second-brain-is-in-your-heart

10. De fato, em uma explicação para pre-transplantados, a referência da clínica Vanderbilt:


podemos ler
"The transplanted heart fills with blood and pumps as any other normal heart. However, the transplanted heart is "denervated." This means that the nerves from the central nervous system that supplied connections to your other heart do not supply connections to your transplanted heart. These nerves were divided upon removal of your own heart." Tradução: O coração transplantado se preenche de sangue que é bombeado como qualquer outro coração normal. Entretanto, o coração transplantado é "desenervado". Isso significa que os nervos do sistema nervoso central, que fornecem as conexões para o outro coração, não vão fazer o mesmo com o coração transplantado. Esses nervos foram rompidos com a remoção de seu coração original.
O esclarecimento prossegue informando que transplantados cardíacos não sofrem jamais de angina porque as conexões neurais foram, de fato, rompidas. Isso torna suspeitas as explicações de mudança de personalidade com base em "memórias celulares", e caracteriza o fenômeno como de uma natureza bastante diferente, que pensamos pode estar ligada à influência dos fluidos espirituais. 

11. Não se poderia excluir também o fato de transplantes de coração serem bastante comuns (dai porque os relatos de alteração de personalidade são mais comuns com eles). Porém, mais comuns ainda são os de rins e fígado.

12. C. Xavier e W. Vieira. Evolução em Dois Mundos. Uma versão em pdf pode ser encontrada em:
http://www.luzespirita.org.br/leitura/pdf/l17.pdf


25 de fevereiro de 2016

Arquivos históricos com imagens de periódicos espiritualistas antigos.

Imagem  do "Almanaque del Espiritismo", edição de 1873 (ano I) editado em Madri (1).
Fonte: Biblioteca Nacional de Espanha.

A IAPSOP (2, International Association for the Preservation of Spiritualist and Occcult Periodicals) ou "Associação Internacional para preservação de periódicos espiritualistas e de ocultismo" disponibiliza uma página na internet com diversas imagens de periódicos antigos e raros relacionados aos temas espiritualistas. 

O acesso se dá por um link em língua inglesa:

http://www.iapsop.com/archive/materials/index.html (acesso em Fevereiro de 2016)

Dentre as preciosidades, podemos acessar:


dentre outros. Tais referências são fontes relevantes para pesquisadores em diversas áreas e representam memória importante, em particular, para o movimento espírita e espiritualista ao longo dos séculos XIX e XX.

Agradeço ao Chyristiann Lavarini por nos comunicar o link.


Referências

1 -Ver:
 http://www.iapsop.com/archive/materials/almanaque_del_espiritismo/almanaque_del_espiritismo_1873.pdf
2 - http://www.iapsop.com/ (acesso em fevereiro de 2016)

5 de fevereiro de 2016

O texto mais importante do "Evangelho segundo o Espiritismo"

"A luz do Tabor". C. H. Bloch (1800).
O consolador... ele vos ensinará todas as 
coisas e vos fará lembrar tudo o que disse. (João, 14:26)

O que o homem destroi ou mata, 
a lei de Deus (que é a lei da Natureza) 
recria e reconstrói em outro lugar.

Qual é o texto mais importante no "Evangelho segundo o Espiritismo" (ESE)? Por "importância" entendemos um grau de relevância que certamente depende do momento que vivemos. Sugerimos aqui a leitura de um texto exemplar, motivado não só pelos ataques terroristas recentes em nome da religião, mas também pelos sempre presentes problemas humanos da sobrevivência e significado da vida.

Lançado por Allan Kardec em 1864 como uma nova interpretação dos Evangelhos, o "Evangelho segundo o Espiritismo" (ESE) (em frances L'Évangile Selon le Spiritisme) é um compêndio de máxima de Cristo interpretadas de acordo com o ensinamento dos Espíritos no contexto dos movimentos espírita e espiritualista que apareceram na Europa no último quartel do século XIX.  

Mas aqui um situação curiosa se nos apresenta. Os ensinos dos Espíritos sempre foram rejeitados pela imensa maioria das denominações cristãs (protestantes e católicas), tanto com base nas implicações desses ensinos (aceitação da reencarnação, por exemplo, é vista como a negação desses credos), como nas proibições existentes no Velho Testamento de se invocar Espíritos. Se Espíritos não podem ser invocados é porque eles existem, mas, ainda assim, a proibição foi mantida como um dogma que contrasta claramente com tantos outros abandonados pela sociedade moderna. Além disso, a internet complicou ainda mais a situação porque agora podemos contactar muitas outras pessoas ao redor do planeta, pessoas que pertencem a culturas com ideias muito diferentes em questão de religião, o que reduz ainda mais a importância de se manter uma postura dogmática.

Ao invés disso, o ensino dos Espíritos expõe o ridículo e o erro das interpretações presentes dos ensinos de Cristo e de muitas outras religiões dogmáticas que vieram depois. O Espiritismo é o novo consolador, o "advogado" que veio para restabelecer todas as coisas e relembrar o que Cristo disse, mas que foi esquecido. Avanços na ciência tornaram tópicos como mediunidade e reencarnação possibilidades tangíveis a continuamente ameaçar religiões estabelecidas de base dogmática. Que visão religiosa poderia atualizar o pensamento diante das conquistas da ciência? Que nova doutrina pode fornecer bases sólidas para a aceitação dos ensinos de Cristo depois de tantas interpretações equivocadas? 

ESE Capítulo 2: Meu Reino não é deste Mundo. "Um ponto de vista". 

Na seção que abre o Capítulo 2 ("Meu Reino não é deste Mundo"), "A Vida Futura", Kardec esclarece porque o assunto desse capítulo é de maior importância:
Esse princípio pode, portanto, ser tomado como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos primeiros lugares a frente desta obra. É que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus. 
Aceitar e entender bem a vida futura é um ponto crucial, uma "bifurcação" de pensamento que está destinada a mudar a Humanidade para sempre. Sem considerar a falta de aceitação universal desse princípio, a sobrevivência é a única possibilidade de acordo com a Justiça Divina ("Ninguém poderá ver o Reino de Deus se não nascer de novo", ESE Capítulo 4 e Fig. 1).  A outra opção é o materialismo e a não existência eterna. Com a certeza na vida futura - assim como os detalhes de sua realidade ("de uma maneira clara e precisa") - fornecida de forma científica, a Humanidade alcança um novo patamar, uma nova compreensão da vida bem como outro objetivo.

Fig. 1 A noção da reencarnação é a chave para se reestabelecer o significado original dos ensinamentos de Cristo e para se sustentar a ideia básica da justiça Divina, não importa sua consequência para o dogma estabelecido. Ver ESE, Capítulo 4. O que o homem destrói e mata, a lei de Deus (que é a lei natural) recria e reconstrói em outra parte. 

O texto abaixo intitulado "Ponto de Vista" foi escrito por Kardec e representa uma argumentação brilhante que sumariza as consequências e as implicações lógicas da sobrevivência. Lembramos que esse texto foi escrito antes de 1864, portanto antes da fundação da "Sociedade de Pesquisa Psíquica" em Londres pelos pais fundadores da pesquisa psíquica ou do movimento teosófico. Esse trecho do ESE testifica a profundidade de pensamento de Kardec já no terceiro quartel do século XIX como conclusão de sua própria pesquisa no assunto.
A ideia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes consequências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. As vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso. À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando-lhe daí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor. 
Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida terrestre. Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram reais. A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano, uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele, desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes. Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. Àquele que se acha no interior de uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. 
É o que sucede ao que encara a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. Percebe então que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura.
Mas "se toda a gente pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto ninguém mais se iria ocupar com as coisas terrenas" continua Kardec, como que prevendo uma contra-argumentação na forma de um moderno mergulho na "idade das trevas" com a aceitação da sobrevivência. Contra isso, Kardec considera: 
Não; o homem instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou o menos mal que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão não a retire, para se não picar. Ora, o desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas leis da Natureza. Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando no destino que o aguarda. (Parágrafo 6)
Além da defesa de Kardec do bem estar do homem citado acima, poderíamos acrescentar a importância de se compreender bem as condições operacionais da vida futura. Pois ela não é um estado conseguido de graça, não pode ser igualada à entrada em um paraíso ou, do contrário, a um estado de eterna separação do bem eterno conforme ainda ensinam muitas concepções cristãs. O esforço contínuo que a alma deve fazer para progredir torna cada segundo bem gasto nesta vida material uma benção e uma oportunidade que nunca deve ser desprezada. Para Espíritos ainda em evolução - uma condição de praticamente toda a Humanidade - a vida futura é, de certa forma, uma garantia de retorno à vida material, de forma que quanto mais o ser se dedica a melhorar a si mesmo, ajudando os outros, tanto mais rápido ele é capaz de se libertar deste mundo. Do contrário, quanto mais uma pessoa susta o progresso destruindo, matando ou prejudicando seu próximo, tanto mais lenta será sua capacidade de lidar com a vida futura: ele terá que restituir tudo o que destruiu porque assim exige a lei Natural.

Não existe avanço instantâneo da alma, não há entrada fácil na "Glória Eterna" e isso é, compreensivelmente, bastante combatido pelo pensamento cristão tradicional. Entretanto, é ainda mais claro que a vida futura, entendida em dimensão mais dilatada, dificilmente imporá à Humanidade um retorno a uma idade de descuidados com a vida material. Ao invés disso, a evolução requer cuidado e atenção com a presente vida em todos os aspectos, tanto morais como materiais. 

Referências

(1) A. Kardec. "O Evangelho segundo o Espiritismo. As citações do ESE apresentadas neste texto foram reproduzidas de versões do site www.ipeak.com.br.

4 de janeiro de 2016

S. José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos


Não menos positivo é o fato do erguimento de uma pessoa; 
mas, é algo muito mais raro, porque é mais 
difícil de ser imitado. É sabido que o Sr. Home se elevou 
mais de uma vez até ao teto, dando assim volta à sala.
Dizem que S. Cupertino possuía a mesma faculdade, 
não sendo o fato mais miraculoso com este do que com aquele.

A. Kardec, "A Gênese", Cap. XIV, "Os fluidos", II - 
Explicação de alguns fenômenos considerados sobrenaturais.

Estaria o Século XXI pronto para confrontar 
o fenômeno destruidor de paradigmas, a levitação?  (M. Grosso, 1)

O fenômeno mediúnico manifesta-se das mais variadas maneiras, numa escala de força e tempo que ainda nos é desconhecida. Quando surgem as circunstâncias favoráveis, eclodem sem consideração por fé, crença ou ponto de vista. Se há manifestações tão singelas e apagadas que passam desapercebidas da maioria, por outro lado, há as que causam admiração e espanto, tamanho o grau de aparente desrespeito às leis naturais - porque representam operação  de leis desconhecidas - que imprimem as suas testemunhas. A revista "Edge Science" de Dezembro de 2015 (número 24, 1) traz um artigo interessante de Michael Grosso sobre uma figura lendária da Igreja, o santo S. José de Cupertino (160-1663). José de Cupertino (Giuseppe da Copertino) foi canonizado por Clemente XIII em 1767 e, até hoje, é adorado por Católicos que veem nele uma das 200 derrogações (ou suspensões) das leis naturais por obra direta de Deus que a Igreja conta entre seus santos. Por que? Eis uma das histórias que se conta, segundo M. Grosso (1):
Próximo ao natal de 1632, o Padre Giuseppe convidou alguns pastores a trazer seus instrumentos musicais para tocar na igreja de Grotella, na Itália. Ao entrarem na igreja, começou José a cantar e dançar. Mais tarde os pastores narraram sob juramento o que aconteceu: "Padre Giuseppe estava tão feliz que começou a dançar no centro da nave aos som das flautas. De repente, suspirou em voz alta e gritou, voando pelos ares como um pássaro, até metade da distância do teto, onde continuou a dançar acima do altar principal. Isso foi ainda mais formidável, pois o altar estava repleto de velas acesas e ele permaneceu entre elas sem derrubar nenhuma. Ficou naquela posição, com seus joelhos acima do altar, abraçado ao tabernáculo por cerca de quinze minutos e então retornou, sem causar qualquer transtorno. Seus olhos estavam cheios d'água e disse: 'Louvado seja Deus, meus irmãos'. Permanecemos todos em admiração e disse comigo mesmo: 'Isso sim é que é um milagre' " (2)
José de Copertino tinha a incrível capacidade de levitar, fenômeno que ocorreu por 35 anos ininterruptos até seu falecimento. Antes da manifestação de voo, José caia numa espécie de "êxtase", conforme descrito por seus biógrafos. O mais difícil é desacreditar as milhares de testemunhas que viram José levitar sob pena de se chegar a uma explicação ridícula ou anacrônica. Nas palavras de M. Grosso (1):
Poderíamos nos perguntar: dado que José era tão submisso e aparentemente pouco inteligente (6), como pôde ele enganar tantas pessoas, algumas inclusive bastante ilustres? De acordo com registros históricos, José levitou diante do Papa Urbano VIII, vários cardiais, médicos, o Rei da Polônia, o Duque de Brunswick, a Princesa de Savoia e numerosas outras personalidades VIPs. Podemos concluir que nenhum deles era esperto o suficiente para desmascarar esse impostor? Poderia José ter enganado o Papa Bento XIV (Prosper Lambertini), conhecido por ser um racionalista? A alternativa a essa explicação é que todos esses dignatários eram parte de uma ilusão em massa para criar a imagem de um padre voador. Mas, com que objetivo? E, por que, depois de tantos séculos, ninguém se apresentou para revelar a verdade sobre tal conspiração?
As evidências de levitação de José de Cupertino têm um peso ainda maior porque, segundo (1), durante a contra-reforma protestante, a Inquisição chegou a encarcerar José, proibindo-o de realizar a missa ou participar de procissões públicas. As autoridades inquisitoriais não queriam que a população o vissem voar e, assim, buscassem no padre curas e outros milagres, como está fartamente registrado em autos de várias paróquias como Grotella, Nápoles, Roma, Nardo, Pietra Rubbia, Osimo e Fossombrone (1). Pode-se dizer qualquer coisa da ética dos métodos e das motivações do tribunal do Santo Ofício, mas o fato é José foi preso justamente pela comoção pública causada por seus voos, e seria ele um caso de fogueira se descobrissem uma impostura. O estado de êxtase em que a população ficava ao ver o fenômeno alarmou outras paróquias que procuram na Inquisição uma maneira de parar as manifestações.  
"S. José de Cupertino voa 
diante da Basílica de Loreto" por 
Ludovico Mazzanti (1686–1775)

José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos

Segundo M. Grosso em (1), a época de José de Cupertino era um tempo que pessoas eram queimadas vivas caso não tivessem as "credenciais de fé" necessárias. Portanto, os registros históricos confirmam a realidade do fenômeno da levitação e criam um problema difícil para os céticos. É o que chamamos de "anomalia". A explicação do fato, portanto, deve ser outra. Ainda segundo Grosso:
Quando olho para as fontes históricas das narrações sobre José, encontro registros bem documentados, narrativas que descrevem fenômenos estranhos, não somente levitação: histórias de fragrâncias inexplicáveis que persistiam por meses ou anos impregnadas a objetos, descrições sobre curas, do que hoje se chama de "telepatia" ou que, no Século XVII, era conhecido com "leitura dos corações" ou "discernimento" e, finalmente, a vida de José foi capaz de gerar muitos documentos que descrevem suas profecias e clarividência. Domenico Bermini, um historiador eclesiástico, afirma em uma biografia de José (de 1722) que ele registrou 22 profecias de pessoas que iriam falecer. (1)
Manifestações de efeitos físicos são pródigas em fenômenos de levitação (o caso das mesas girantes) e curas. E as tais "profecias" descritas pelos biógrafos de José de Cupertino atestam sua capacidade mediúnica intelectual, sua habilidade de ouvir ou receber informações dos Espíritos sobre fatos à distância - particularmente associados ao estado de pessoas próximas à desencarnação. Ainda que Espíritos não apareçam (6) no que se produziu dos relatos do santo (e não poderiam aparecer, pois aquela era uma época de perseguições aos que não estavam de acordo com a fé ortodoxa), o que temos dos relatos é suficiente para caracterizá-lo como um dos mais poderosos médiuns que já passou pela Terra. 

Sobre S. Cupertino, comenta Kardec (3):
Os fenômenos espíritas, bem como os magnéticos, antes que suas causas fossem conhecidas, tiveram que passar por prodígios. Ora, como os céticos, os espíritos fortes, isto é, os que têm o privilégio exclusivo da razão e do bom-senso, não creem que uma coisa seja possível desde que não a compreendem. É por isso que todos os fatos tidos como prodigiosos são objeto de suas zombarias. Como a religião contém grande número de fatos desse gênero, não creem na religião. Daí à incredulidade absoluta há apenas um passo. Explicando a maioria desses fatos, o Espiritismo lhes dá uma razão de ser. Ele, pois, vem em auxílio à religião, demonstrando a possibilidade de certos fatos que, por não mais terem caráter miraculoso, não são menos extraordinários; e Deus nem é menos grande, nem menos poderoso por não haver derrogado as suas leis. De quantos gracejos não foram objeto as levitações de São Cupertino? Ora, a suspensão no ar dos corpos pesados é um fato explicado pelo Espiritismo. Nós, pessoalmente, fomos testemunha ocular, e o Sr. Home, como outras pessoas de nosso conhecimento, repetiram várias vezes o fenômeno passado com São Cupertino. Assim, o fenômeno entra na ordem das coisas naturais.
Além da citação acima, Kardec mais de uma vez comentou sobre a descrença e escárnio que sempre acompanhava as referências a José de Cupertino. Na Revista Espírita de Outubro de 1859, artigo "Os Milagres", escreve: "De quantas graçolas não foram objeto as levitações de São Cupertino?" Tal fenômeno tem a mesma causa dos médiuns (4, 5) D. D. Home (1833-1886) e C. C. Mirabelli (1889-1951), por exemplo, que realizaram levitações no Século XIX na Europa e XX no Brasil, respectivamente. Mas, no artigo de M. Grosso, temos a confirmação da mediunidade de José de Cupertino, pela presença de outras manifestações espontâneas, típicas da mediunidade de efeitos físicos e intelectuais. 

Qualquer que seja o ponto de vista que se tenha sobre os voos de S. Cupertino, os registros históricos permanecem como seus testemunhos e não permitem fácil interpretação em termos de teorias de conspiração, alucinação em massa ou fraude. Fazem eles parte de uma época em que fraudes teriam vida curta, tanto por conta da existência de uma polícia doutrinária que punia severamente os que se aventuravam a zombar da fé hegemônica, como pela titularidade e inteligência dos notáveis que assistiram o fenômeno mais de uma vez.

Ilustração da levitação de D. D. Home. Fonte: Wikipedia
Continuarão os céticos a duvidar dentro de seu direito. No Século XXI,  qualquer registro fotográfico de um genuíno fenômeno de levitação seria facilmente explicado como manipulações de softwares como o "Photoshop". Céticos mais duros exigiriam, para sua aceitá-lo, um número arbitrário de demonstrações nas mais exóticas condições possíveis, que levariam o médium à loucura. De nossa parte, ficamos contentes em descobrir na história mais um exemplo de mediunidade rara de efeitos físicos, que confirma as regularidade - não obstante peculiaridade - das manifestações mediúnicas descobertas pelos pioneiros do Espiritismo. Podemos dizer que José de Cupertino, duzentos anos antes, antecedeu o fenômeno das mesas girantes do alvorecer do Espiritismo; tendo sido provavelmente ajudado por muitos Espíritos em suas manifestações de voo. Seu caráter piedoso o tornou insuspeito ao Santo Ofício, que procurou cercear entretanto as manifestações. Tivesse as mesas girantes surgido naquela época, tal como aconteceu no Século XIX, muitas pessoas teriam ido para a fogueira.

Referências

1. M. Grosso (2015) Ectasy and Gravitation: The Levitation of Joseph of Copertino. Edge Science, n. 24. Um publicação da Society for Scientific Exploration. A revista pode ser acessada em:

http://microver.se/sse-pdf/edgescience_24.pdf (Acesso: dez. 2015)

2 M. Grosso (2016). The Man Who Could Fly: St. Joseph of Copertino and the Mystery of Levitation. Rowman & Littlefield, p. 79.

3. A. Kardec (1860)  O Maravilhoso e o sobrenatural. Revista Espírita, Edição de setembro.

4. Outros médiuns menos conhecidos e associados à manifestações de levitação são: Amadee Zuccarini, Einer Nielsen, Boerge Michaelsen e Colin Evans, esse último, entretanto, considerado um impostor segundo os autores céticos da Wikipedia. Há ainda o caso de uma levitação do faquir  Subbayah Pullavar. 

5. Ver http://www.spiritarchive.org/levitation-of-humans.html

6.  De acordo com http://capuchinhosprsc.org.br/santos-capuchinhos-2/jose-de-cupertino-18:
Ele era carente de capacidade intelectual a ponto de chamar-se a si mesmo de “Frei Burro”. Mas, cheio de luzes sobrenaturais, discorria em profundidade sobre temas teológicos e resolvia intrincadas questões que lhe eram apresentadas.