1 de dezembro de 2022

Bens, direitos, deveres e obrigações da alma


Nada do que se expressa sobre Jesus nos Evangelhos se refere a coisas terrenas​, ​mas a um conjunto de “negócios espirituais” da alma, seus direitos e obrigações. Emmanuel referiu-se a isso quando comentou em “Vê como vives” [1]:
Com a precisa madureza do raciocínio, compreenderá o homem que toda a sua existência é um grande conjunto de negócios espirituais e que a vida, em si, não passa de ato religioso permanente, com vistas aos deveres divinos que nos prendem a Deus.
Guardados os inúmeros problemas de tradução, textos apócrifos e interpolações mal-intencionadas feitas ao longo do tempo ​que modificaram os Evangelhos originais, é a única interpretação possível para muitos dos ensinos de Jesus no Novo Testamento.

Entretanto, nunca foi intenção de Jesus “reformar” o sistema legal de seu tempo, que tinha regulamento próprio, pois tudo o que Jesus ensinou dizia respeito aos interesses da alma. Assim, por trazer uma nova revelação, seus ensinamentos frequentemente usavam recursos alegóricos. Esses recursos se mostraram eficientes, pois os ensinos morais atravessaram quase que intactos as inumeras versões do Novo Testamento. Neste post, tecemos algumas observações sobre parte da revelação da Justiça Divina trazido por Jesus conforme se pode ler em Mateus 5.

Interpretação espírita de alguns ensinamentos em Mateus 5.

Atenção: para unificar as referências aos textos do Evangelho, em complementação aos versículos extraídos da versão "Almeida revisada", citamos alguns termos equivalentes conforme versão em latim da Vulgata: http://www.drbo.org/lvb/chapter/47005.htm
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. (Mateus 5:19)
A vida futura da alma é o “reino dos céus” não como lugar, mas como conjunto de bens e direitos a que o Espírito tem acesso após muitos estágios de sua vida encarnada.

Os bens ou direitos ​resultam do cumprimento de obrigações da alma que também são de natureza espiritual. Assim, o “será chamado o menor no reino dos céus” (minimus vocabitur in regno caelorum) ​é um estado possível da alma na vida futura. É “situação processual” perante a Lei Maior de onde se derivam os bens a que tem direito, bem como seus deveres e obrigações.

Com o tempo mudam os interesses e as ações da alma. Seus direitos e deveres precisam refletir suas decisões, conforme ela se aproximar ou se afastar da Lei.  Assim, os que “violam um destes mandamentos, por menor que seja” (qui ergo solverit unum de mandatis istis minimis) e “assim ensinam aos homens” (et docuerit sic homines), ou seja, dão testemunho do erro, são rebaixados por Jesus.   Por outro lado, ele eleva de posição aqueles que os cumprem e que também assim “ensinam aos homens”, ou seja, que os defendem como verdade. E “ensinar aos homens” não é mais relevante que realizar a ação: para Jesus, por óbvio, não basta simplesmente dizer o que deve ser feito, mas dar o exemplo pelo cumprimento correto da lei (qui autem fecerit et docuerit).

As Bem-aventuranças compõem a parte principal de seus mandamentos anunciados por ele no Sermão do Monte. Se a posição pode ser abaixada ou elevada é porque não há posições absolutamente eternas e imutáveis nos estágios da alma. Disso resulta que não há penas eternas igualmente.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (Mateus 5:20)
A justiça dos “escritas e fariseus” (scribarum et pharisaeorum) representa o sistema jurídico de todos os tempos, tomado por Jesus como comparação para a Justiça Divina. Mas, essa justiça se baseava na lei de Moises que supostamente provinha do próprio Deus. Ela é, porém, imperfeita e incompleta. E mais: não corresponde à lei Divina anunciada em parte como revelação por Jesus. Portanto, adverte que a nova justiça entre seus reais seguidores deve “exceder” àquela dos escribas (quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum), ainda que essa última fosse considerada de origem divina. 
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. (Mateus 5:21)
O cânone existente proibia o assassinato (non occides). Ocorrendo esse e verificado os fatos, o indivíduo culpado se tornava “réu no juízo” (reus erit judicio) e deveria ser julgado pela justiça. Mas qual justiça? Exatamente a dos “escritas e fariseus”, ou o sistema jurídico que define tipos de punição conforme o crime realizado.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. (Mateus 5:22)
Assim interpôs três possíveis “penas” a três crimes que, na verdade, resume-se a um só a partir da postura mental do Espírito. O rol das “transgressões imputáveis” é expandido na lei Divina, ainda que a morte não lhes suceda como consequência.  Posteriormente, essas transgressões seriam estendidas por Jesus ao incluir o pensamento no mal

As violações enumeradas e suas penas crescem a partir de um impulso violento de oposição: a cólera “contra seu irmão” (quia omnis qui irascitur fratri suo), a agressão verbal simbolizada pelo “Raca” e, depois, “Louco” (fatue).  E, para cada uma delas, os julgamentos: 
réu no juízo (reus erit judicio), 
réu no sinédrio (reus erit concilio) e 
réu no fogo do inferno (reus erit gehennae ignis). 
Essa última comporta a tradução opcional “réu no fogo do Geena”, entendido como uma localidade na Jerusalém antiga que havia se tornado um depósito de lixo. É uma referência ao lugar “mais ínfimo” de uma cidade, não necessariamente ao “fogo eterno”, mesmo porque Jesus posteriormente esclarece como sair de lá (ver mais adiante). Quem preferir a interpretação da eternidade das penas está preparado para o “fogo eterno” ao chamar seu irmão de “Louco”? O Geena correspondia ao Vale de Hinom (Geh Ben-Hinom) na Jerusalém dos tempos de Jesus [2]. Esse era o local onde, em uma época mais remota, crianças eram sacrificadas no fogo em adoração ao deus Moloch [2][3]. 
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti. (Mateus 5:23)
Reconciliar-se com o próximo é a primeira obrigação antes de se buscar adorar a Deus. Importa se lembrar se “teu irmão tem alguma coisa contra ti” (quia frater tuus habet aliquid adversum te), do contrário de nada valem as oferendas. É estado da mente que pede o exame da consciência: há alguém que tenha algo contra mim? E o "opositor" não é menos que um irmão (frater) para Jesus, pois não pode haver oposição senão em razão de um desentendimento transitório. Portanto, como todos são irmãos em essência, todos deverão agir como irmãos. Mas quando? Depois da reparação.
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. (Mateus 5:24)
O “deixa ali diante do altar a tua oferta” (relinque ibi munus tuum ante altare) é mera ação ritual ou mecânica se apartada do cuidado com os próprios atos e suas consequências para quem quer que seja.
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. (Mateus 5:25)
Trecho de relevância ímpar, pois confere a alma o poder de se "livrar do julgamento" ao se reconciliar "depressa" com seu adversário. Não só implicitamente não condena o homem a qualquer eternidade penal, mas o exime de juízo verificado sua capacidade de congraçamento e concórdia com seu irmão transformado em inimigo. A alegoria é clara na imagem do "adversário que te entrega ao juiz, e o juiz te entrega ao oficial" (ne forte tradat te adversarius judici, et judex tradat te ministro).
Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mateus 5:26)
Porém, uma vez "condenado", tão pouco Jesus afirma ser impossível sair de lá, mas que a saída se condiciona ao pagamento do “último ceitil” (novissimum quadrantem), desde que, como visto, não se reconcilie antes com o adversário.

Portanto, não há penas eternas, mas multa calculável e exigível como pagamento pelos delitos listados, até o último “ceitil”, ou seja, “até o último centavo”. É obrigação executada de forma parcelada, em caráter compulsório embora possa ser abrandada conforme o grau de reconciliação. 
Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela. (Mateus 5:28)
O regramento da época instituía uma pena para o adultério (non moechaberis). Jesus porém anuncia que o mero pensamento de cobiça já é adultério, um princípio que pode ser estendido para todo o sentimento no mal que se abriga no coração (in corde suo). Porém, qualquer código de justiça moderno considera inimputáteis quem cometer delitos "apenas pelo pensamento". Uma vez mais os reais seguidores de Jesus devem "exceder" a justiça comum da sociedade em que vivem.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29) 
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:30)
Note-se bem: essa não é uma pena imposta sobre a alma. Do contrário, é o corpo que sofre quando Jesus afirma que "todo o teu corpo (seja) lançado no inferno" (totus corpus tuum mittatur in gehennam). É o Vale de Hinom novamente figurado como local de julgamento e pena, tal como nos delitos de Mateus 5:22. Se o corpo sofre é porque a pena é aplicada durante a vida, mas quantos crimes ficaram impunes pela finitude da vida humana se considerada como uma só? 

Sobre essas passagens, comenta Kardec [4]:
Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta. (grifos nossos)
O vale de Hinom da Jerusalém moderna.
Foto: wikipedia.
Os judeus do tempo de Jesus tinham como lei a necessidade de  conceder divórcio (libellum repudii) à esposa abandonada, numa época em que a mulher era considerada propriedade do marido. Em oposição a isso, Jesus ensina:
Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério. (Mateus 5:32)
pelo que se aprende que o delito se inicia no repúdio (rejeição, desprezo, desamparo), muito mais sutil, e não pelo abandono. Como Jesus sabia que os homens não se casavam em regime de amor incondicional, assinalou uma exceção "a não ser por causa de prostituição" (excepta fornicationis causa). 

Até que a sociedade aprendesse o regime de reciprocidade que existe no casamento como produto de direitos e obrigações iguais entre os cônjuges, 2000 anos se passariam. Porém, a recomendação de Jesus continua intacta: o repúdio ao parceiro, sistemático e talvez diário, é produto de um estado mental que se inicia muito antes da separação.

O regramento judaico proibia o "falso testemunho" (non perjurabis), e exigia o fiel cumprimento do que fosse prometido "diante do Senhor" (autem Domino).
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. (Mateus 5:33)
Jesus elimina a necessidade desse juramento e simplifica consideravelmente a atitude  do indivíduo diante dos outros:
Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto provém do mal. (Mateus 5:37)
Além de condenação da mentira, é uma lição difícil aos que se consideram em "íntimo contato com Deus" e que o tomam como fiador nas ações ordinárias da vida.

O ápex da Lei Divida sintetizado por um novo mandamento.

E assim se chega ao topo dos ensinamentos de Jesus em Mateus 5:44:
Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, (Mateus 5:44)
que é lição em flagrante oposição ao que se aprende seja desde o berço ou por instinto: "amar nosso próximo e odiar nossos inimigos" (diliges proximum tuum, et odio habebis inimicum tuum). É novísima e suprema lei áurea revelada aos homens e justificada por Jesus como esforço necessário para se "aproximar de Deus":
Sede vós, pois, perfeitos,como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus. (Mateus 5:48)
Mas, no "sede vós, pois, perfeitos" (estote ergo vos perfecti) ninguém atinge o estado final de uma hora para outra. Por trás dessa imagem está o imenso caminho que a alma percorre até alcançar seu destino. Kardec comenta seu verdadeiro significado na medida do grau de caridade contido nas ações da alma [5]:
Não podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. 
Cumprir a lei de caridade  é suprema obrigação que a alma não se livra em sua vida maior, pois essa lei condensa em si todos os mandamentos. É um princípio universal que regula a vida do Espírito.

Em conclusão

Ao se (re)encarnar, participa-se de uma nova vida na Terra, sem que a vida real (a "vida eterna" do Espírito) deixe de exercer seus efeitos sobre a alma. 

Assim, dois regramentos sujeitam as ações: o dos homens (de natureza terrena) e a do "céu" (de natureza Divina).  No primeiro caso, extinta a vida do corpo, extintos são os bens e os direitos, deveres e obrigações. No segundo, bens, direitos, deveres e obrigações subsistem, mas de uma natureza inteiramente diversa daquela concebida pela justiça de qualquer época da Humanidade.

Em seus ensinamentos e por meios figurados, Jesus revelou parte das regras dessa nova justiça maior. Antes de tudo, ensinou ele que, para agir conforme tais princípios (ainda que de modo imperfeito), é necessário "exceder" à justiça dos homens. 

Dentre as lições está a da oposição ao "pensamento no mal". Mas, é impensável, em qualquer regramento jurídico humano, pretender punir alguém por simplesmente pensar mal de outrem. Pensar no mal, mesmo sem agir, indica natureza ainda pouco adiantada da alma (o que é verdade para a imensa maioria dos humanos!). Porém, é quando o pensamento no mal se torna ação no mal que o próximo é comprometido e se adquire uma nova obrigação. Surge então o dever de reparação, que é ensinada por Jesus na alegoria do pagamento posterior a um julgamento conforme a gravidade da pena.

Mas, sejamos claros: faz Jesus referência a um pagamento pecuniário?  Obviamente que não, antes isso é uma confirmação do caráter figurado das comparações que usou e que foram captadas quase que sem distorções pelos evangelistas. Esse pagamento é obrigação de natureza espiritual, que não se extingue, portanto, "na vida eterna" –  entendida como a própria vida maior e imperecível da alma em oposição a sua vida terrena ou encarnada – até que seja quitada em sua totalidade.

Naturalmente, só é possível compreender esse sistema de bens, direitos, deveres e obrigações transcendentes em um juízo mais dilatado da existência humana. 

Nesses termos Jesus ensinou como geralmente se sai do terrível Geena. Ao cumprir seus ensinamentos, porém, instruiu a seus seguidores como nunca entrar lá. 

Na nova revelação trazida pelo Espiritismo, o pagamento é realizado em inúmeras existências e o Geena e seu fogo são aqui mesmo na Terra. Dessa forma se regulam na eternidade da vida das almas os crimes, dos mais simples aos mais complexos e graves, já cometidos em toda a Humanidade.

Referências

[1] Emmanuel. Vinha de Luz. Psicografia de F. C. Xavier Ed. FEB, 
[2] Negev, A e Gibson, S. (2001). Hinnom (Valley of). Archaeological Encyclopedia of the Holy Land. Nova Iorque e Londres: Continuum. p. 230. ISBN 0-8264-1316-1.
[3] Wikipedia. Valley of Hinnom (Gehenna). https://en.wikipedia.org/wiki/Valley_of_Hinnom_(Gehenna)
[4] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Bem-aventurados os que têm puro o coração: escândalos). Parágrafo 17. Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/pt/6479
[5] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Sede Perfeitos. Caracteres da perfeição). Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6518&&idioma=1

18 de novembro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VII

Artforms of Nature, 1899–1904, Ernst Haeckel.

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - VI". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Escala dos seres orgânicos

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Fora ainda do contexto da teoria da evolução (que se consolidaria muito depois da publiação de "A Gênese"), Kardec pinta um quadro descritivo da variedade dos seres vivos apontando para uma crescente especialização das formas.

Um exemplo que econtramos neste Parágrafo é a referência aos zoófitos. Mas a palavra "zoófito" se tornou obsoleta com o tempo e designava "animais-plantas" ou seres que, não obstante considerados como animais, têm aparência de planta. Sua existência dava aos antigos biologistas um elo de ligação entre animais e plantas. Ela explicava como certas espécies dessas últimas (como o algodão) produziam coisas que animais também pareciam produzir. O termo e o que ele implicava foi assunto de inúmeros debates [1]. Kardec ecoa esse conhecimento antigo ao declarar que:

O zoófto tem a aparência exterior da planta. Como planta, mantém-se preso ao solo; como animal, a vida nele se acha mais acentuada: tira do meio ambiente a sua alimentação.

É importante considerar que mesmo Darwin utilizou o termo. Modernamente se sabe que não existe essa ligação. Os zoófitos dos antigos são hoje encontrados em muitos seres marinhos como as anêmonas e outras criaturas de "simetria radiada", ou seja, que apresentam estruturas distribuídas em torno de um centro.

Kardec apresenta uma escala de seres na seguinte ordem: pólipos, helmintos, moluscos, crustáceos, insetos, vertebrados e mamíferos:

Pólipos representam hoje o filo Cnidaria dentro os quais se encontram as medusas e as anêmonas. 

Helminto é o termo derivado do grego para "verme". Kardec cita os "vermes intestinais" em uma referência ao uso dessa palavra na medicina. Modernamente "se entende como verme o animal com o corpo alongado e/ou achatado e sem esqueleto interno ou externo" (ver ref. Wikipedia: Verme). Eles são quase que onipresentes na Natureza. Englobam vários tipos de organismos, mas o termo antigo caiu em desuso. 

Os moluscos são classificados modernamente como pertencentes ao filo Mollusca e representam animais invertebrados, tanto de água doce e marinha como também terrestres (p. ex., os caracóis). 

Os crustáceos são invertebrados (sem coluna vertebral) artrópodes (com exoesqueleto duro) dentre os quais se destacam os siris, caranguejos e camarões (mas não somente animais marinhos). 

Insetos também pertencem ao filo Arthropoda e são invertebrados com características morfológicas únicas como possuirem um exoesquelo quitinoso. Representam mais de 70% em termos de multiplicidade de espécies animais. 

Ao desenvolverem uma coluna vertebral e um sistema nervoso, os vertebrados formam uma subdivisão dos animais cordados. Em termos temporais, sua origem remonta ao aparecimento dos primeiros fósseis de vertebrados há 450 milhões de anos. O que caracteriza os vertebrados é a presença de uma coluna vertebral, crânio, a presença de um sistema muscular e um sistema nervoso. 

Finalmente, como uma subdivisão do ramos dos vertebrados, chegamos aos mamíferos. Kardec os descreve como animais com uma "organização mais completa". Em termos descritivos, os mamíferos são animais com temperatura interna regulada (endotérmico), cujas fêmeas produzem leite por meio de glândulas mamárias. 

Os humanos pertencem a essa subclasse. Os humanos são assim descritos modernamente como seres do domínio Eukariota, no reino Animalia, com filo Chordata e subfilo Vertebrada, subdivididos na superclasse dos Tetrapoda, de classe Synapsida e subclasse Mammalia. Porém, a classificação não termina aqui. Até o gênero Homo da espécie Sapiens, há ainda mais 11 subdivisões...

Fig. 1 Linha do tempo simplificada em bilhões de anos mostrando os principais eventos naturais conforme a visão moderna da evolução. Nesse quadro imenso, destacam-se: a formação dos organismos com núcleo celular (Eucariontes), a "revolução Cambriana" e o aparecimento dos primeiros hominídeos. O uso do fogo, por exemplo, ocorreu em um milésimo de bilhão de anos atrás, ou seja, há aproximadamente 1 milhão de anos. Fonte original: wikipedia. (clique na imagem para ampliar)

Em termos atuais essa escala pode ser apreciada por meio das classificações taxonômicas modernas. Essas objetivam reduzir a variabilidade observada entre diferentes animais agrupando-os em "taxa" que acabam por formar uma grande árvore. Partindo-se de uma divisão em "reinos", esses são subdivididos em "filos". Os filos são subdividios em "classes", essas em "ordens", essas em "famílias", as famílias são separadas por "gêneros" e, finalmente, os gêneros são subdivididos em espécies. Dentro de cada espécie admite-se também subdivisões em "subespécies".  

O aumento da complexidade nos mamíferos (chamada frequentemente "diversidade") se manifesta pela existência de um número grande de espécies, e os ramos da árvore se tornam mais preenchidos. Entretanto, essas classificações refletem muito aspectos morfológicos, tanto que os insetos acabam por formar o maior ramo da árvore dos animais pela enorme diversidade com que se manifestam. 

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A noção de que os organismos com funções e organizações complexas são modificações gradativas de espécies anteriores é descrito por Kardec:

Compreende-se então a possibilidade de que os animais de organização complexa não sejam mais do que uma transformação, ou, se quiserem, um desenvolvimento gradual, a princípio insensível, da espécie imediatamente inferior e, assim, sucessivamente, até o primitivo ser elementar.

Uma imagem resumida da evolução ao longo de bilhões de anos pode ser vista na Figura 1.  Nada se sabia na época sobre como tais transformações ocorriam. Ao questionamento de Kardec:

Ora, se a glande encerra em latência os elementos próprios à formação de uma árvore gigantesca, por que não se daria o mesmo do ácaro ao elefante?

podemos responder hoje que os "elementos próprios" que unificam a escala dos seres, do ponto de vista material, está no material genético que os compõem.  Assim, o grande elo de ligação reconhecido entre todos os seres, dos mais primitivos aos mais complexos e especializados, são seus constituintes genéticos.

Como vimos anteriormente [2], a tese da geração espontânea era aceita por grande parte dos acadêmicos na época de Kardec. Ele reporta esse estado ao comentar que essa teoria "é a que tende evidentemente a predominar hoje na ciência". Neste Parágrafo, Kardec segue assim a ciência de seu tempo e considera a ideia das "transformações gradativas" entre os seres diante da noção de geração espontânea. As transformações seriam assim um modo alternativo da Natureza de gerar novas espécies porque cada uma delas adquiriu "a faculdade de reproduzir-se" e "os cruzamentos acarretaram inúmeras variedades". Os seres mais simples se reproduziriam espontaneamente, enquanto que os organismos mais complexos transformavam-se com o tempo.

Essas noções sofreram mudanças profundas com a teoria da evolução de Darwin, o mutacionismo e a moderna genética. A geração espontânea foi expurgada da Biologia enquanto que o único mecanismo possível de criação de novas espécies está na evolução e nos inúmeros detalhes que operam seu mecanismo. As provas da evolução com organismos muito simples foram amplamente coletadas e constantemente monitoradas. Um exemplo que se tornou popular são as descrições da evolução do vírus da Covid-19, ver por exemplo, um trabalho recente em [3]. 

Essa mudança na maneira de se descrever o surgimento dos seres vivos não altera uma compreensão maior que devemos ter sobre a ligação espiritual que os une e que, um dia, também será reconhecida. Talvez seja possível dizer que uma consequência dessa ligação espiritual seja o elo material na forma das estruturas comuns que os conectam em uma grande hierarquia de criaturas. 

Referências

[1] Gibson, S. (2012). On Being an Animal, or, the Eighteenth-Century Zoophyte Controversy in Britain. History of science, 50(4), 453-476.

[2] Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

[3] Li, F. (2016). Structure, function, and evolution of coronavirus spike proteins. Annual review of virology, 3(1), 237.



20 de outubro de 2022

Comentários sobre a Gênese Orgânica de "A Gênese" - VI

Frasco do experimento de Pasteur. Imagem colhida em [1].

Continuação do post anterior: "Comentários sobre a Gênese Orgânica de 'A Gênese' - V". Estudo sobre o Capítulo X de "A Gênese" de A. Kardec.

Geração espontânea

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A questão proposta por Kardec ainda preocupa a ciência atual:
Formam-se, nos tempos atuais, seres orgânicos pela simples reunião dos elementos que os constituem, sem germens, previamente produzidos pelo modo ordinário de geração, ou, por outra, sem pais nem mães?
Antes que se levante uma voz dissonante, falando sobre uma respostas já fornecida pela ciência, pedimos que o leitor dilate seu pensamento. Veremos aqui que permanece como questão atual, pois a solução dada para o problema antigo da geração espontânea não resolveu o dilema da origem da vida: ainda se formam seres vivos, em qualquer lugar do Universo, tão só pela simples reunião dos elementos que os constitutem? Reformulada em termos de um problema do início da vida, a "geração espontânea" recebeu modernamente um novo nome: abiogênese.

E o debate também continua, ao lado dos que são a favor da abiogênese ou da "biologia sintética" [1] podemos encontrar seus opositores [3]. Como a comunidade acadêmica se apoia em princípios mecanísticos, a abiogênese é a crença dominante. De qualquer forma, o problema da origem da vida, já transparecia a Kardec pois, neste parágrafo, ele declara:

Esta maneira de entender deixa sempre em aberto a questão da formação dos primeiros tipos de cada espécie.

Referia-se ele ao debate de sua época, sobre se a Natureza ainda produziria (obviamente na Terra) seres de forma espontânea.

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Demonstrando estar bem informado sobre o debate científico de sua época, Kardec pondera corretamente que a geração espontânea somente poderia ocorrer em seres "rudimentares", ou seja, organismos compostos de poucas ou apenas uma célula. Ele reafirma o caráter "espontâneo" do aparecimento da vida em sua origem e separa o problema em dois, deixando claro a querela entre biologistas de seu tempo sobre se ainda essa criação estaria ocorrendo:

Foram esses, com efeito, os primeiros que apareceram na terra e cuja formação houve de ser espontânea. Assistiríamos assim a uma criação permanente, análoga à que se produziu nas primeiras idades do mundo.

Obviamente, a ponderação continua válida, se não nos limitarmos ao planeta Terra, mas à possibilidade de surgimento da vida em outros planetas. É um despropósito acreditar que a Terra, em todo o Universo com trilhões e trilhões de planetas, seja o único que tenha apresentado as condições de gerar vida.

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Em paralelo à possibilidade de geração espontânea em organismos unicelulares, por que ela não ocorreria com seres mais complexos? Essa questão era um obstáculo claro à ideia da geração espontânea. Por isso, seria "imprudente e prematuro apresentar meros sistemas como verdades absolutas".

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Neste parágrafo temos uma curiosa afirmação de Kardec:

Se a geração espontânea é fato demonstrado, por muito limitado que seja, não deixa de constituir um fato capital, um marco de natureza a indicar o caminho para novas observações.

Como assim que a geração espontânea seria "fato demonstrado"? Infelizmente, não era costume nos textos do Século XIX apresentar mais citações que embasassem o que se afirmava. Por isso, no presente, poderemos tão só especular sobre quais teriam sido as fontes usadas, nesse caso por Kardec, para sustentar essa afirmação. Isso nos leva a uma revisão histórica do debate sobre a geração espontânea.

Breve revisão da história do debate da geração espontânea no Século XIX.

Para isso, usamos pesquisas recentes sobre o tema. Uma delas é o excelente estudo de Lilian Al-Chueyr P. Martins (2009, [4]) sobre equívocos na maneira como a história do debate sobre a geração espontânea é apresentada hoje em dia.

Félix Archimède Pouchet (1800-1876), imagem segundo [4], realizou experimentos cuidadosos em 1856 que pareciam demonstrar a geração espontânea.

Ficamos sabendo, por exemplo, das pesquisas realizadas por Félix Archimède Pouchet (1800-1876), diretor do Museu de História Natural de Rouen, que realizou diversas demonstrações cuidadosas e bastante favoráveis à geração espontânea em 1856. Por serem bem feitos, os experimentos de Pouchet provocaram forte impressão na Academia de Ciências de Paris. Estaria Kardec se referindo, na passagem citada acima, aos experimentos de Pouchet?

Segundo [4]:

Depois de três anos de pesquisas, Pouchet publicou um livro sobre o assunto, denominado "Hétérogénie ou traité de la génération spontanée". Essa obra tem um longo histórico da questão (quase 100 páginas), seguido por uma discussão filosófica sobre o tema. Depois discute a questão da origem da vida na Terra, defendendo que os primeiros organismos se formaram espontaneamente – mas esclarecendo que isso não era uma concepção anti-religiosa. Por fim, o livro apresenta um grande número de experimentos nos quais parecia estar ocorrendo geração espontânea de microorganismos.

Além disso, os experimentos de Pouchet foram confirmado por outros cientistas. Essas observações demonstram que o ambiente acadêmico sobre o assunto não se definiu facilmente como contrário à geração espontânea como descrevem livros textos educacionais modernos sobre o assunto [4]. O papel de Pasteur e sua participação no prêmio Alhumbert também é esclarecido em [4]:

Como a questão das gerações espontâneas trazia conseqüências não apenas científicas mas também de âmbito filosófico, religioso e até mesmo político, em janeiro de 1860 a Academia de Ciências de Paris ofereceu um prêmio no valor de 2.500 francos (o Prêmio Alhumbert) para o melhor trabalho sobre o assunto. Provavelmente foi a pesquisa de Pouchet que levou à criação desse prêmio.

O objetivo do prêmio era favorecer pesquisas contrárias à geração espontânea, tanto que, entre seus julgadores, todos eram oponentes da ideia. Seu apoiadores, no outro lado, sabendo das condições do prêmio, recusaram-se a participar dele. Tendo Pasteur adotado posição contrária à geração espontânea e sendo o únido participante, recebeu o prêmio em 1862, realizando um conjunto de experimentos que pareceram, para a Academia Francesa, demonstrar a impossibilidade de criação espontânea da vida.

A tese defendida em [4] é que os relatos históricos apresentados em muitos livros modernos é de uma história contada de trás para diante. Como hoje em dia sabemos da impossibilidade da geração espontânea na Terra, o relato é montado de forma a parecer que o experimento de Pasteur conferiu o último golpe à teoria, o que é falso. Isso permite compreender a afirmação apresentada logo no início do Parágrafo 23, se os trabalhos de Pouchet pareceram a Kardec como de maior impacto em sua época. Essa hipótese tem apoio em [4]:

É relevante mencionar que, na época, uma grande parte das pessoas cultas acreditou que Pouchet estava correto e que a Academia havia cometido um erro. A Enciclopédia Larousse, por exemplo, considerava em 1865 que os heterogenistas haviam vencido a disputa. Portanto, a posição da Academia não levou a uma decisão sobre o assunto e continuaram a surgir trabalhos de pesquisa favoráveis à geração espontânea, tanto na França quanto em outros países, durante muito tempo. (grifos nossos)

Os "heterogenistas" eram os adeptos da teoria da geração espontânea. Os debates sobre o assunto continuaram até, pelo menos, 1900. Entretanto, livros didáticos modernos de Biologia dificilmente fazem referência a tais experimentos em apoio à geração espontânea que foram realizados depois do prêmio oficial de Pasteur.

Em suma, na época da publicação de A Gênese, as "pessoas cultas" na França consideravam que a geração espontânea havia sido demonstrada. No extremo oposto, Pasteur tinha ganhado um "prêmio de consolação" concedido por um torneio suspeito e esvaziado da Academia Francesa, que não foi suficiente para convencer a maioria. O debate sobre a geração espontânea, misturado ao ambiente de discussão política, talvez impedisse um visão mais clara do assunto. Por essa razão, Kardec finaliza o citado Parágrafo com a bela ponderação:

No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos estabelecer a teoria da geração espontânea permanente, senão como hipótese, mas como hipótese provável e que um dia, talvez, tome lugar entre as verdades científcas incontestes.

Muito provavelmente, a motivação dos cientistas favoráveis à geração espontânea na época de Kardec era resolver o problema da origem da vida. Demonstrado que a vida poderia surgir espontaneamente em qualquer lugar da Terra, ficava dissolvido o problema de decidir quando a vida ocorreu pela primeira vez. Como a questão se definiu pela impossibilidade da geração espontânea presente (sem impedir sua ocorrência em  outros planetas), o problema da origem da vida permanece como um dos mais intricados embróglios científicos presentes. 

Recomendamos também a leitura de  "A geração espontânea e a Gênese" [5] de julho de 1868.

Referências

[1] Pasteur's "col de cygnet" (1859). British Society for Immunology. https://www.immunology.org/pasteurs-col-de-cygnet-1859

[2] Attwater, J., & Holliger, P. (2014). A synthetic approach to abiogenesis. nature methods, 11(5), 495-498. https://www.nature.com/articles/nmeth.2893 

[3] Bergman, J. (2000). Why abiogenesis is impossible. Creation Research Society Quarterly, 36(4), 195-207.    http://herbertarmstrong.org/Miscellaneous/Why%20Abiogenesis%20is%20Impossible.pdf

[4] Martins, L. A. C. P. (2009). Pasteur e a geração espontânea: uma história equivocada. Filosofia e História da Biologia, 4(1), 65-100.    http://www.abfhib.org/FHB/FHB-04/FHB-v04-03.html 

[5] Ver: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6191&&idioma=1

23 de setembro de 2022

Experiências de quase-morte: considerações sobre explicações convencionais recentes.

 

Uma proposta nos chegou para divulgar experiências mais recentes de EQM (ou "experiências de quase-morte", em ingle NDE ou "near death experiences"). De fato, posts sobre essas experiências são um pouco antigos aqui (um deles já tem 10 anos...[1]). Desde então, o que mudou? Ao longo do tempo, muitas outras experiências foram relatadas. Os leitores poderão acessar, por exemplo, os sites da International Association for Near-Death Studies (IANDS e sua revista especializada Journal of Near-Death Studies) ou da Near-Death Experience Research Foundation (NDERF). Esses locais na rede dedicam-se ao acúmulo e estudo de relatórios de experiências de quase-morte de uma maneira sistemática.

De forma mais específica, de 2012 até 2022, o que a comunidade acadêmica disse a respeito do assunto? Por "comunidade acadêmica" entendemos aqueles que não comungam das mesmas explicações de alguns dos investigadores pioneiros do assunto, como é o caso de R. Moody, S. Parnia [3], ou o Dr. Bruce Greyson [4]. Esses pesquisadores têm sido em parte responsáveis pela divulgação desses eventos na grande mídia. Eles chamam atenção para o caráter anômalo dos reportes de EQM; ao fato de que elas "sugerem" continuidade da vida após a morte.

Um debate tem se estabelecido naturalmente entre os adeptos da explicação "sobrevivencialista" (de que as experiências informam sobre uma realidade maior além da vida) e os que negam qualquer coisa nesse sentido. Exemplos de opiniões nessa última direção podem ser lidos em [2], [2b], [5], [6] e [7]. Isso é plenamente compreensível porque não existe uma teoria completa sobre a consciência, que é considerada um subproduto da atividade do cérebro. De acordo com essa visão acadêmica majoritária, as EQMs seriam apenas reações normais de um cérebro em perigo de vida, algo como as reações de "tanatose" dos insetos.

O problema da falta e uma teoria da consciência

Problemas começam com as definições apropriadas de "morte cerebral". Essa definição é fundamental para se entender o fenômeno, uma vez todos que reportaram a experiência sobreviveram. Ou seja, o cérebro não estava "morto" de fato, não obstante a parada cardíaca. 

Para se ter uma ideia da confusão reinante, devemos considerar trabalhos extensivos de mapeamento de regiões cerebrais e sua associação com funções cognitivas fundamentais. Diz-se que tais funções são "geradas" ou "processadas" em regiões super específicas do cérebro. Isso  não é diferente de dizer que a causa para as operações do pensamento está no tecido neural dessas regiões. Essa explicação, porém, é abalada pelo conceito de "plasticidade cerebral" nos casos de pacientes com lesões sérias em determinadas parte do cérebro, mas sem qualquer impacto em seu comportamento cognitivo. Essa plasticidade é definida como a "capacidade do cérebro de alterar sua estrutura e função" [8]. Ora, diante disso, o que de fato, gera as funções cognitivas? Ao invés de regiões e tecidos específicos, a explicação envolve reconhecer que o cérebro em seu conjunto é a própria origem, o que torna o mapeamento inócuo de um ponto de vista fundamental. Toma-se o próprio fenômeno como a causa. 

A identificação mais profunda da causa é ainda obscurecida pela "complexidade" das conexões entre os bilhões e bilhões de neurônios que formam o cérebro. Essa complexidade seria a própria causa, como parece ser a explicação vigente, sendo que a variedade, riqueza e multiplicidade das experiências conscientes é resultado de uma organização inacessível na escala microscópica. Oculto na complexidade qualquer explicação é possível e talvez indique um problema na metodologia de pesquisa dos fenômenos de EQM.

Essas dificuldades metodológicas são evidentes diante de um dos primeiros monitoramentos aparentemente completos da atividade cerebral durante um episódio de óbito. Como descrito em [9], ele foi realizado apenas em 2022. Há claras dificuldades operacionais e éticas, como conseguir autorização da família para realizar estudos científico em um parente querido com quadro clínico constatado como irreversível. 

Opinião convencional vigente

A referência [2b] resume o estado de ânimo reinante nos defensores das explicações convencionais. A autora pondera:

Aceito a realidade dessas experiências intensamente vivenciadas. Elas são tão autênticas quanto qualquer outra percepção ou sentimento subjetivo. Como cientista, entretanto, opero sob a hipótese de que todos os nossos pensamentos, memórias, percepções e experiências são consequências inevitáveis de causas naturais em nosso cérebro ao invés de experiências sobrenaturais. Essa premissa serve muito bem a ciência e suas criações tecnológicas ao longo dos últimos séculos. A menos que existam evidências objetivas, convincentes e extraordinárias ao contrário, não vejo razão para abandonar esse pressuposto.

Há claramente um problema de percepção das causas aqui. A sobrevivência é considerada uma "experiência sobrenatural" sem se especificar o que isso significa: seria uma quebra da ordem natural completamente desnecessária na teoria da sobrevivência? De resto, é evidente que todas as experiências de EQM são filtradas pelo cérebro, tal como o são as experiências cognitivas normais. Não obstante isso, a essas últimas é conferido o caráter de "realidade" que existe independende da "recriação" cerebral. Mas não há nada nas explicações neurológicas convencionais que explique como isso é possível. Tanto faz, neurologicamente falando se "o cérebro vê uma lâmpada externa acesa" ou "imagina ver uma lâmpada" (as mesmas regiões do cérebro são usadas na percepçao e na imaginação de algo).

Desprovido de qualquer referência de informação da realidade externa, a explicação convencional é resumida por esta passagem em [2]:

Sem surpresa, muitos consideram as EQMs como evidências de vida após a morte, do céu ou da existência de deus. As descrições de deixar o corpo ou de uma bem-aventurada união com o universal parecem ter origem em crenças religiosas sobre almas deixando o corpo na morte e subindo em direação a um céu das bem-aventuranças. Mas, essas experiências são compartilhadas entre uma ampla gama de culturas e religiões de forma que não é improvável que elas sejam reflexo de expectativas religiosas específicas. Ao invés disso, esse caráter comum sugere que as EQMs se originam de algo mais fundamental do que expectativs religiosas e culturais. Talvez as EQM reflitam mudanças em como o cérebro funciona quando nos aproximamos da morte.

Em suma: a regularidade e uniformidade de relatos é atribuido a uma "crença religiosa generalizada", que tem como causa nada além de ocorrências comuns no cérebro. A universalidade da experiência tem como origem a universalidade da bioquímica do que ocorre no cérebro moribundo.

A extraordinariedade, objetividade e convencimento das EQM devem ser buscadas no caráter de "realidade externa" independente que alguns relatos demonstram e que é um mistério para as explicações convencionais. 

A ligação entre EQMs e a realidade externa

Assim, é bastante claro que, se as EQM permanecerem como "experiências vividas e significativas" para quem as experimenta, elas permanecerão também indistinguíveis de estados fantasiosos "normais". Esse caráter significativo e impactante é irrelevante para a explicação convencional da mente como produto do cérebro.  Qualquer coisas que se imagine, se vivencie será sempre uma experiência privada e, portanto, uma fantasia produzida pelos neurônios cerebrais.

Mas, será apenas isso o que as EQMs relatam?  O interesse contemporâneio de neurocientistas pelos casos de EQM passam muitas vezes longe de relatos anteriores na literatura especializada de EQMs verídicas [10].  Por esse nome se designam EQMs em que os pacientes descrevem coisas no mundo externo que seria impossível a eles descrever no estado e na posição de seus corpos no momento da experiência. Existem inúmeros casos reportados e um deles já foi descrito aqui [10b]. Porém, uma peculiaridade do meio de pesquisa simplesmente considera tais casos como "pura ficção".

Em um trabalho recente [11], Stripp considera que os relatos de EQM verídicas são desprezados intencionalmente pela comunidade acadêmica conforme o "viés reducionista" dominante. Sobre as "falácias ontológicas e epistemológicas" associadas a NDEs, Stripp pondera corretamente [12]:

Tais declarações são baseadas em suposições ontológicas materialistas. Essas são suposições para as quais os autores não conseguem mencionar nem discutir, dando origem a um falácia de pensamento circular: uma vez que tudo está na biologia, as EQMs tem um objetivo biológico. Não estou a argumentar contra esses aspectos comuns em todos os humanos, mas sugiro que tais aspectos podem não resultar integralmente dos componentes biológicos do corpo humano. Simplesmente não conhecemos tudo o que nos mantem coesos. Além disso, objetividade pura é, em muitos cenários, impossível, considerando que sempre haverá alguma subjetividade e decisões humanas em toda pesquisa. Essa subjetividade introduz um viés que deve ser criticamente avaliado. Mesmo os axiomas mais comuns da ciência são construções humanas e devem ser considerados como tal.

Em outras palavras: quando evidências verídicas são fornecidas, os relatos não são considerados suficientemente "objetivos" para merecerem "crédito acadêmico", sob uma suposta exigência de objetividade. Mas isso é imcompatível com a natureza do fenômeno estudado. 

Essa falta de consideração é cuidadosamente selecionada para que apenas os relatos que se adequam à visão materialista vigente façam sentido. Muitas abordagens convencionais acabam, portanto, apenas se dedicando aos aspectos do fenômeno que podem ser aparentemente explicados justamente por aquilo que pesquisadores acreditam desde o início. Por exemplo: reduzir NDEs a experiências semelhantes a  "alucinações provocadas por drogas" é uma das estratégias de desconstrução da rica fenomenologia dos relatos [12]. Alguns pesquisadores [13] têm denunciado essa postura que não pode ser considerada científica.

No nosso entendimento, esse estado de coisa é lamentável como postura "científica", mas perfeitamente compreensível. Não será possível promover uma revolução na maneira de pensar da academia sem estudos sistemáticos sejam conduzidos com os fenômenos de EQM. Aliás, sobre isso, o que será mais "extraordinário" realizar é a completa mudança de mentalidade a respeito do assunto. Por serem fatos que devem ser "colhidas de passagem" (como diria Kardec), será muito difícil estabelecer qualquer tipo de controle rigoroso  na sua frequência, ocorrência e avaliação. Seria o mesmo que querer validar em laboratórios fenômenos esporádicos que somente ocorrem na Natureza em grande escala. Entretanto, as EQM fornecem e sempre fornecerão evidências bastante convincentes da realidade da continuidade da vida a despeito das tentativas de acomodá-la a concepções preconcebidas.

Referências

[1] Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011). https://eradoespirito.blogspot.com/2012/11/reflexoes-sobre-o-contexto-de.html

[2] R. Martone (2019). "New Clues Found in Understanding Near-Death Experiences".https://www.scientificamerican.com/article/new-clues-found-in-understanding-near-death-experiences/

[2b] C. Koch (2020). What Near-Death Experiences Reveal about the Brain. https://www.scientificamerican.com/article/what-near-death-experiences-reveal-about-the-brain/

[3] Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia). https://eradoespirito.blogspot.com/2011/11/livro-iii-o-que-acontece-quando.html

[4] Near-Death Experiences (NDEs). https://med.virginia.edu/perceptual-studies/our-research/near-death-experiences-ndes/

[5] Evrard, R., Pratte, E., & Rabeyron, T. (2022). Sawing the branch of near‐death experience research: A critical analysis of Parnia et al.’s paper. Annals of the New York Academy of Sciences.

[6] Hannah Flynn (2022). When are we really dead? New study sheds lighthttps://www.medicalnewstoday.com/articles/when-are-we-really-dead-new-study-sheds-light

[7] Martial, C., Gosseries, O., Cassol, H., & Kondziella, D. (2022). Studying death and near-death experiences requires neuroscientific expertise. Annals of the New York Academy of Sciences. https://orbi.uliege.be/bitstream/2268/293819/1/comment%20on%20parnia%20et%20al_final.pdf

[8] Kolb, B., & Whishaw, I. Q. (1998). Brain plasticity and behavior. Annual review of psychology, 49(1), 43-64.

[9] Vicente, R., Rizzuto, M., Sarica, C., Yamamoto, K., Sadr, M., Khajuria, T., ... & Zemmar, A. (2022). Enhanced interplay of neuronal coherence and coupling in the dying human brain. Frontiers in aging neuroscience, 80.

[10] Ring, K., & Lawrence, M. (1993). Further evidence for veridical perception during near-death experiences. Journal of Near-Death Studies, 11(4), 223-229.

[11] Stripp, T. K. (2022). Near-death experiences and the importance of transparency in subjectivity, ontology and epistemology. Brain Communications, 4(1), fcab304.

[12] Van Lommel, P. (2011). Near‐death experiences: the experience of the self as real and not as an illusion. Annals of the New York Academy of Sciences, 1234(1), 19-28.

[13] Moreira-Almeida, A., Costa, M. D. A., & Coelho, H. S. (2022). Cultural Barriers to a Fair Examination of the Available Evidence for Survival. In Science of Life After Death (pp. 73-77). Springer, Cham.