25 de agosto de 2020

A razão das antipatias que sofremos na Terra

Bobo risonho, J. Cornelisz van Oostsanen (~1500). Fonte: Wikipedia.

(...) Um espírito mau antipatiza com quem quer que o possa julgar e desmascarar. Ao ver pela primeira vez uma pessoa, logo sabe que vai ser censurado. Seu afastamento dessa pessoa se transforma em ódio, em inveja e lhe inspira o desejo de praticar o mal. O bom Espírito sente repulsão pelo mau, por saber que este o não compreenderá e porque díspares dos dele são os seus sentimentos. Entretanto, consciente da sua superioridade, não alimenta o ódio, nem inveja contra o outro. Limita-se a evitá-lo e a lastimá-lo. ("O Livro dos Espíritos, resposta à questão 391.)

A ciência espírita não só trata do conhecimento das manifestações espíritas ou dos mecanismos entre o espírito e o perispírito. Essa ciência, que ainda está em sua tenra infância, permite compreender de forma racional um conjunto de influências tanto boas como más que recebemos durante nossas vidas. 

Essa compreensão se alicerça na imagem nova que a revelação traz, principalmente, da verdadeira razão da existência humana. É verdade que a moderna psicologia propõe procedimentos e elabora recomendações sobre como devemos proceder psicologicamente em nossas vidas. Porém, a revelação dos Espíritos nos traz ingredientes adicionais pelos quais é possível absorver um pouco mais racionalmente essas recomendações. Há obviamente racionalidade em todo tratamento psicológico: o de melhorar a vida e restaurar a felicidade e a paz de espírito. Mas, todo e qualquer ensinamento adicional que colabore com esse objetivo é bem-vindo. Não há maior ensinamento sobre a vida do que conhecer sua razão de ser e objetivo final. 

As causas das simpatias, mas principalmente, antipatias que enfrentamos na vida está bem descrito no Cap. VII da 2a Parte de "O Livro dos Espíritos". Ainda motivado pelas complexidades da "Volta do Espírito à Vida Corporal" (O Capítulo VII), há  uma seção inteira dedicada a "simpatia e antipatia terrenas". É importante dizer que não há nada de inerentemente ruim ou bom no fato de dois Espíritos sentirem, por exemplo, antipatia recíproca. Isso está bem claro na resposta à Questão 390:

De não simpatizarem um com o outro, não se segue que dois Espíritos sejam necessariamente maus. A antipatia, entre eles, pode derivar da diversidade no modo de pensar. À proporção, porém, que se forem elevando, essa divergência irá desaparecer e a antipatia deixará de existir.

Como consequência dessa independência, a antipatia não nasce primeiro naquele Espírito de natureza inferior: "Numa e noutra indiferentemente, mas distintas são as causas e os efeitos nas duas" diz o início da questão 391, cuja segunda parte citamos no começo deste post. Não obstante a antipatia ser recíproca, ela provoca em cada Espírito reações diferentes.

No inferior, ela amplifica sentimentos já existentes de inveja, ódio e do "desejo de praticar o mal". Disso segue que, embora o sentimento seja recíproco, a parte mais inferior quase sempre toma a iniciativa da prática lamentável, da perseguição, da injúria ou da maledicência, ações que, sem freio, são a causa de muitos crimes que assistimos todos os dias nos noticiários. 

"Minha mãe não gosta de mim" ou as antipatias na família.

Uma leitura desatenta da seção que estudamos aqui pode levar a pensar que os Espíritos apenas se referiam a antipatias 'fortuitas' que encontramos em nossas vidas, problemas entre amigos ou nas relações profissionais. A mais difícil lição para os Espíritos encarnados é a de serem obrigados a enfrentar antipatias dentro da própria família. Pois, como consequência do ensino dos Espíritos, não há obrigações inatas ou genéticas para que uma mãe, um pai ou filhos amem-se, caso sejam Espíritos antipáticos.

Muitos se escandalizam com essas conclusões, mas o sentimento de revolta é, na verdade, consequência dos ditames culturais e do que seria 'natural' encontrar, mas não da realidade oculta da Vida Maior que se mostra nos casos particulares. De fato, as leis de afinidade entre os Espíritos e as vidas pregressas explicam muitas das antipatias observadas no seio das famílias. Muitos se perguntam por quê? A resposta ai está. Tais espíritos podem ser antipáticos, mas não necessariamente maus, repetimos.

Mas, não importa a cor, a cultura, o laço de relação familiar ou a educação que adorne aquele que pratica atos como racismo, bulling, perseguições sistemáticas por motivos fúteis e outros. Serão sempre prova da natureza inferior da personalidade de seus Espíritos que estarão sujeitos à correção no futuro. Por outro lado, muito melhores são os pais e filhos que, não obstante antipatias entre si, seguem firmes os princípios de respeito e justiça.

Também não é verdade que a antipatia que sentimos por alguém próximo ou distante na família seja exclusivamente fundada em ações de vidas anteriores. Muitas vezes isso é afirmado entre os espíritas, mas uma leitura atenta da seção que estudamos aqui traz essa consequência lógica, que também vale para as afinidades:

Dois Espíritos, que se ligam bem, naturalmente se procuram um ao outro, sem que se tenham conhecidos como homens. (Resposta à questão 387)

Reconhecido uma antipatia mútua, é importante que cada um busque evitar qualquer contenda, criando uma atmosfera de respeito mútuo. Ora, isso nasce mais naturalmente em quem tem o Espírito mais desenvolvido. Reconhecida a antipatia, surge imediatamente a repulsa pela situação, a ânsia pela fuga ou distanciamento do outro. Segundo os Espíritos, isso é bastante natural, e a situação cai na classe das "vicissitudes" da vida - dos testes ou provas a que os Espíritos estão sujeitos para melhor controlarem seus sentimentos. 

Não há uma pergunta específica em "O Livro dos Espíritos" sobre o que acontece quando os dois Espíritos têm o mesmo grau de esclarecimento, mas são antipáticos. Mas a resposta, obviamente, é uma consequência lógica dos princípios enunciados.  Também, de acordo com a resposta à Questão 390, Espíritos verdadeiramente superiores não mantêm antipatias, pois não mais estão sob influência das paixões inferiores. Assim, à medida que se elevam, a "antipatia deixará de existir". Isso não implica que, em missões na Terra, não sofram eles também antipatias. De fato, isso é o que mais ocorre, pois são muito diferentes do meio que encontram.

Antipatias entre os não esclarecidos

Resta, porém, o dificílimo problema de como lidar com a antipatia que nasce entre Espíritos de natureza inferior. Desde que a razão não intervenha e induza a ambos reconhecer que o melhor para os dois é manterem a devida distância, a relação quase sempre evolui em espiral descendente de sentimentos, da prática abusiva de perseguições sem justificativas, que podem acabar em crimes, alguns até hediondos. Incapazes de compreender a origem da antipatia, procedem instigando-se uns aos outros. Adquirem assim débitos que somente poderão ser quitados em futuras existências - quase sempre em situações ainda mais difíceis. Muitos dos que estão no entorno desses Espíritos sofrem consideravelmente, quando não acabam se transformando em verdadeiros grupos antagônicos e inimigos declarados. 

Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de Hieronymus Bosch (1490).

Incapazes de compreender a origem da antipatia que sempre permanece oculta - seja por uma falta de afinidade natural ou por reconhecimento mútuo com causas no passado, a escalada do mal que alimenta as antipatias entre os Espíritos somente pode ser contrabalançada pelo perdão das ofensas. Essa é a mais difícil lição a que os Espíritos libertos do mal em si próprios estão sujeitos: o de perdoarem os erros e as falhas daqueles que se apresentam como inimigos. 

É possível imaginar que, até que tenham atingido estágio de discernimento, continuam a lutar entre si. No cadinho dos sentimentos levianos, tornam-se afins por interesses pessoais. Incapazes de perdoar, fustigam seus rivais. Colhem, por tempo indeterminado, decepções e sofrimentos, gozando de forma muito momentânea da felicidade fugaz que alimenta ainda mais os sentimentos do momento. Não há ponto de retorno aqui, até que o sofrimento resultante disso corroa todo o ânimo de praticar o mal e faça nascer na alma uma luz. O arrependimento precede ao perdão, porque a duras penas o Espírito passa a entender que ele não será feliz no velho modo de agir.  O mundo para o Espírito assim regenerado se torna um grande campo de regeneração. Aqui e ali, entretanto, ainda encontrará suas antipatias, das quais, agora redimido, tentará fugir. 

Isso assim será até que, completamente refeito em sua estrutura psicológica, o Espírito se torne tão sólido moralmente que nada abale seu ânimo. Haverá então conquistado a verdadeira salvação

Tal como os Espíritos, as sociedades também evoluem ao reconhecerem a origem do mal e ao procurarem rejeitá-lo sistematicamente. Mas esse é um assunto para um futuro post.

Outras referências

"O Evangelho segundo o Espíritismo", Capítulo X. 'Perdão as ofensas'.

10 de julho de 2020

Estudo de "O Livro dos Espíritos": flagelos destruidores (Cap. VI)


"Essas subversões, porém, são frequentemente necessárias para que mais pronto se dê o advento de uma melhor ordem de coisas e para que se realize em alguns anos o que teria exigido muitos séculos". ([1], Resposta à Questão # 737)
Flagelos destruidores são ocorrências naturais que provocam a extinção em massa de seres vivos, inclusive agrupamentos humanos. O que caracteriza os flagelos é a intensidade e a velocidade de propagação. A intensidade é medida em termos do total de mortes ou danos causados pelo flagelo. A velocidade é a taxa com que a destruição acontece.  

O início de 2020 foi marcado pelo inusitado aparecimento de uma epidemia local na China que logo se tornou uma pandemia, afetando a maioria dos países. A incidência pandêmica de um vírus chamado "Covid-19", a se manifestar aparentemente como uma gripe comum, é considerada um flagelo, dada a sua velocidade e intensidade de propagação. Do contágio à morte, contam-se algumas semanas, com maior taxa de mortalidade na população de idosos e pessoas que apresentam problemas de saúde pré-existentes. 

Uma geração inteira, que já nasceu conectada através de recursos da internet, foi surpreendida pela pandemia como uma novidade e uma gigantesca ameaça. Entretanto, como flagelo destruidor, a pandemia do Covid-19 é apenas uma das inúmeras pandemias ou epidemias de vastas proporções já vividas pela Humanidade [2]. Assim como surgem, desaparecem deixando atrás de si um rastro de morte e destruição. Para materialistas, essas ocorrências naturais são a prova das forças cegas que podem destruir a Humanidade inteira. Além do impacto econômico, sua maior influência é o pessimismo e a desolação mental que atingem principalmente aqueles que mais descreem na vida futura. O mundo se torna sombrio, e cada minuto confinado é momento de uma vida sem sentido.

Considerações espíritas

Para quem considera a vida desde a perspectiva da vida maior do Espírito, o momento da pandemia permite inúmeras reflexões em torno das questões 737 e 741 do Cap. VI, 3a Parte de "O Livro dos Espíritos". Da leitura atenta dessa parte destacamos algumas passagens:

Ora, conforme temos dito, a vida do corpo bem pouca coisa é.

Um século no vosso mundo não passa de um relâmpago na eternidade. Logo, nada são os sofrimentos de alguns dias ou de alguns meses, de que tanto vos queixais. 

Os Espíritos, que preexistem e sobrevivem a tudo, formam o mundo real. Esses os filhos de Deus e o objeto de toda a sua solicitude. Os corpos são meros disfarces com que eles aparecem no mundo. [1, trechos da resposta à Questão #738a] 

Quando a resposta afirma que "a vida do corpo bem pouca coisa é" devemos entender o contexto da pergunta. No caso, a vida humana é bem pouca coisa desde o ponto de vista daquilo que homem costuma pensar de si como encarnado, o que em uma afirmação anterior está representado por "o homem tudo refere ao seu corpo". É óbvio que a vida humana é relevante como oportunidade de aprimoramento do Espírito. Cessa essa importância, porém, quando o homem, orgulhoso, pensa que ela é a única coisa que existe. Como o objetivo último é esse aprimoramento, a vida pode chegar a um fim antecipado se sua continuação representar um estorvo tanto para o progresso da alma encarnada como para os grupos humanos (família, coletividade, etc) que são obrigados a suportá-la.

"O anjo da morte às portas de Roma". (Jules-Élie Delaunay. Fonte: Wikipedia)

Mas, não há como antecipar em que momento a continuação da existência humana representa um problema para o progresso da alma. Apenas a Providência Divina tem essa informação. Da mesma forma, nenhum de nós tem condição de sequer imaginar qual teria sido a sucessão de coisas ou fatos caso um flagelo destruidor como uma pandemia de longo curso não tivesse ocorrido. Não há como afirmar que a vida teria sido mais bela: no balanço geral dos ganhos, conta mais o avanço da alma humana em aspectos imortais que não existem para a mente imediatista ou demasiadamente ligada à matéria.

Assim, segundo os Espíritos, que ditaram as respostas para A. Kardec, o objetivo maior dos flagelos destruidores é:

...fazê-los progredir mais depressa. Já não dissemos ser a destruição uma necessidade para a regeneração moral dos Espíritos, que, a cada nova existência, sobem um degrau na escala do aperfeiçoamento? [1, início da resposta à Questão #737]

Esse progresso, entretanto, não é imediato. Ele se dá tanto do ponto de vista dos objetivos da alma como, possivelmente, do ponto de vista material. Conforme a resposta da Questão #739:

Mas, o bem que deles resulta só as gerações vindouras o experimentam.
Quantas gerações para a frente da época de uma pandemia como a do Covid-19 serão beneficiadas? A resposta ignoramos. Assim, flagelos destruidores - o que incluem as epidemias - podem ser vistos também como "resgates coletivos" que afetam o organismo da sociedade com alvos de aprimoramento futuro que permanecem ocultos desde a perspectiva da vida imediata. 

Abnegação, inteligência, resignação e paciência

A comparação com "doenças coletivas" também se estende a maneira como eles devem ser encarados no momento em que surgem:
Os flagelos são provas que dão ao homem ocasião de exercitar a sua inteligência, de demonstrar sua paciência e resignação ante a vontade de Deus e que lhe oferecem ensejo de manifestar seus sentimentos de abnegação, de desinteresse e de amor ao próximo, se o não domina o egoísmo. [1, resposta à Questão 740]
Essa resposta contém inúmeras lições. Quando os Espíritos afirmam que os flagelos são "ocasião para exercitar a inteligência" querem dizer que o homem deve lançar mão de todos os recursos possíveis para abrandar ou mitigar seus efeitos. Desde o desenvolvimento de vacinas até a adoção de medidas de higienização, planejamento e isolamento protegem, em tese, a coletividade não só da doença em curso, mas de outras futuras. O "exercício da inteligência" significa principalmente o uso sistemático do conhecimento científico que nada mais é do que fonte de progresso material

Chama a atenção a parte final da resposta à Questão 741 (grifo nosso):
Contudo, entre os males que afligem a Humanidade, alguns há de caráter geral, que estão nos decretos da Providência e dos quais cada indivíduo recebe, mais ou menos, o contragolpe. A esses nada pode o homem opor, a não ser sua submissão à vontade de Deus. Esses mesmos males, entretanto, ele muitas vezes os agrava pela sua negligência.
Se o momento exige inteligência e resignação, a negligência desses aspectos pode levar ao agravamento dos males e de suas consequências. A resposta também contém a revelação do caráter de fatalidade ligado aos flagelos, pois estão entre os "decretos da Providência". Contra isso os Espíritos indicam o remédio: o exercício da paciência e da resignação, ao que se deve adicionar a abnegação e a ajuda aos que estão mais expostos às vicissitudes do momento. De fato, toda crise representa uma oportunidade para exercitar essas virtudes da alma que são patrimônios inalienáveis do futuro.

Para futuras reflexões

Como possíveis benefícios futuros do Covid-19, à luz do que vimos aqui, consideramos os seguintes pontos para futuras reflexões:

  • Os últimos 20 anos de desenvolvimento da Humanidade foram testemunhos de avanços consideráveis como o advento da internet. No seu início, a internet representou a esperança de uma globalização de costumes e culturas, o intercâmbio de ideias e o compartilhamento de soluções através do globo. Com o tempo, porém, os velhos costumes dominaram as perspectivas e a internet acabou refletindo mais ou menos a segregação própria de cada agrupamento humano. Não representa a pandemia uma oportunidade para novas formas de relacionamento (visando o desenvolvimento científico e cultural) entre os povos, aproveitando esses recursos de comunicação?
  • Ela não representa oportunidade de desenvolver soluções para outras doenças contagiosas, não só através de vacinas, mas pelo uso de medidas sanitárias eficientes e de condutas coletivas menos suscetíveis à transmissão de doenças?
  • Novas formas de trabalho, com aplicação mais racional de recursos, menos danosos ao meio-ambiente, não parecem emergir de um quadro pós-pandemia? 
  • Para a administração geral (pública e privada), não representa a pandemia a oportunidade de conduzir aos cargos administrativos aqueles que têm mais competência na condução das respostas que a crise exige?  
A explicação para a presente crise, provocado por um flagelo que inibe temporariamente a atividade econômica e a interação social, está nos objetivos da vida futura do homem. Para quem tudo considerada desde a perspectiva da vida imediata, a impressão é de arrefecimento do ânimo e de perda de oportunidades. Porém, a vida humana obedece a um propósito de natureza superior que permanece oculto à maioria.  Desse objetivo a alma encarnada, quando muito, guarda vaga impressão nos recessos do seu inconsciente, na medida necessária para que ela consiga viver e aguardar. 

Por isso, o exercício da abnegação e da paciência, pela conformação às medidas sanitárias necessárias para reduzir o alcance da doença tornam-se imperativos no momento. Em toda crise como essa, também lembramos o inesquecível "Mas quem perseverar até o fim, este será salvo" (Mateus, 24:13) como advertência do Evangelho e que transcende a todas as épocas da Humanidade. 

Referências

[1] A. Kardec, "O Livro dos Espírito". Ed FEB,  71 ed, 1991. 

[2] Além da "gripe espanhola" e "peste negra", uma interessante pandemia foi a "peste Antonina", ocorrida entre os anos de 165 e 180. Tratou-se de uma epidemia de Varíola que se originou também na China, segundo relatos e que dizimou milhares de pessoas na Europa. Para saber mais: "A Peste Antonina - Wikipedia" (acesso em julho de 2020).