17 de junho de 2019

Crenças Céticas XIX: casos modernos e seus paralelos

Cristo carregando a cruz (detalhe). H. Bosch (~1500).
Abrimos um parêntese na nossa exposição aos espíritas sobre o problema da aceitação da existência dos espíritos. Lembramos nossos antigos posts sobre crenças céticas [1][2], considerando os debates populares em redes sociais sobre a 'Terra plana' e do 'geocentrismo'. Lembramos tudo isso, e não podemos deixar de fazer um paralelo com o problema da aceitação de alguns princípios espiritualistas. Jamais imaginaríamos que o ceticismo ingênuo poderia se revestir de aspectos tão dramáticos na atualidade.

Se em pleno Séc. XXI temos gente que defende "Terra Plana", que esperança há na Humanidade em aceitar as realidades maiores do espírito? 

Do ponto de vista espírita, penso que as manifestações aparentemente grandes dos crentes modernos em Terra Plana e no geocentrismo se explicam pelo retorno ainda tardio de milhões de Espíritos que não tiveram a chance de entender melhor o assunto. Têm eles dificuldades enormes de raciocínio a ponto de serem incapazes de compreender abstrações mesmo que bem simples. Mas, nas redes sociais, talvez pela primeira vez em suas vidas imortais, encontraram a chance de manifestar publicamente uma opinião, capitaneados por gente inescrupulosa que lhes exploram as deficiências intelectivas.

Princípio unificador X conspiração

O que caracteriza a ciência modera sempre foi a descoberta de um princípio ou fundamento unificador muitas vezes inacessível aos sentidos ordinários. Tomemos o caso da 'Terra esférica': esse princípio unifica e coordena a explicação de um grande grupo de fenômenos celestes (as variações de luz entre dia e da noite, a posição do sol em vários lugares, etc). Entretanto, não é possível ver com os próprios olhos a esfericidade da Terra, a menos que se vá para o espaço exterior, o que é possível, mas não a todas as pessoas do mundo. Da mesma forma, a gravitação universal: por meio do uso de uma única expressão de força entre corpos massivos (dai sua universalidade), um vasto conjunto de fenômenos celestes foi explicado. Entretanto, não se sente nem se vê a força de gravitação que o Sol exerce sobre a Terra e os outros planetas. 

Assim, quase sempre no final da maturação de um paradigma científico, leis ou princípios são declarados, mas não são sensorialmente acessíveis. Sua força como ciência vem da sua capacidade de explicar e unificar fenômenos, a ponto de ser possível classificá-los em domínios diversos, bem como prever outros ainda desconhecidos. Para fazer ciência, eles são admitidos desde o início a fim de se prover tal unificação e previsão fenomenológica.

Com os crentes céticos, entretanto, o único princípio unificador que existe é a conspiração sobre o mundo, que é a base de sua crença. Tomamos 'mundo' aqui não como o planeta inteiro, mas como um aspecto da realidade. Assim, um crente cético necessariamente é um crente na conspiração e um cético em relação a uma realidade, seja ela bem estabelecida cientificamente ou não. É por isso que crentes na Terra Plana, por exemplo, rejeitam qualquer evidência que, de outra forma, é prova do princípio unificador da esfericidade da Terra. Ao invés disso, cada evidência é explicada por causas independentes entre si ou se invocando a conspiração, que é um gigantesco conluio entre agentes mal- intencionados para justamente enganar o crente cético.

No caso em que o ceticismo é contrário ao que está bem estabelecido, os céticos se comportam de forma ridícula para os que participam da crença compartilhada escorada na ciência. Porém, a reação negativa de uma maioria ao conspiracionismo e à crença cética pueril constituem, na cabeça desses crentes, a própria prova da conspiração. Assim, o conspiracionismo se torna uma 'profecia autorealizada', afinal a maioria não tem condições de oferecer contra-evidências 'simples' ou 'práticas' às crenças pueris céticas, as pessoas apenas repetem o que aprenderam. Mas, para os crentes céticos, tudo acontece como se, de fato, estivesse em curso uma conspiração.

No segundo caso, porém, a situação é muito mais complicada porque não é fácil distinguir cada grupo. A comparação aqui cai bem, pois a ideia da sobrevivência da alma - assim como sua existência e continuidade tal como apresentada por A. Kardec - é um princípio unificador que pode explicar uma variedade imensa de fenômenos e paradoxos de natureza religiosa ou filosófica. Porém, ele não está disseminado como crença compartilhada (a menos pelos espíritas obviamente), porque popularmente não tem o selo de  'cientificamente provado' e não é propagado por meio da educação formal. 

Entretanto, o paralelo se aplica porque:
  • O princípio unificador explica inúmeros fenômenos, e está, por isso, harmonicamente relacionado a eles que formam sua base empírica;
  • A fenomenologia, mesmo que publicamente acessível, somente pode ser compreendida de posse do princípio unificador;
  • O princípio unificador envolve certo grau de abstração, pois ele não pode ser acessado diretamente pelos sentidos ordinários. Em particular, para compreender esse estado de coisa, é necessário estudar toda a teoria do princípio unificador, inteirar-se de detalhes de sua ação etc. Isso requer muito esforço, boa-vontade e tempo;
  • A conspiração aqui é criada contra os fatos, contra os que os apoiam ou geram ou contra o princípio unificador. Para os céticos endurecidos, todos os médiuns mentem - uma prova da conspiração dos que geram. Para outros, qualquer fato ou fenômeno têm uma explicação pronta (quase sempre na base do 'engano', 'erro', 'experimento mal feito' etc), como uma conspiração de falhas. Para outros céticos mais sofisticados, ideias do senso comum, crenças compartilhadas ou próprias, má vontade no estudo etc, obstam o pleno entendimento do princípio unificador. 
Dessa forma, o tipo de 'prova' que crentes céticos nos fatos psíquicos exigem não pode ser obtido se não se percorrer exaustivamente toda a explicação que eles justamente querem refutar a qualquer custo. Isso implica em conhecer o assunto melhor do que o mais fervoroso adepto, coisa que crentes céticos nunca o fazem, seja porque têm má-vontade ou porque são simplesmente incompetentes

Podem ser grandes os prejuízos à educação que ceticismo cético traz com questões já resolvidas cientificamente - como a esfericidade da Terra ou sua posição no sistema solar. Poderíamos citar ainda outras controvérsias algo mais sofisticadas, como o Darwinismo ou a teoria do 'Big Bang' [3]. 

Nosso paralelo, porém, facilita muito entender e defender a ideia de que o ceticismo cético, se aplicado a questões que não se consideram cientificamente resolvidas, tem um efeito ainda mais deletério. Com essas questões, o ceticismo cético é indistinguível, muitas vezes, de uma postura supostamente científica ou rigorosa. É por isso que não se veem avanços em muitas áreas do conhecimento consideradas  'limítrofes' ao bem estabelecido, porque o 'conhecimento compartilhado' se confunde com esse ceticismo e impede sua livre investigação. 

Referências

[1] Primeiro post sobre 'crenças céticas': Crenças Céticas I: Introdução (2010)  

[2] Último post sobre 'crenças céticas': Crenças céticas XXVII: a Navalha de Ockham (2017) 

[3] Tanto quando sei, crentes céticos não se revoltaram ainda contra a noção moderna dos átomos e a física quântica  - todos exemplos de princípios unificadores inacessíveis aos sentidos ordinários (tal como os espíritos). Provavelmente é uma questão de tempo para que isso aconteça. 

22 de maio de 2019

Sobre a existência dos Espíritos: diferença entre percepção e observação (I)

Cena do livro "Emperor of Thorns"  (Arte da obra por
Broken Empire Omnibus ed. Jason Chan)
Podemos dizer com toda a certeza que o problema da aceitação da existência dos Espíritos - enquanto forças externas a nós - pode ser colocado em uma forma semelhante ao problema da aceitação da existências de coisas não observáveis pela Ciência. Já discutimos esse problema aqui neste blog, quando apresentamos um artigo de P. Churchland [1] onde esse autor descreve o chamado "movimento Browniano" como uma das evidências para a existência de átomos. Por muito tempo, a questão sobre a existências de átomos foi debatida, mas somente foi definitivamente aceita com avanços mais recentes da física moderna. 

A questão da existência dos Espíritos parece ser um capítulo parecido numa obra sobre a "aceitação dos invisíveis", ou seja, sobre a existência de entidades que não sensibilizam diretamente os sentidos humanos comuns. Assim, há coisas no mundo que, não obstante existirem, não são percebidas por nós diretamente. Mas, como podemos estar certos de que elas de fato existem?  Quais são as condições de sua aceitação? 

A história recente da Ciência é uma progressão de evidências que acabaram por nos separar definitivamente da ideia de que somente aquilo que podemos perceber diretamente existe [2]. A existência dos Espíritos adiciona um novo capítulo porque não parece haver por enquanto qualquer meio (instrumento, [2b]) capaz de transmitir a nós a sensação da existência deles.

Obviamente, o problema não existe para os que sentiram ou sentem a presença os Espíritos. Os sentidos humanos, desde que expandidos (como no caso da mediunidade) podem percebê-los. Em nossa discussão inicial, nos referimos aos sentidos humanos ordinários para depois abordar a questão dos sentidos expandidos. Trataremos disso em um último post de uma série de três. 

O assunto é interessante e envolve uma mudança mais ou menos radical na noção do senso comum de acreditar nas coisas. De fato, essa mudança se verificou ao longo de diversas ciências (como a física e a química), que foram "obrigadas a crer" em coisas que não podem ser observadas diretamente, mas que existem. 

Diferença entre percepção e observação

É necessário, antes de tudo, distinguir entre 'percepção' e 'observação' dos fenômenos da Natureza. 
Uma percepção nada mais é que um estado mental (ou seja, um estado privado ao indivíduo que percebe) que não implica diretamente em qualquer conhecimento próprio sobre aquilo que é percebido [2c]. 
Exemplo: vejo um lápis em um copo com água, ele parece quebrado. Mas sei que o lápis não está quebrado de fato. A visão do lápis quebrado é uma imagem que se forma na minha mente, mas que não corresponde ao conhecimento que tenho sobre o lápis. 

As ciências antigas (antes do renascimento) eram muitas vezes baseadas em percepções dos sentidos. Mas, mesmo os antigos já sabiam que os sentidos são facilmente enganados. Para que uma percepção gere conhecimento, ela deve estar acompanhada de outras informações sobre a coisa percebida. Esse conhecimento pregresso é muitas vezes obtido de diferentes maneiras e representa um tipo de concepção própria pré-existente do mundo (que pode ser herdado, aprendido etc). De certa forma,  nossa percepção é revestida dessa informação adicional para que aquilo que sentimos seja aceito como verdadeiro de fato.

As ciências modernas são baseadas nas chamadas 'experiências sensíveis' que são, verdadeiramente, observações [3]. De forma geral, podemos dizer que observações incluem as percepções dos sentidos, mas não se restringem a elas [2c] porque as observações são guiadas por algo mais.

Entretanto, podemos argumentar que as ciências modernas em nada modificaram a necessidade das percepções quando instrumentos foram desenvolvidos para permitir que os invisíveis (no sentido amplo) se tornasse 'visíveis', ou seja, acessíveis aos sentidos humanos.  De fato, instrumentos são úteis em Ciência porque eles permitem [2c]: 
  • Melhorar a acurácia da percepção;
  • Padronizar as observações feitas através deles.
Considere a imagem da Figura 1. Ela é o registro de vírus da Hepatite A conseguida por meio de um microscópio eletrônico. Se não tenho como ver um vírus com meus olhos, com o microscópio posso inclusive medir o seu tamanho em uma escala e compará-lo ao de outros objetos igualmente invisíveis a sua volta. 
Fig. 1 Imagem de um microscópio mostrando vírus da Hepatite A. Como posso estar certo de que  essa imagem realmente corresponde a um vírus da Hepatite A? Mais ainda, ela é uma prova de vírus existem? 
Entretanto, penso de forma ingênua quando acredito que minha percepção foi apenas expandida quando observo essa imagem do vírus pelo microscópio. Somente devo acreditar que a imagem corresponde mesmo ao vírus se souber como o microscópio funciona, ou seja, sou obrigado a crer em uma sequência grande de suposições, aproximações e informações que justificam categoricamente que aquela imagem é mesmo da tal entidade (o vírus) invisível. 

Ora, todas essas coisas adicionais não são obtidas exclusivamente por meio de observações e, muito menos, percepções. Elas resultam de estudos em inúmeras outras ciências que, muitas vezes, nada tem a ver com o objeto que percebo através do instrumento. Esse conjunto de raciocínios, aproximações e informações é conhecido como teoria e constitui elemento fundamental de uma observação científica:
Uma observação é um procedimento complexo no qual tanto a percepção como um prejulgamento de natureza teórica concorrem para produzir uma afirmação a respeito da coisa observada, o que inclui sua própria existência, caso ela não seja percebida pelos sentidos [2c]. 
Uma maneira de tentar salvar nossa crença exclusiva nas percepções (o popular "ver para crer") é justamente só aceitar como existindo aquilo que é validado por nossas percepções e rejeitar qualquer coisa que venha por meio de uma teoria. Mas, ao se fazer isso:
  • Somente aquilo que é percebido é real;
  • Qualquer observação, para ser válida, deve ser reduzida a uma percepção.
Portanto, aceitar esse ponto de vista leva a rejeição de quase tudo que a ciência moderna descobriu. Não é possível aceitar uma observação por instrumentos porque elas não envolvem apenas percepções. Logo, não há como escapar à conclusão:
Ao se aceitar a existência de entidades não observáveis (os invisíveis) estamos também obrigatoriamente aceitando a teoria que postula sua existência e as teorias por meio das quais os instrumentos de sua observação são validados.
De forma simbólica:
A existência de uma entidade I (invisível) implica na aceitação da teoria T para a qual I existe. O oposto também vale: ao se aceitar uma teoria T para a qual I existe, também aceitamos a existência de I
Assim, a imagem do vírus da Hepatite A (Fig. 1) não constitui a única prova da existência desse vírus. De fato, se ela não estivesse disponível, a medicina ainda acreditaria na existência dos vírus como entidades necessárias para explicar uma quantidade grande de patologias. Em ciência muitas vezes não é necessário que provas sensíveis existam (de forma a sensibilizar os sentidos humanos, ainda que por meio de aparelhos) para que as causas dos fenômenos sejam aceitas.

Esse tipo de postura é chamada realista, mas trata-se de um tipo específico de realismo que agora nada tem a ver com o realismo ingênuo das meras percepções. Assim, por exemplo, tenho toda razão em rejeitar que aquela imagem seja mesmo a da entidade invisível (o vírus da Hepatite A na Figura 1) se a teoria que explica como ela é gerada estiver errada. Isso pode acontecer se o instrumento de medida estiver com defeito, por exemplo [5]. A maior parte das pessoas aceita a imagem, entretanto, por uma crença ingênua que dispensa entender os aspectos teóricos envolvidos.

Por causa de certo preconceito adquirido, nossa tendência é desejar que o "senso de realidade" das coisas invisíveis seja o mais parecido possível com aquilo que percebemos através das percepções. Essas estão originalmente associadas à maneira primitiva como nós aprendemos sobre o mundo a nossa volta. Trazemos uma representação desse mundo na mente que foi inteiramente adquirida por meio das percepções. Essa representação é reforçada por estímulos externos que frequentemente nos alcançam (pelos mesmos sentidos), de forma que tomamos como real apenas aquilo que nos chegam exatamente por eles.

A dependência de nossa crença pelas teorias

A conclusão que tiramos sobre a dependência crucial que a crença em coisas invisíveis tem da teoria que as postula aumenta consideravelmente a importância das teorias como mecanismos de apreensão da realidade a nossa volta.

De fato, uma teoria tem como características [2c]:
  • Uma explicação logicamente suficiente sobre fatos ou objetos observados,
  • O máximo que se pode exigir de uma teoria é que ela seja compatível com os dados existentes,
  • Não necessariamente, uma teoria é uma explicação "cogente" [4] do objeto que explica.
Em outras palavras, quando aceitamos uma teoria como base para a crença na existência de coisas invisíveis (os não observáveis) estamos de fato dando um "salto no escuro" porque não temos meios adicionais (exceto pelos próprios dados disponíveis que são limitados) de "comprovar" que aquela teoria é, de fato, verdadeira.

Fig. 2 Síntese dos conceitos descritos aqui: a observação como resultado das percepções guiadas com argumentos de natureza teórica que leva ao conhecimento.
Entretanto, nem tudo o que uma determinada teoria admite como existindo para explicar um ou mais fenômenos na Natureza necessariamente tem sua existência na realidade. Assim a entidade I postulada pode ser apenas um "instrumento teórico" necessário para a explicação e nada mais. A questão do realismo é presentemente um debate com aspectos profundos porque levanta dúvidas por parte dos que são céticos dessa postura realista. Entretanto, permanece com grande força o argumento: se as entidades teóricas postuladas não existem de alguma forma, como é possível que teorias científicas tenham tamanho sucesso preditivo?

No próximo post: realismo e ceticismo.

Referências e Comentários

[1]  Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland).

[2] Uma ponto de vista sobre as coisas conhecido como "realismo do senso comum": somente o que pode ser observado é "real".

[2b] Há diversas evidências sobre a ação dos Espíritos em equipamentos eletrônicos. O fenômeno das "Vozes Eletrônica" é um desses casos que merecem melhor investigação. Entretanto, salvo contrário, não se pode deixar de qualificá-los como um tipo de mediunidade de efeitos físicos que ainda prescinde da presença humana para sua manifestação.

[2c] Agazzi, E., & Pauri, M. (Eds.). (2000). The reality of the unobservable: Observability, unobservability and their impact on the issue of scientific realism (Vol. 215). Introduction by E. Agazzi e M. Pauri. Springer Science & Business Media.

[3] Eis uma importante face da revolução do renascimento: a invenção da ciência moderna que viria a fundamentar a crença na observação (como definido acima) e na teoria.

[4] Diz-se de um argumento expresso de forma clara e que é capaz de persuadir as pessoas. Suas premissas são verdadeiras, mas a conclusão é apenas provavelmente verdadeira.

[5] Nesse caso, a imagem produzida terá sido alterada de forma mais ou menos substancial por outros fatores que não fazem parte da "explicação normal" da teoria do microscópio. É óbvio que uma teoria verdadeiramente abrangente do microscópio conseguirá prever inclusive o efeito de fatores que gerem os defeitos.


19 de abril de 2019

A relação entre o Espiritismo e a Astronomia

Olhando através da esfera cósmica. Ilustração de
"L'atmosphere: meteorologie populaire", por C. Flammarion (1888).
A astronomia compele a alma a olhar para cima 
e nos leva deste mundo a outro.
Platão.
A Astronomia é considerada uma ciência muito antiga. O Espiritismo, embora assim conhecido apenas a partir de meados do Século 19, trata de questões muito antigas  também, que estão na origem de todas as religiões. Embora longe do reconhecimento 'acadêmico', inútil para os objetivos do Espiritismo na época presente, ele também demonstrou seu aspecto científico. Como dois saberes antigos e científicos, é natural que Espiritismo e Astronomia guardem alguma relação.

De fato, esse relacionamento se manifestou desde o início com a publicação de um capítulo inteiro em 'A Gênese' de A. Kardec dedicado a uma nova cosmografia. Esse capítulo contém uma dissertação sobre o Universo assinado por 'Galileu' em uma mensagem psicografada por Camille Flammarion (1842-1925). No Brasil, destacamos o interesse que o espírita e educador Eurípedes Barsanulfo (1880-1918) teve quando fundou o Colégio Allan Kardec em Sacramento/MG, a partir de um curso de Astronomia. E são inúmeras as referências às 'formações assombrosas' do Universo em muitas mensagens espíritas.

Conceitualmente, uma via de interligação entre Espiritismo e Astronomia é o impacto que ambos os conhecimentos têm sobre nossa compreensão do Universo e do significado da vida humana nele. A Astronomia não tem interesse em considerções de natureza filosófica sobre essa posição humana no Universo. Tais conclusões surgem, porém, naturamente a partir do conhecimento revelado por ela:
  • O que chamamos de 'Universo' é algo extraordinariamente grande. Nossa capacidade de entendimento das reais dimensões do Cosmo é coisa muito limitada. Sua dimensão verdadeira (a julgar pelo tamanho das incontáveis formações astronômica contindas nele) é inconcebível para a mente humana.  Da mesma forma, as escalas de tempo envolvidas nos fenômenos astronômicos de grande escala é longa demais para qualquer existência humana.
  • O que podemos ver no Universo é apenas uma fração ínfima de sua real presença. Como nossos sentidos são limitados, percebemos muito pouco da enorme gama de 'radiações' ou 'ondas' que são nele produzidos. 
  • Para a existência humana (no sentido de sua presença física na Terra), nosso planeta é um lugar muito especial. As condições climáticas ou ambientais típicas do Universo jamais propiciariam uma vida confortável a qualquer ser vivente. O Universo é, para o corpo humano, um lugar completamente inóspito.
  • O Universo está estruturado em 'camadas' ou 'dimensões' em escalas que exibem uma complexidade assombrosa. Vemos coisas complexas no incrivelmente grande, assim como no muito pequeno.  
Em suma, a Astronomia confirmou que nossos sentidos não são apropriados para ver e ouvir o Cosmos. Ela mostrou ainda que a Terra é, até agora, o único planeta a abrigar o que chamamos 'vida' do ponto de vista material. Também demonstrou que a enorme amplitude de escala do Universo implica em inúmeros 'estrata' de fenômenos diferentes, cada uma deles a existir como um cosmo próprio.

Camille Flammarion (1842-1925).
Assim, foram homem e a Humanidade circunscritos a uma dessas 'camadas' existênciais de um Universo incrivelmente grande. E, modernamente, há suspeitas de que o que chamamos 'dimensões' do espaço e do tempo sejam apenas variedades geométricas adaptadas a nossa competência limitada de medição no Universo.

Com tais conclusões, uma bifurcação de entendimento se apresenta:
  1. Somos as únicas criaturas conscientes em um Universo enorme, mas completamente vazio, somos menos que espumas a existir por brevíssimos momentos na vida do Cosmo, 
  2. OU não estamos sozinhos, mas diante de um Universo que revelará fatos ainda mais surpreendentes sobre aquilo que nele pode existir e ter consciência. 
A primeira possibilidade tem sido explorada em ínumeros documentários e livros de divulgação científica. O materialismo e ateismo vigentes têm como certo um Universo vazio, onde a vida humana vale apenas dentro do círculo estreito de seus interesses transitórios. As consequências dessa visão limitada são a um Cosmos frio, amoral e incriado. Nele não há nenhuma papel para Deus que, portanto, não existe.

Entretanto, como nossos sentidos e compreensão se mostraram muito limitados, parece fazer mais sentido aceitar a segunda possibilidade. O vazio revelado é fruto de nossa incapacidade em perceber o todo, pois apenas vislumbramos o Universo por meio de estreitíssima janela. Seria necessário que a sensibilidade humana transcendece muito os sentidos ordinários para que a nós fosse possível visualizar um pouco melhor o Cosmos. Não devemos, portanto, nos apressar nas conclusões niilistas.

É nesse ponto que intervêm as revelações do Espiritismo:
  • A sensibiliade humana é limitada, mas, por meio da mediunidade, é possível acessar uma grande variedade de fenômenos que também expandiram nosso conhecimento sobre o Universo;
  • Os sentidos humanos dilatados pela mediunidade revelaram que não somos as únicas 'consciências' que existem: em torno de nós pululam um grande contingente de novas formas de vida que existem aparentemente em um extrato 'não material' do Universo. Essas consciências interagem com os humanos e influenciam sua vida privada. Quando querem, porém, podem se manifestar publicamente. 
  • Mas, matéria ou 'não-matéria' são termos intercambiáveis: o que chamamos 'matéria' é apenas um tipo de manifestação de fenômeno adaptado a nossa presente condição ou capacidade sensorial. Em particular, a Humanidade continua a existir de outras formas (outros extratos). O homem sobreviverá à morte, entendida agora como rompimento dos laços que prendem a sua real natureza (o Espírito) àquela camada do Universo onde ele transitoriamente vive;
  • A vida humana se estende de forma inconcebível, tanto para trás no tempo, como para frente. O Espírito existirá por tempo indefinido. Sua existência real se dá, portanto, em uma dessas camadas do Universo que tangenciam a existência material inúmeras vezes (reencarnações), mas por breves momentos na escala universal de tempo.
Os estudos da Astronomia e da Física mostram a convergência entre o macro e o micro: as superestruturas da escala astronômica se sustentam como imensas formações que têm por  base forças minúsculas e influências recíprocas indetectáveis aos sentidos humanos. Da mesma forma interagem matéria e espírito para formarem a porção do que é visível a esse último, numa realidade que se mostra muito limitada para os sentidos humanos, por enquanto.

Isso foi justamente o que C. Flammarion representou na ilustração do início deste post. Um indivíduo que sai  de sua vida ordinária, mesquinha, limitada e pequena. Segue além da fronteira do Universo, não como uma divisa física, mas de dimensão, a do limite imposto por uma única faixa de vida até então tomada como única existente. O que ele vê então? Mundos e vidas incontáveis, uma variedade de formas e coisas tão grande quanto o próprio tamanho e idade do Universo. Nessa nova perspectiva muito dilatada, tudo lhe parece fazer sentido. As maiores dores e calamidades humanas nada são, porque a vida humana verdadeira é infinita em continuidade e significado. A vida na Terra é um momento fugaz, os dramas humanos  pequenos demais diante da verdadeira destinação reservada a ele. E o Universo se revela então com uma manifestação Divina, organizada de forma inteligente e absolutamente perfeita.

A imagem do Universo complementado pelo Espiritismo é assim a de um Cosmos repleto de vida em múltiplas camadas a se interpenetrarem. O homem nele é Espírito incarnado brevemente, que deixa seu casulo corpóreo muitíssimas vezes para ascender numa escala de bondade e conhecimento.  A noção de justiça verdadeira não se aplica apenas à vida transitória que leva por tão breve tempo. Por isso a ideia de eternidade trazida pelo Espiritismo permite vislumbrar nosso verdadeiro papel no Universo, que não é mais limitado no tempo e no espaço. O mais próximo da sensação de deslumbramento que podemos sentir ao perceber essa realidade futura é quando olhamos para o alto. Para isso, basta uma noite límpida, sem núvens...



19 de março de 2019

Anotações sobre a concepção espírita dos sonhos

"O sonho" (Pierre-Cécile Puvis de Chavannes, 1883)Fonte: Wikipedia.
"A lembrança que conserva, ao desper­tar, 
daquilo que viu em outros lugares 
e em outros mundos ou em existências passadas, 
constitui o sonho propriamente dito". A. Kardec (1). 

"Um dia será oficialmente admitido que 
aquilo que chamamos realidade é uma ilusão 
ainda maior do que o mundo dos sonhos". Salvador Dali

Uma parte importante da existência humana é passada dormindo. Em aproximadamente um terço de nossa existência como encarnados dormimos (2). O que acontece nesse estado? Embora seja fácil entender a necessidade do sono - tão natural que nem questionamos sua importância - algo mais difícil é caracterizar e entender os sonhos. O que a compreensão da natureza dual do ser humano,  permitida pela Revelação Espírita, revela sobre nosso entendimento dos sonhos ? 

A experiência onírica é bastante diversa das percepções ordinárias da vigília. Essas últimas admitem "testemunhas" pelas quais as pessoas compartilham experiências publicamente. Se viajo com minha família para um lugar turístico, as experiências que eu tenho são as mesmas que meus parentes também têm. Mas, nos sonhos, isso não se aplica. Toda a experiência dos sonhos é, em princípio, privada, ou seja, vivida apenas em "primeira pessoa", apenas por mim. Se sonho que estou com minha família fazendo turismo, provavelmente ao questionar meus parentes, eles não confirmarão a mesma experiência. Essa característica marcante é o que faz com que sonhos sejam, em sua grande maioria, tomados como experiências geradas exclusivamente pela mente de quem sonha. 

Outra característica marcante dos sonhos (eu mesmo já experimentei isso) é a aparente ausência de conexões causais dentro de um sonho. O que acontece em um determinado momento - mesmo tendo como causa aparente algo anterior durante o sonho - não se apresenta exatamente assim em um momento depois. Um exemplo: lembro-me de um sonho em que estacionei um carro em determinado local. Depois de outros fatos no sonho, quando retornei para pegar o carro, ele não estava mais lá ou, ao menos, não me lembrava de onde tinha deixado o carro... Por outro lado, também me lembro de sonhos em que recordei, no próprio sonho, ter estado em lugares (de sonhos) anteriores. Nesse caso, eu apenas continuava uma aventura ocorrida algumas noites antes e tive, no sonho, consciência disso: tratava-se de um "sonho lúcido".

O sonho como uma síntese mnemônica recriada das vivências da alma durante o sono

Como sintetizou Kardec, o sonho não se reduz ao estado da vida da alma livre do corpo. Se assim fosse, embora uma experiência privada, ele deveria ter coerência. O sonho é uma síntese mnemônica (a "lembrança que conserva") do que ocorreu durante o sono. Essa síntese, recriação ou montagem é bastante afetada por memórias ou lembranças já existentes, daquilo que interessa à mente nas experiências durante o sono (ou seja, ao Espírito), ou do que fica impregnado como lembrança para ela no momento do despertar. Na formação dessa síntese (através de mecanismos ainda desconhecidos), quase tudo que é relevante ao indivíduo dá sua contribuição: os desejos, temores, experiências reinterpretadas da véspera, lembranças dessa e de vidas anteriores e, inclusive, vivências que o Espírito livre teve, ou seja, as próprias lembranças de sonhos anteriores.

Para mim, a imensa maioria das pessoas (nas quais me incluo) não é capaz de reter perfeitamente, pelo prisma do cérebro, lembranças que vieram pelos sentidos da alma durante o sonho. Assim, o que acontece é que a lembrança dos sonhos é recriada em termos de um "banco de memórias" adquirido dessas vivências anteriores. É como querer criar um filme novo usando sequência de cenas de filmes velhos ou já editados. Assim, nesse processo de "reedição", o banco de memórias é usado como uma sequência de símbolos, cenas ou poses que tentam "sintetizar uma lembrança" da vivência real. É por isso que, ao acordar, muitas vezes, a sequência que surge é errática e não parece fazer sentido racional.

Por exemplo: imagine que eu, em Espírito, tenha estado em contato com outras pessoas, durante o sono. Quando acordar, provavelmente, o processo de lembrança preecherá as personalidades com quem tive contato com figuras ou pessoas que eu conheço de fato: a vezes, um amigo que sei depois estava acordado, uma pessoa com quem tive amizade há muito tempo etc. É possível até mesmo que o sonho seja preenchido com uma imagem de um parente desencarnado. E, assim, em geral acordamos pensando que estivemos com "fulano" já morto, mas na verdade era outro... Trata-se assim de uma recriação. De forma alguma minha lembrança reproduz fielmente o que passei em Espírito, apenas o 'script' é mais ou menos parecido. Essa montagem mnemônica é necessária para dar sentido durante a vigília para a experiência vivida no sonho. É assim porque as experiências durante o sono atingem a alma não pelas vias comuns dos sentidos materiais. Logo, ao impregnarem o cérebro no acordar são reinterpretadas.

Quer dizer então que não eram eles os que estavam naquele sonho que tive com minha mãe, pai ou parente falecido?  Não necessariamente. Situação algo diversa ocorre nos já citados sonhos lúcidos, que são uma categoria de sonhos mais raros e bem peculiares. Neles o indivíduo que sonha sabe que está sonhando, ou que está tendo a experiência. Nos sonhos que tive com minha mãe já desencarnada, tive a nítida impressão que ela veio me visitar e, coisa estranha, o sonho se passo no leito onde eu repousava e quase sempre terminava com o meu acordar em lágrimas. Esses tipos de sonho diferem intensamente da imensa maioria que tenho, formado por imagens banais, as vezes sequências que pouco ou nenhum sentido fazem. Sei que os primeiros são sonhos especiais porque são cheios de significações e muito diferentes dos últimos.

Essa ideia dos sonhos como um processo de recriação da experiência da alma durante o sono por meio de imagens preexistentes permite explicar os chamados "sonhos premonitórios". De fato, esses podem ser recriados com imagens anteriores, mas tratam de eventos futuros com base em experiências da alma no Além a respeito desses fatos. Tentar interpretá-los é uma experiência frustrante, pois eles só fazem sentido para quem teve o sonho e que mantem, inconscientemente, seu real significado. Além disso, quem sonha premonições pode não ser  competente em transmitir seu significado a tempo, uma fonte de inúmeras confusões.

Em suma podemos dividir em vários níveis as impressões dos sonhos e como eles se manifestam:
  1. O sentido profundo, que só existe para alma, muitas vezes de forma inconsciente. Esse sentido pode ser recapitulado em outros sonhos ou invocado em sonhos lúcidos. Certamente sobrevive à morte física,
  2. O sentido fragmentado, que é recriado com imagens ou memórias preexistentes, é o sonho "materializado" para o Espírito na vigília, talvez acabe esquecido com a morte física,
  3. O sentido transmitido para os outros, ou como descrevemos para os outros, durante a vigília, as nossas experiências oníricas. Elas podem causar, nos outros, impressão muito diferente do original, o que torna difícil sua "interpretação", embora em alguns "sonhos anômalos" ela  pode ser bem clara.
A importância dos "sonhos anômalos"


José interpretando o sonho do Faraó (Gen 41, 14-36).
Imagens da Torá por P. Medhurst (Wikipedia)

A grande parte do impasse teórico das concepções mais populares para explicar a mente se deve porque elas se referem apenas ao que passa com a imensa maioria. Entendo a razão disso de um ponto de vista prático. Estatisticamente, parece fazer sentido se dedicar ao que acontece na maior parte das vezes. Porém, com isso, sacrificamos a compreensão das causas mais profundas em detrimento do que é mais frequente. Assim, as anomalias que ocorrem com alguns poucos são varridas para "debaixo do tapete" por meio de explicações aparentemente aplicáveis apenas ao que é geral. Mas, será que a explicação mais verdadeira é aquela que serve para a maioria ou a que não deixa nenhum fato de lado? Na medicina, não se aprende nada sobre doenças estudando apenas os sãos. Portanto, é preciso estudar o anômalo, pois só ele permite estabelecer novas correlações, e explicar a exceção além da regra

Isso é justamente o que acontece nos chamados sonhos anômalos. Seriam eles sonhos comuns, não fosse o fato de que se aproximarem dos sonhos lúcidos e trazerem mensagens que contêm "conteúdo anômalo", além de bastante significativos. Um trabalho interessante é o de S. Krippner e L. Faith, entitulado "Sonhos exóticos: um estudo intercultural" (3). Nesse trabalho, os autores conseguiram separar (de um conjunto com quase 1700 relatos de sonhos), aproximadamente 185 (ou 8%) considerados "exóticos". Os sonhos receberam uma classificação conforme o tipo: sonhos de curas, sonhos lúcidos, sonhos criativos, sonhos com experiências fora do corpo, sonhos compartilhados, sonhos dentro de sonhos (como eu tive), sonhos com vidas passadas, sonhos de visitas etc.

Interessante, por exemplo, são os chamados "sonhos compartilhados". São relatos de pessoas que têm sonhos mútuos, ou seja, os sonhos são posteriormente descritos como coincidentes para mais de uma pessoa, o que revela um enfraquecimento do caráter "primeira pessoa" do sonho (4).

Nos sonhos criativos, Krippner e Faith registraram casos em que pessoas foram auxiliadas em sonho na solução de problemas da vida da vigília.

Em um sonho precognitivo, um indivíduo sonhou antecipadamente com a pessoa com quem iria se casar mais tarde.

Em um sonho de visitação, uma pintora do Japão relatou ter sido aconselhada por seu pai, falecido na Segunda Guerra mundial, a escolher certos tipos de pintura e até sobre como usar o pincel. A experiência foi bastante significativa para ela, que melhorou seu desempenho profissional.

Os autores também descobriram que nem sempre sonhos sobre tragédias terminam de forma fatal, mas se manifestam antes como anúncios de doenças ou de situação vulnerável de pessoas à distância.

Finalmente, os autores em (3) parecem ter descoberto uma correlação entre a incidência de sonhos anômalos e o tipo de cultura em que ocorrem. De fato, essa correlação faz sentido, considerando que os sonhos são interpretados em termos de uma bagagem mental prévia. Assim, quanto maior for o discernimento que o indivíduo tem a respeito das realidades do espírito, tanto mais claros espiritualmente serão os registros deixados nos sonhos, cuja manifestação se dá como sonhos exóticos ou peculiares.

É possível ainda que a maioria das pessoas já tenha experimentado - ao menos uma vez na vida - esse tipo de sonho.

Conclusões

Nessa pequena anotação, elencamos alguns aspectos que parecem relevantes para entender a gênese e o processo dos sonhos.

A compreensão do mecanismo dos sonhos deve tanto explicar a dinâmica dos sonhos com a imensa maioria das pessoas, como também aquelas experiências bastante peculiares, que ocorrem com grupos específicos, e que podem também se manifestar ao menos uma vez na existência dessa maioria.

Não é possível entender os sonhos sem a compreensão da natureza dual do ser humano, que explica os sonhos peculiares como um semi-desdobramento da alma. Aquilo que chamamos de sonhos são, na verdade, lembranças de ocorrências durante o sono, na sua maioria remontadas a partir de lembranças ou memórias já vividas. Essa explicação está de acordo com a ideia de que, no estado do sonho, o Espírito não pode sensibilizar diretamente o corpo (leia-se o cérebro), porque está dele afastado. No processo de "remontagem" da lembrança, tanto experiências da vida presente (fatos corriqueiros, pessoas etc) são usados, como também lembranças não ordinárias (p. ex., de vidas anteriores, de outros sonhos etc).

O caráter aleatório, estranho ou sem sentido da maioria dos sonhos é consequência dessa remontagem a partir de um banco de fragmentos de lembranças. De forma geral, o sentido dos sonhos só existe para a pessoa que o tem. É muito difícil interpretar corretamente os sonhos, embora isso possa acontecer excepcionalmente.

O entendimento de que sonhos são lembranças da vida do Espírito permite explicar uma grande variedades de relatos de sonhos considerados "anômalos", que são importantes fontes reveladoras do mecanismo dos sonhos. Sem atenção a esses relatos anômalos, a explicação dos sonhos fica reduzida a meros "alucinações" ou "fantasias" do cérebro, sem correlação com a verdadeira realidade que os explica.

Em particular, além da divisão entre "sonhos ordinários" e "peculiares", para a maioria das pessoas, os sonhos ainda se dinstinguem entre "comuns" e "lúcidos". Nos sonhos lúcidos, o indivíduo que sonha sabe que sonha e por isso, teoricamente pode "controlar" o que sonha. Aparentemente, esse controle estaria sujeito a treinamento (5).

Parece evidente que o sonhar é fase importante do desenvolvimento ou progresso da alma encarnada, quando ela exercita, por repetição, sua libertação do corpo físico e rememora sua vida desencarnada. Em certo sentido, sonhar é um treino para a libertação final da morte.

Notas e referências

(1) A. Kardec. "Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas". Vocabulário Espírita. Sonho.

(2) O que também é verdade com os animais. Essa observação se baseia na contatação de certos padrões de ondas cerebrais em mamíferos, o que seriam indícios de sonhos em semelhança com  os humanos. Sobre a questão do sonho nos animais ver: Pearlman, C. A. (1979). REM sleep and information processing: evidence from animal studies. Neuroscience & Biobehavioral Reviews, 3(2), 57-68.

(3) Krippner, S., & Faith, L. (2001). "Exotic dreams: A cross-cultural study". Dreaming, 11(2), 73-82.

(4) Outro trabalho relacionado a sonhos compartilhados é Davis, W. J., & Frank, M. (1994). "Dream sharing: A case study". The Journal of psychology, 128(2), 133-147.

(5) Ver, p. ex.: May E. C & LaBerge S. (1991) "Anomalous Cognition in Lucid Dreams". Science Applications International Corporation. Interessantemente, uma página da CIA (Agência de Inteligência Americana) hospeda esse documento. Em Março de 2019, pode ser encontrada aqui: