31 de janeiro de 2019

A questão sobre o magnetismo animal e o nome "magnetismo" II


Continuação do post A questão sobre o magnetismo animal e o nome "magnetismo" I.

Kardec fez referência ao magnetismo 'físico' (1) , assunto de nosso post anterior:
Quem, de magnetismo terrestre, apenas conhecesse o brinquedo dos patinhos imantados que, sob a ação do imã, se movimentam em todas as direções numa bacia com água, dificilmente poderia compreender que ali está o segredo do mecanismo do Universo e da marcha dos mundos. (grifo meu)
Nada mais natural do que a designação 'magnetismo animal' diante de tantos magnetismos: 'ambárico', 'vitreo', da 'magnesia' e entre corpos celestes ou 'gravitacional'. A semelhança entre o 'motus operandi' desse novo magnetismo para o dos magnetos ou terrestre justificava a apropriação de nomes. Certamente, a figura de F. A. Mesmer (1734-1815) é responsável pela uso desses termos no último quartel do Século 18.

O próprio Kardec já afirmava que a analogia era errônea:
Demonstrou a experiência que não existe tal analogia ou que é apenas aparente. Assim a denominação não é exata. Como, porém, foi consagrada pelo emprego universal, e como, por outro lado, o epíteto que é adicionado não permite equívocos, haveria mais inconveniente do que utilidade em substituir a expressão. (2)
O erro tinha a ver com a crença de que se poderia usar imãs como instrumentos de cura no magnetismo animal. Do que se tratava o novo fenômeno? Kardec define de forma bastante didática e sumária esse novo 'magnetismo':
O magnetismo animal pode assim ser definido: ação recíproca de dois seres vivos por meio de um agente especial chamado fluído magnético. (2)
Essa definição nos leva a outro termo: o fluido magnético. Como no caso da apropriação que aconteceu com o próprio termo 'magnetismo', aqui também, por uma sequêcia de assimilações agora no mecanismo de atuação do fenômeno, um fluido é evocado como responsável pela intermediação dos efeitos. A floresta terminológica agora se adensa, porque mais de um nome é usado para o mesmo fluido: fluido vital, fluido nervoso etc.

Não só isso: chegamos a uma bifurcação conceitual importante, que está na raiz dos conceitos de cura frequentemente tema de dissertações espíritas, e as explicações da moderna ciência médica propriamente dita. 
Para alguns, o princípio vital é uma propriedade da matéria, um efeito que se produz quando a matéria se acha em dadas circunstâncias. Segundo outros, e esta é a idéia mais comum, ele reside em um fluido especial, universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parcela durante a vida, tal como os corpos inertes absorvem a luz. Esse seria então o fluido vital que, na opinião de alguns, em nada difere do fluido elétrico animalizado, ao qual também se dão os nomes de fluido magnético, fluido nervoso, etc (3, grifos nossos).
Kardec parecia estar bem informado a respeito do debate entre o fisicalismo e o vitalismo, conforme esse trecho acima sugere. O vitalismo é uma linha de  raciocíno que argumenta ser a vida essencialmente irredutivel às leis físicas. Para o fisicalismo, a vida nada mais é do que uma manifestação mecânica dessas leis. Embora seja crença universal que o fisicalismo ganhou o debate, as grandes mudanças que aconteceram em nossa compreensão sobre as leis físicas podem ainda revelar surpresas (4). De qualquer forma, seja porque tivesse preferência pelo vitalismo ou porque os Espíritos usaram largamente o fluido magnético como explicação para muitas curas, Kardec tomou claramente a via não fisicalista (4b).

O magnetismo animal continua vivo por meio de inúmeros tratamentos alternativos e complementares tais como o passe espírita, o toque terapêutico, o Reiki dentre outros.
A ideia de que um fluido é transmitido entre seres vivos sustenta um número grande de terapias alternativas, como é o caso do Reiki, do Johrei, do Toque Terapêutico e do próprio passe espírita. Independente de qual 'teoria' esteja certa no contexto do debate considerado 'terminado' entre o vitalismo e o fisicalismo, evidências importam na demonstração de que, de fato, 'algo' é transferido entre os seres vivos, notadamente de curadores para pacientes e também para outros seres vivos.  Basta uma simples pesquisa para se levantar uma quantidade grande de estudos que mostram a existência do efeito (5), indepentende da opinião de céticos:
  • O "toque terapêutico estimula a proliferação de células humanas em culturas", ver (5), ref. 2. 
  • O "impacto potencial do tratamento do biocampo sobre células de tumor cerebral" (5, ref. 7).
  • "Efeito do passe espírita no crescimento de culturas de bactérias." (5, ref. 8) 
  • "O Toque Terapêutico tem efeitos significativos sobre metástases de câncer mamário de ratos e resposta imunológica, mas não sobre tamanho do tumor primário". (5 ref. 9)
  • "O Johrei, uma técnica de cura Japonesa, é capaz de aumentar o crescimento de cristais de sucrose". (5, ref .10)
Para mim está claro que o magnetismo animal sobrevive como causa desses fenômenos. Os efeitos, porém, são pequenos (6), não só porque se desconhece os mecanismos pelos quais eles poderiam ser aumentados, como também, a despeito da boa vontade, muitos dos 'doadores de fluidos' não dispõem de recursos maiores. Hoje o magnetismo animal encontra-se travestido por outros nomes tais como 'biocampo', 'terapias energéticas' e 'campo energético', entretanto, trata-se do mesmo efeito de ação à distância entre seres vivos.

A transformação do magnetismo de Mesmer em Hipnotismo

Desde o início do magnetismo animal, era necessário dar uma explicação convincente sobre as inúmeras curas e comportamentos insólitos observados junto aos pacientes tratados por Mesmer. Por 'convincente' entende-se explicações que satisfaçam ao senso comum e que fossem aceitas amplamente.

Já em 1784, uma comissão de notáveis (7) organizada pelo Rei Luis XVI - a incluir Lavoisier e Franklin - verificou a realidade das curas obtidas por ele. O objetivo da comissão era não só atestar as curas, mas também saber se a explicação dada por Mesmer (que envolvia o fluido magnético) era correta. Como tal fluido não pôde ser visto, ela concluiu pela sua inexistência. A comissão também concluiu que as curas observadas eram devidas ao efeito da 'imaginação' dos pacientes.

Começava então a fase das explicações de produto da sugestão, a partir de trabalhos de Abbe Faria (1756-1819) e James Braid (1795-1860), que criou o termo hipnotismo. A partir de então, por um processo de assimilação e explicação simplificada, o magnestimo animal foi associado inteiramente ao hipnotismo como explicação. Nas palavras de Braid:
...E em oposição ao Mesmerismo Transcendental (a saber, metafísico) dos mesmeristas... [supostamente] induzido pela transmissão de uma influência oculta do [corpo do operador para o do sujeito], o Hipnotismo, [pelo qual] eu quero dizer uma condição peculiar do sistema nervoso, na qual ele pode ser lançado por uma manobra artificial ....[é uma posição teórica] interiamente consistente com os princípios geralmente admitidos da ciência fisiológica e psicológica e, portanto [deve ser mais apropriadamente] chamado Mesmerismo Racional. (8)
A ideia de que pessoas seriam 'sugestionáveis' ou poderiam cair em um estado de percepção exacerbada foi tanto uma descoberta como uma explicação conveniente para os desafetos de Mesmer, que incluiam grande parte do mundo médico de sua época, praticantes de uma medicina que pouco tinha evoluido desde a antiguidade. Essa explicação, entretanto, desconsiderou sem razão as inúmeras curas e peculiaridades dos fenômenos  do magnetismo animal. E curas o hipnotismo não foi capaz de prodigalizar, ainda que se integrasse à prática médica (9).  Com vimos, o que fazer com as centenas de evidências de alterações observadas em tecidos biológicos por meio do processo de imposição de mãos?

É inquestionável que o fenômeno hipnótico existe, porém, ele não é a explicação correta para o magnetismo animal, que permanece como um fenômeno de fronteira.

Conclusões

A explicação popular de que o mesmerismo ou magnetismo animal nada mais é do que um fenômeno de sugestão, modernamente conhecida como hipnotismo, é falsa. O magnetismo animal sobrevive conforme atestam centenas de trabalhos científicos com amostras inanimadas ou com vida orgânica simples, desbancando as 'teorias de placebo', que propõem esse efeito como causa única das curas observadas em humanos.

Não obstante isso, o efeito placebo e o hipnotismo existem e são amplamente usados em medicina. Provavelmente o placebo é de causa ainda mais complexa, porque envolve um ser consciente que pode atuar sobre si. Todas esses efeitos secundários (sugestibilidade, excitabilidade etc) podem atuar junto ao magnetismo animal, tornando ainda mais difícil compreender o fenômeno das cura observadas em seus diverso componentes.

Tanto os termos 'fluido magnético' como 'sugestão' ou 'placebo' são containeres genéricos que carecem, eles mesmos da determinação de causas subjacentes. Embora seja possível traçar a atuação bioquímica de processos metabólicos que induzam ou suprimam os sintomas de várias doenças, existem inúmeros caminhos desconhecidos que também desembocam nesses processos, resultando nos mesmos efeitos. Considero particularmente problemático chamar esses mecanismos de 'não-físicos', visto que tudo que existe na Natureza pode ser explicado por uma via racional, dispensando-se qualificativos 'místicos' ou 'miraculosos'.

Para complicar ainda mais as coisas, o Espiritismo vai além e descobriu um terceiro elemento na complexa cadeia de processos de cura: os Espíritos desencarnados. Um médium de cura é um curador ou magnetizador capaz de manipular o fluido magnético potencializado pela ação dos Espíritos. Os Espírios podem tanto aumentar a capacidade curativa do fluido como suprimi-la completamente. Essa é a razão, talvez, porque muitos desses fenômenos não ocorrem de forma homogênea em todos os lugares da Terra. Também é a razão para não acreditar que eles possam atualmente prover uma terapia bem definida, ainda que complementar, tendo em vista seu caráter incontrolável.

Referências e comentários

(1) A. Kardec. O Livro dos Espíritos. 4a Parte, "Das esperanças e consolações". Conclusão, I. Versao www.ipeak.com

(2) A. Kardec. Instruções prátias sobre as manifestações espíritas. Termo "Magnetismo animal". Kardecpedia.com

(3)  A. Kardec. O Livro dos Espíritos. "Introdução ao Estudo da Doutrina Espírita", II. Versao www.ipeak.com

(4) Aqui temos claramente um problema pois, se entendemos por 'leis físicas' aquelas conhecidas no século 19, o fisicalismo disso resultante deixará muito a desejar. Mas, não parece ser fácil negar esse argumento mesmo com a física moderna, afinal quem tem certeza de que temos as leis finais ?

(4b) A posição de Kardec pode também ter sido motivada pela identificação mais forte do fisicalismo com o materialismo.

(5) Ver, por exemplo:
  1. Burden, B., Herron-Marx, S., & Clifford, C. (2005). The increasing use of Reiki as a complementary therapy in specialist palliative care. International Journal of Palliative Nursing, 11(5), 248-253.
  2. Gronowicz, G. A., Jhaveri, A., Clarke, L. W., Aronow, M. S., & Smith, T. H. (2008). Therapeutic touch stimulates the proliferation of human cells in culture. The Journal of Alternative and Complementary Medicine, 14(3), 233-239.
  3. Radin, D., Schlitz, M., & Baur, C. (2015). Distant Healing Intention therapies: An overview of the scientific evidence. Global advances in health and Medicine, 4(1_suppl), gahmj-2015.
  4. Monroe, C. M. (2009). The effects of therapeutic touch on pain. Journal of Holistic Nursing, 27(2), 85-92.
  5. VanderVaart, S., Gijsen, V. M., de Wildt, S. N., & Koren, G. (2009). A systematic review of the therapeutic effects of Reiki. The Journal of alternative and complementary medicine, 15(11), 1157-1169.
  6. Wardell, D. W., & Engebretson, J. (2001). Biological correlates of Reiki Touch's healing. Journal of advanced nursing, 33(4), 439-445.
  7. Trivedi, M. K., Patil, S., Shettigar, H., Mondal, S. C., & Jana, S. (2015). The potential impact of biofield treatment on human brain tumor cells: A time-lapse video microscopy. HAL archives ouverteshttps://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01416895/document
  8. Lucchetti, G., de Oliveira, R. F., de Bernardin Gonçalves, J. P., Ueda, S. M. Y., Mimica, L. M. J., & Lucchetti, A. L. G. (2013). Effect of Spiritist “passe”(Spiritual healing) on growth of bacterial cultures. Complementary therapies in medicine, 21(6), 627-632.
  9. Gronowicz, G., Secor, E. R., Flynn, J. R., Jellison, E. R., & Kuhn, L. T. (2015). Therapeutic touch has significant effects on mouse breast cancer metastasis and immune responses but not primary tumor size. Evidence-Based Complementary and Alternative Medicine, 2015. http://downloads.hindawi.com/journals/ecam/2015/926565.pdf
  10. Teixeira, P. C. N., Rocha, H., & Neto, J. A. C. (2010). Johrei, a Japanese healing technique, enhances the growth of sucrose crystals. Explore: The Journal of Science and Healing, 6(5), 313-323.
(6) Com isso queremos dizer que não é possível a cura ostensiva de doenças. A grande maioria dos trabalhos tratado do alívio e da melhora dos sintomas associados a determinadas enfermidades que são devidamente acompanhadas por seus tratamentos médicos. Isso não significa que a cura completa de doenças não possa acontecer por meio do magnetismo animal. Para isso importa determinar o mecanismo de sua atuação que tornaria possível o seu controle e aumentar seus efeitos.

(7) IML Donalson (20150. Reports on the Royal Commission of 1784 on Mesmer's system of Animal Magnetism. Disponível em :

https://www.rcpe.ac.uk/sites/default/files/files/the_royal_commission_on_animal_-_translated_by_iml_donaldson_1.pdf

(8) J. Braid (1850). "Observations on Trance: Or, Human Hybernation". "Ver vocábulo 'Animal Magnetism' na Wikipedia. 


(9). De fato, a hipnose não constitui terapia. Ver Spiegel, H., & Spiegel, D. (2008). Trance and treatment: Clinical uses of hypnosis. American Psychiatric Pub.




1 de dezembro de 2018

Notícias de trabalhos científicos para o Movimento Espírita: novembro 2018


Grübelei/Liszt por Érico Bomfim (novembro de 2018)

Imagem do vídeo de Érico Bomfim contendo a mais nova versão de Grübelei por Brown/Liszt. Clique na imagem para acessar o video.
A conhecida médium inglesa Rosemary Brown, uma das mais importantes mediunidades musicais no Século XX, compos uma peça em frente às câmeras de TV ditada pelo Espírito de Liszt. Diz-se que críticos musicais ficaram bastante impressionados com o feito, dado que a música refere-se ao estilo tardio de Franz Liszt e não ao de suas composições popularmente mais conhecidas. 

Diversas versões de Grübelei foram lançadas e podem ser achadas no youtube. Agora, um músico brasileiro acaba de gravar uma nova versão. Para ouvir a belíssima composição mediúnica tocada por Érico Bomfim (disponível no Youtube):


Mais sobre Rosemary Brown: A colaboração Schubert-Rosemary Brown.
Lançamento de "A Sobrevivência da Alma em Foco" 

Recebi de Jáder Sampaio o Vol. 8 da "Série Pesquisas Brasileiras sobre Espiritismo" editado pela CCDPE que contém a coletânea de textos do 14o ENLIHPE  realizado em 2018. Esse livro traz artigos interessantes de pesquisas científicas recentes em mediunidade e história do Espiritismo que foram apresentados na reunião deste ano.

Sem prejuízo aos diversos autores que contribuiram para a obra, considero particularmente interessante destacar o trabalho de natureza empírica em mediunidade "Experimentos de Evocação de Pessoas Falecidas por Meio do Método de Varredura Medianímica" de Raphael V. Carneiro e L. P. de Souza. Trata-se de uma proposta inovadora para a pesquisa em mediunidade, que visa extrair o máximo de informação de um grupo de médiuns, principalmente naqueles que não dispõem de colaradores com mediunidade muito extensiva. Essa proposta é interessante porque pode ser replicada por qualquer grupo sério de médiuns nos inúmeros centros espíritas que existem no país. 

Interessados em adquirir a obra podem consultar o site do CCDPE.

Dados de "A Sobrevivência da Alma em Foco".

  • Série Pesquisas Brasileiras Sobre o Espiritismo – Vol. 8
  • Organizadores Jáder dos Reis Sampaio e Marco Antônio F. Milani Filho
  • Autores Diversos
  • Gênero: Cursos e Estudos
  • Assunto: Estudos e Pesquisas
  • Idioma: Português
  • Editora: CCDPE-ECM
  • ISBN: 978-85-64907-09-6
  • Número de Páginas: 272
  • Tamanho: 16,00 x 23,00 cm

15 de novembro de 2018

A natureza do argumento espírita


É vaidade imaginar que se pode introduzir 
uma nova filosofia ao refutar um ou outro autor. 
Primeiro, é necessário ensinar a reforma do espírito humano, 
e torná-lo capaz de distinguir a verdade da falsidade...o que só Deus pode fazer!

Galileu Galilei

É importante que o espírita, principalmente aquele que se dedica à argumentação nos tempos conturbados das opiniões democráticas das redes sociais, preste atenção antes de tudo à natureza do argumento espírita. Como bem demonstou Schopenhauer [1], para se vencer um embate argumentativo não é necessário estar certo. A vitória demonstrada por Schopenhauer depende do grau de sugestibilidade da plateia, em sua facilidade de convencimento por argumentos psicologicamente fortes, mas não necessariamente certos. Disso vem que o embate muitas vezes é aparentemente vencido por quem tem melhores predicados retóricos e não conhecimentos filosóficos ou científicos.

Como entendemos que o primeiro compromisso do espírita deve ser com a verdade, recomenda-se meditar profundamente sobre o tipo de argumento ou contra-argumento apresentado em qualquer discussão. Com relação aos embates que envolvem o Espiritismo - conforme apresentada por A. Kardec e os Espíritos - são escassas as chances de falha se o objetivo for defender a verdade e promover o progresso e não simplesmente ganhar uma discussão.  Em síntese: mais vale sair certo porém vencido em uma discussão do que vitorioso na mentira. 

Em que pese a divisão bastante didática apresentada por Kardec do Espiritismo como religião, ciência e filosofia, convem não se esquecer de que as bases sobre as quais se fundamenta todo esse alicerce é de natureza empírica. Não foi se não por meio de uma cadeia de raciocínios lógicos que Kardec chegou à conclusão de que seria possível questionar os Espíritos, que eram apenas as almas dos falecidos e não, como supunham as religiões dogmáticas, almas penadas ou demônios, iniciando uma revolução ainda não totalmente compreendida pelo pensamento humano. A sobrevivência da alma é um fator chave para a revolução desse pensamento, algo que não poderia se basear tão somente em uma assunção mantida pela afirmação de uma crença. Ela teria que ser demonstrada experimentalmente, de onde se extrai toda sua força.

A comunicabilidade (base empírica) levaria imediatamente à conclusão da sobrevivência (conhecimento) como corolário da interação entre humanos e desencarnados. Então, assim como é possível perguntar a um povo indígena recem descoberto sobre seus constumes e crenças, também seria possível perguntar aos Espíritos sobre sua condição de vida no além-túmulo. Eis ai a pedra de toque de Kardec: diante dela caem todos os argumentos daqueles que pretendem destruir o espiritismo filosofico fora do contexto "experimental" da sobrevivência. Essa é a razão também para se concluir, como fez Kardec, que o argumento espírita jamais terá natureza dogmática.

Dogmas são desnecessários quando se explicam as coisas em conformidade com as leis da Natureza [2].

Em suma, de que adianta contrapor milênios de crenças fundamentada em tradições, em conclusões aparentemente justas, mas baseadas em premissas imaginadas, se basta uma simples entrevista com um desencarnado para se conhecer o estado de ventura ou sofrimento a que a alma está sujeita conforme foram suas ações durante a vida? Por mais respeitáveis e bem apresentadas que sejam, tradição e cultura religiosas ou argumentação cética,  sejam elas oportunistas ou sinceras, de nada servem frente à manifestação de leis naturais que sempre existiram, mas que os homens, por ignorância, deixaram de valorizar porque suporam que jamais seria possível conhecer cientificamente tais assuntos. 

Assim, o Espiritismo representa verdadeiramente avanço no conhecimento humano tanto quanto foi um avanço perceber que seria possível usar as forças da Natureza (eletricidade, magnetismo, calor) em benefício da suavização do trabalho humano e do progresso material pela multiplicação dos meios de produção. À evolução do progresso material, o Espiritismo acrescentou a possibilidade da aceleração do progresso moral pelo conhecimento e bom aproveitamento das leis que regem as recompensas ou reparações em conformidade com as ações durante a vida. O Espiritismo forneceu assim as bases para a justificativa científica das máxima evangélicas, não como imposições de um Deus vingativo em que se acredita, mas como consequências lógicas da ação de leis automáticas de evolução incessante, que operam no âmago da consciência de cada indivíduo. 

Entretanto, parece pequeno o contingente de espíritas que conhecem a força do eixo empírico dado por Kardec a toda argumentação espírita. Ela torna quase que inabaláveis as deduções filosóficas e morais do Espiritismo. Uma prova dessa força se encontra na malícia de alguns inimigos do Espiritismo. Essa foi a razão para o surgimento de tantos "padre parapsicólogos" que passaram a  desconstruir aparentemente a descoberta espírita, dissemiando teorias ridículas, fantásticas ou aparentemente em "acordo" com a ciência, sendo que essa última nunca teve interesse em pesquisar seriamente a sobrevivência.  Sabiam eles que, destruidas as possibilidades de comunicação, a defesa de suas próprias concepções religiosas poderia ter alguma chance de triunfo. Tratava-se, porém, de uma velha tática sem sucesso, que já fora usada muitas vezes contra os próprios avanços da ciência material.

Entendemos a importância de muitos argumentos que têm por fundamento bases filosóficas e religiosas exclusivamente. Porém, tal como ocorreu nas ciências, o peso das descobertas sobre como realmente funciona a Natureza (do ser, da vida maior, da relação entre espírito e corpo etc) ainda terá que ser melhor valorizado pelos que gostam de debates sem levar em conta esses fundamentos. Uma vez convencidos de sua importância, nossa visão se aclara e reconhecemos os erros do passado e a pretenção dos que seguem as escuras sem as luzes providas pela evidências sobre como as coisas de fato acontecem no Universo. Além disso, os argumentos com base natural reforçam todos os outros dele derivados (seja filosóficos ou religiosos), provendo uma base ainda mais sólida para a crença, ou seja, uma base que não poderá ser abalada por qualquer descoberta científica, visto que ela mesma se baseia nessas descobertas.

Referências e notas

[1] A. Schoepenhauer (2003). Como vencer um debate sem ter razão. Ed. Topbooks. 1a Ed. Trad. O. de Carvalho.

[2] Disso segue também que dogmatismo nas ciências não tem sentido: é mais fruto da ignorância humana e do mau uso que faz do conhecimento. Quando a criatura é vaidosa ou arrogante, ela faz do pouco que sabe sua arma de auto-afirmação. Com isso passa a defender de forma dogmática esse  saber (ou o que ela aparenta saber de forma precária) como se a sua vida (na verdade, sua reputação) dependesse dele para existir.

16 de outubro de 2018

Espiritismo, política e problemas atuais


Discute-se a política que move os interesses gerais; 
discutem-se os interesses privados; 
apaixona-se pelo ataque ou pela defesa das personalidades; 
os sistemas têm partidários e detratores, mas as verdades morais,
 que são o pão da alma, o pão da vida, 
são deixadas no pó acumulado pelos séculos. 
Todos os aperfeiçoamentos são úteis aos olhos da multidão, salvo os da alma. 

J. J. Rousseau, Médium Sra. Costel, Revista Espírita, Agosto de 1861. 
"Dissertações e ensinos espíritas" (1)

A economia, as eleições e os embates políticos atuais nos convidam a meditar sobre conceitos como governo, política e temas administrativos. O que o Espiritismo teria a dizer sobre o assunto? 

É evidente que o tema é complexo e exige conhecimento especializado. A multiplicidade de interesses, crenças filosóficas e de pensamento são tão grandes entre aqueles que se aproximam do poder que é muito difícil dar uma resposta única a esses problemas. Assim, ainda que houvesse acordo em relação aos princípios que devem nortear programas de governo, existe discordância em relação à maneira como tais princípios devem se organizar na administração, tendo em vista os conflitos de interesse entre diversos grupos que pretendem realizar essa organização.

Assim, é impossível a definição de apenas uma maneira de governar. Por outro lado, ainda que os os interesses coincidissem, mas de forma desorganizada - o que obviamente não ocorre - o excesso de ideias, de pontos de vista e heurísticas de organização do poder tornariam novamente inviável qualquer solução simples. A julgar porém que muitas nações conseguiram transitoriamente razoável estabilidade e aparente equidade social (pelo menos do ponto de vista material), temos a certeza de que uma solução próxima do ótimo também deve existir para um país tão complexo como o Brasil.

Mas, será que podemos usar o Espiritismo para descobrir qual o melhor caminho a seguir em problemas administrativos e políticos?

O propósito do Espiritismo

Convencer intelectualmente a alma humana (2) da continuidade da vida após a morte, da progressão sem fim em todos os sentidos e da necessidade de fraternidade com consequência desse destino final é um dos objetivo do Espiritismo. Assim, em qualquer relacionamento que se faça entre Espiritismo e tais assuntos, não se deve nunca perder de vista  que o Espiritismo jamais terá como objetivo sugerir (e, muito menos ditar) orientações para governos e instituições por uma questão de princípios próprios do Espiritismo. Entendemos que célula última da sociedade (o indivíduo) deve inicialmente se convencer da importância dos princípios universais do bem e da caridade como condição necessária para que esses problemas administrativos sejam, de fato, resolvidos. Por isso, o foco principal da Doutrina Espírita será, por enquanto, trabalhar no aprimoramento do ser humano através de sua educação moral.

É evidente que a base de todo o progresso, inclusive o material, está na evolução da alma. Primeiro porque se ela for mais educada, terá seus apetites materiais reduzidos, o que permite o compartilhamento de recurso entre todos. Segundo porque uma moral superior na sociedade torna a vida de todos mais fácil, por melhorar as relações humanas que também são a base para todas as trocas, inclusive aquelas que interessam aos aspectos materiais da vida presente. De fato, tudo é mais fácil quando as relações se dão entre almas verdadeiramente educadas. Mas educação, para o Espiritismo, não é apenas conhecimento intectual, mas também dos valores infinitos que o ser deve cultuar de forma a se harmonizar com seus semelhantes, com Deus e consigo mesmo.

Lembramos aqui o que Kardec já afirmava ao nascente movimento espírita de sua época (que é plenamente válidos para o momento atual):
Devo ainda assinalar-vos outra tática dos nossos adversários, a de procurar comprometer os espíritas, induzindo-os a se afastarem do verdadeiro objetivo da doutrina, que é o da moral, para abordarem questões que não são de sua alçada e que, a justo título, poderiam despertar suscetibilidades e desconfianças. Não vos deixeis cair nessa armadilha; afastai cuidadosamente de vossas reuniões tudo quando se refere à política e a questões irritantes; a tal respeito, as discussões apenas suscitarão embaraços, enquanto ninguém terá nada a objetar à moral, quanto esta for boa (Grifos nossos, 3). 
Assim, além da relevante questão de separação entre "religião e Estado", deve-se procurar também afastar os assuntos espíritas de quaisquer influências de envolvimento com tais questões irritantes, de forma que o movimento espírita não se contamine com utopias de natureza política promovida por grupos de interesses diversos. Jamais o espírita deverá se deixar levar pelo "canto de sereia" daquilo que nasceu fora do contexto espírita (e, principalmente, com claras idealizações materialistas) e que com ele nada tenham a ver a não ser um vago anseio pela melhoria da vida dos homens sem se especificar a que custo.  

Ora, que se tenha tais anseios é muito fácil de defender, pois é desejo compartilhado por qualquer um. Quem se colocaria contra uma corrente de pensamento, doutrina ou partido que pretenda melhorar as condições de vida dos cidadãos? Quem se oporia à redução das injustiças sociais? Quem reprovaria a distribuição equitativa de riquezas? Disso não seque que qualquer meio para se atingir tal objetivo deva contar com o apoio de uma doutrina de caráter moral e que prega a continuidade da vida após a morte com consequências claras para vida futura. Além disso, como as reais intenções dos indivíduos não estão disponíveis publicamente, não existem garantias quanto à credibilidade de seus proponentes, ainda mais em uma época em que as pessoas guardam tão pouco apreço pela verdade.

Existe uma distância imensa entre os diversos métodos propostos para se chegar a esse estado de justiça e aquilo que realmente deve ser feito, considerando-se a conjuntura presente da sociedade, os inúmeros conflitos de interesse e a existência de indivíduos sem escrúpulo que se apropriam desses anseios em benefício próprio. Dessa forma, o leitor deve considerar as consequências para sua vida futura de seu engajamento em ações eticamente inconsistentes e que prejudicam diretamente determinadas pessoas em nome da "defesa de interesses" de outras. Por fim, deve ainda considerar que o silêncio, omissão ou não ação diante de situações claramente vexatórias e discriminantes também trará consequências futuras.
Deus retribuirá a cada um segundo as suas obras. (Romanos 2:6)
Está vedado ao espírita sua manifestação política? Obviamente que não, porém, o indivíduo que se diz espírita deve procurar meditar sobre a consistência lógica de seu posicionamento diante dos princípios imortalistas que diz defender. Se ele não fizer isso, estará propagando por seus atos uma crença incoerente ou propaganda falsa. O primeiro compromisso do espírita deve ser com a verdade.

Enquanto espera, conseguisse ele corrigir um único defeito...

Sei que muitos podem se decepcionar com essa conclusão bastante clara do pensamento espírita escorado em seus princípios. A outros ela parecerá excessivamente utópica ou impraticável. Convém revisar, entretanto, a resposta à questão # 800 de "O Livro dos Espíritos":
800. Não será de temer que o Espiritismo não consiga triunfar da negligência dos homens e do seu apego às coisas materiais? 
“Conhece bem pouco os homens quem imagine que uma causa qualquer os possa transformar como que por encanto. As idéias só pouco a pouco se modificam, conforme os indivíduos, e preciso é que algumas gerações passem, para que se apaguem totalmente os vestígios dos velhos hábitos. A transformação, pois, somente com o tempo, gradual e progressivamente, se pode operar. A cada geração uma parte do véu se dissipa. O Espiritismo veio para rasgá-lo de alto a baixo; mas, enquanto espera, conseguisse ele corrigir num homem apenas um único defeito que fosse e já o haveria ajudado a dar um passo. Ter-lhe-ia feito, só com isso, grande bem, pois esse primeiro passo lhe facilitará os outros.” (Grifo nosso, 1)
De onde se depreende que os métodos usados pela lei Divina (que o Espiritismo toma como orientação da vida do indivíduo) são bastante diferentes daqueles idealizados pelos encarnados que têm pressa em mudar a situação atual com base na crença de que a presente existência é a única que existe. 

Não sabemos quando o estado final de felicidade perene se concretizará, mas temos como certo que a proposta de aprimoramento do ser por enquanto tem sido relegada ao "pó dos séculos" pelo desprezo que o progresso material da civilização deu às questões da alma, que sequer é considerada como a existir. Assim, muitos dos métodos  criados para se chegar a esse estado de justiça e equidade partem do pressuposto que apenas os aspectos materiais devem ser privilegiados, o que cria um conflito entre esses objetivos e a realidade do destino final da alma humana que existe e sempre existirá.  Que o progresso material deva ser conseguido a qualquer custo não parece também ser um objetivo defensável, haja vista as diversas consequências negativas desse progresso em outros sentidos (problemas ambientais e climáticos, conflitos e desequilíbrios psicológicos vários etc).

Os princípios espíritas estão ligados a objetivos que talvez nunca se generalizem na superfície do Terra um dia. Seu alvo é a vida paralela imortal do ser e claramente levariam a uma rápida modificação das condições materiais e principalmente morais da vida na Terra se eles fossem sistematicamente buscados. Como haveremos, porém,  de convencer aos não espíritas de sua excelência se nós, que dizemos neles acreditar, agimos de forma inconsistente? É impossível ao espírita - que tem zelo por sua doutrina - esquecer os aspectos imanentes da vida humana nas horas em que ele é obrigado a decidir sobre todos os outros aspectos em sua presente e transitória encarnação.

Referências e Notas

(1) Ref: ver www.ipeak.com

(2) Dizemos intelectualmente, porque, todos os dias, milhares de pessoas entram em contato com o mundo invisível seja através de suas atividades durante o sono ou de algum grau de mediunidade. Assim, inconscientemente todos guardamos noção da sobrevivência e da vida maior. Além disso outros tantos milhares partes para o mais além através da morte. Entretanto, esse conhecimento ou lembrança permanece inconsciente na vigília dos encarnados cujas crenças mais ligadas aos sentidos e ao aprendizado acabam por dominar muito de suas decisões.  

(3) Kardec A. "Cumprimentos de Ano Novo". Revue Spirite, Fevereiro de 1862. (versão IPEAK www.ipeak.com). O artigo original em Francês tem como título "Les souhaits de nouvel an: Réponse à l'adresse des Spirites Lyonnais à l'occasion de la nouvelle année".