11 de janeiro de 2018

Sobre a mente inconsciente e sua perspectiva espírita.


A fronteira entre o Espiritismo e as experimentações psicológicas apresentam oportunidades interessantes de exploração e interpretação. Ela é tanto mais relevante para o lado espírita (que é o de nosso interesse imediato), pois mostra como alguns resultados recentes de experiências têm impacto na compreensão de fenômenos que estão na interface "espírito-corpo".

Um exemplo interessante discutimos brevemente aqui e diz respeito aos estudos algo recentes (um deles já tem 35 anos, ref. 1) sobre a importância da chamada "mente inconsciente" na tomada de decisões. Por "mente inconsciente" entendemos um conjunto de processos mentais que ocorrem sem que o indivíduo tenha "consciência" - aqui a palavra em inglês "awareness" é mais apropriada - dele. Essa consciência nos dá aquela sensação de que temos, de fato, controle sobre nossos atos. Assim como nos diversos órgãos do corpo que funcionam de forma autônoma (sem a deliberação da vontade por parte de quem o controla), o cérebro também operara de forma autônoma em muito da vida mental, quer dizer, ele funciona sem que o indivíduo tenha consciência disso. Eficiência e otimização parecem ser a principal causa para esse estado de coisas no campo mental.
Mente inconsciente

A noção de mente inconsciente não é nova. Já no começo do século 18, a ideia de "unbewußtsein" apareceu com o filósofo idealista alemão Friedrich Schelling (1775-1854). A crença popularmente aceita de que o homem poderia ser inspirado pelos deuses foi uma das razões para se suspeitar de que algo inconsciente operaria na mente humana e ajudou a consolidar o conceito sem, entretanto, qualquer aceitação científica. Uma outra fonte importante para a ideia do inconsciente veio da observação ordinária que pessoas, quando sob ação perturbadora de medicamentos ou drogas (p. ex., bebidas alcoólicas) agem de forma aparentemente inconsciente, e chegam a não se lembrar dos atos praticados, cessado essa ação externa. O grande popularizador do inconsciente foi sem dúvidas Sigmund Freud (1856-1939) que usou largamente desse princípio para o estudo de desvios do comportamento que ele explicou como resultado de desejos sexuais inconscientes reprimidos. Entretanto, a crença na existência do inconsciente demorou para ser estabelecida tendo em vista que sua aceitação leva a uma mudança radical na nossa concepção da mente humana e porque não se faz nenhuma ideia sobre como tal inconsciência operaria (2). Até hoje, a maior parte das pessoas nem desconfia do inconsciente, ou vive sem saber que ele existe e "controla" seus atos de forma sistemática.

Experimentos como o de Libet et al (1) foram um grande divisor de águas na comprovação da existência de uma "mente inconsciente" inicialmente descrita como um estado potencial de "prontidão" a operar sem qualquer intervenção consciente de seu dono. Antes dele, outras evidências de que sinais aparentemente não percebidos pelas pessoas poderiam determinar o curso de suas ações também forneceram provas indiretas da existência do inconsciente (2). O uso de técnicas de mapeamento cerebral (como é o caso da tomografia de pósitrons) permitiram observar em tempo real a operação do fenômeno. Essencialmente, distingue-se as áreas do cérebro responsáveis pela tomada de decisão e pela "consciência" dessa tomada. Por meio de técnicas experimentais é possível demonstrar que o decisão ocorre centenas de milissegundos antes de que as áreas de "awareness" sejam ativadas. Em suma: a decisão é tomada antes da consciência da escolha que precede, entretanto, o ato decisório como representado abaixo:


tomada de decisão -> consciência a decisão -> ato decisório.

Obviamente, a ciência moderna ainda debate a amplitude, origem e operação da mente inconsciente, mas sem as dúvidas sobre sua existência. Para os "behavioristas", por exemplo, as operações do inconsciente integram informação anterior e de ambiente e criam a decisão que sobe ao nível consciente dando a "impressão" de liberdade de escolha. Na atualidade esse debate tem impacto direta na noção de livre-arbítrio: se as decisões são inconscientes então provavelmente não temos controle de nossos atos. Na visão behaviorista extrema (que é radical mesmo para os padrões materialistas aceitos) somos meros autômatos pre-programados pelo ambiente, sem capacidade de decisão, mas com a ilusão de arbítrio próprio. O debate se alarga para áreas como a do direito, onde se pergunta até que ponto um criminoso não seria passível de culpa, caso essa visão radical de controle do inconsciente fosse adotada.

O leitor deve entretanto atentar para o fato de que experimentos que demonstram a operação do estado de prontidão pré-consciente nada provam contra o livre-arbítrio, mas apenas a existência desse estado inconsciente. É quando se passa a interpretar e tentar criar teorias para explicar a mente e sua complexidade que alguns cientistas chegam ao estremo de negar o livre arbítrio. 

O conceito do inconsciente no Espiritismo (segundo A. Kardec)

Os Espíritos também indiretamente indicaram a existência do estado inconsciente nos encarnados ao referir-se à vida do espírito como diversa, mais rica e diferente da vida da vigília. Há muitos trechos no "Livro dos Espíritos" (LE, 4) em que se pode ler sobre essa noção peculiar do inconsciente. A existência da vida do Espírito como independente da vida material está bem estabelecida, por exemplo, no Capítulo 8 do LE "Da emancipação da alma: o sono e os sonhos" e no Capítulo 7 "Da volta do Espírito à vida corporal: esquecimento do passado". Por exemplo, na questão #410a, Kardec questiona sobre para que serviriam as ideias adquiridas durante o sono (5) que são completamente esquecidas no estado de vigília. A resposta reafirma a existência de uma vida paralela à material que permanece inconsciente propositalmente, sem prejuízo ao aproveitamento dessas ideias:
Algumas vezes essas idéias mais dizem respeito ao mundo dos Espíritos do que ao mundo corpóreo. Com mais frequência, porém, se o corpo as esquece, o Espírito as retêm, e voltam no momento necessário, como uma inspiração súbita. (grifos nossos)
Certamente é no capítulo que trata das vidas pregressas que o inconsciente - como repositório de lembranças de vidas anteriores - surge de forma clara:
Não temos, é certo, durante a vida corpórea, lembrança exata do que fomos, nem do bem ou do mal que fizemos, em anteriores existências; mas temos de tudo isso a intuição, sendo as nossas tendências instintivas uma reminiscência do passado. E a nossa consciência, que é o desejo que experimentamos de não reincidir nas faltas já cometidas, nos concita a resistir àqueles pendores (LE, Cap. 6, final da resposta à questão #393, grifo nosso).
A lembrança fortuita de vidas pregressas e as capacidades instintivas que se manifestam na vida material são fatores que afetam a tomada de decisão do Espírito e que devem ser levados em consideração ao se explicar o funcionamento do estado inconsciente, principalmente sobre quais seriam as causas relevantes que levariam a uma decisão. Para o Espiritismo com Kardec, o estado inconsciente é a própria manifestação da vida do Espírito que pode pensar de maneira diversa no estado de vigília, quando tem "consciência" das coisas a seu redor a lhe afetarem a maneira de pensar. Isso está claramente indicado, por exemplo, em parte da resposta à questão #266 e # 267 sobre a escolha das provas da vida material:
266. Não parece natural que se escolham as provas menos dolorosas? 
Pode parecer-vos a vós; ao Espírito, não. Logo que este se desliga da matéria, cessa toda ilusão e outra passa a ser a sua maneira de pensar. (grifo nosso)
267. Pode o Espírito proceder à escolha de suas provas enquanto encarnado? 
O desejo que então alimenta pode influir na escolha que venha a fazer, dependendo isso da intenção que o anime. Dá-se, porém, que, como Espírito livre, muitas vezes vê as coisas de modo diferente. O Espírito por si só é quem faz a escolha; entretanto, ainda uma vez o dizemos, possível lhe é fazê-la mesmo na vida material, porque há sempre momentos em que o Espírito se torna independente da matéria que lhe serve de habitação. (grifos nossos)
Essa última questão é particularmente importante porque demonstra de forma clara que as decisões do Espírito encarnado se dão de forma inconsciente, como Espírito, ou seja, ele sequer precisa ter consciência (awareness) sobre tais escolhas.  A. Kardec tece um interessante comentário logo após a questão # 266 do qual extraímos o trecho:
A doutrina da liberdade que temos de escolher as nossas existências e as provas que devamos sofrer deixa de parecer singular, desde que se atenda a que os Espíritos, uma vez desprendidos da matéria, apreciam as coisas de modo diverso do nosso. Divisam a meta, que bem diferente é para eles dos gozos fugitivos do mundo. (grifo nosso)
Se viver é fazer escolhas, a primeira decisão que ocorre ao Espírito é sobre o tipo de existência que ele pretende passar em uma nova encarnação na Terra. Para o Espiritismo, entretanto, o livre-arbítrio, que é fundamental para se garantir a responsabilidade do Espírito sobre seus atos, não é uma "graça" concedida sem custo ao Espírito, mas algo que ele deve conquistar:
O livre-arbítrio se desenvolve à medida que o Espírito adquire a consciência de si mesmo. Já não haveria liberdade, se a escolha fosse determinada por uma causa independente da vontade do Espírito. A causa não está nele, está fora dele, nas influências a que cede em virtude da sua livre vontade. É o que se contém na grande figura emblemática da queda do homem e do pecado original: uns cederam à tentação, outros resistiram. (Resposta à questão #122, grifos nossos)
A necessidade de se escolher as provas e desenvolver seu livre arbítrio justificam assim o estado inconsciente, a perda de memória das vidas anteriores e de sua vida como espírito. O ser integral, quando encarnado, se manifesta em sua psicologia e maneirismos, sua atitude em relação à vida, seus instintos e tendências, sem prejuízo do aproveitamento de suas experiências. Como justificativa para esse estado de coisas, a questão # 370 reafirma o espírito como causa, porém, que a matéria o restringe:
370a. Dever-se-á deduzir daí que a diversidade das aptidões entre os homens deriva unicamente do estado do Espírito? 
O termo unicamente não exprime com toda a exatidão o que ocorre. O princípio dessa diversidade reside nas qualidades do Espírito, que pode ser mais ou menos adiantado. Cumpre, porém, se leve em conta a influência da matéria, que mais ou menos lhe cerceia o exercício de suas faculdades.
Para o Espiritismo, os espíritos são uma fator importante 
a influenciar a decisão do encarnado durante a vigília. Tal influência, 
entretanto, se dá de forma inconsciente. Imagem:"O Sonho da rainha
 Katherine", (Johann Heinrich Füssli, 1741-1825).
Inconsciente e obsessão 

O  inconsciente é um conceito importante para se entender "operacionalmente" como podem os Espíritos influenciar os encarnados.  Quando essa influenciação é negativa - de forma a aumentar o sofrimento do encarnado - fala-se em "obsessão" (LE, questão # 473). A questão #460 parece ser fundamental para se entender a ligação entre o inconsciente e a operação dessa influenciação:
460. De par com os pensamentos que nos são próprios, outros haverá que nos sejam sugeridos? 
Vossa alma é um Espírito que pensa. Não ignorais que muitos pensamentos vos acodem a um tempo sobre o mesmo assunto e, não raro, contrários uns dos outros. Pois bem, no conjunto deles estão sempre de mistura os vossos com os nossos. Daí a incerteza em que vos vedes. É que tendes em vós duas idéias a se combaterem. (grifo nosso)
Ora, não guardamos, de forma geral, nenhuma lembrança ou consciência dessa influência, nem sequer sabemos de onde provêm tais pensamentos. O estado inconsciente representa o momento exato onde opera essa influenciação, que acontece exatamente dessa maneira de forma a reter apenas aquilo que é necessário para fazer avançar nossa capacidade de discernimento entre o certo e o errado (do contrário, não haveria mérito...).

De forma resumida, ao se listar que fatores poderiam afetar o inconsciente no momento da tomada de uma decisão, podemos citar:
  • As tendências inatas da alma encarnada, fruto de experiências obtidas em vidas anteriores (inconsciente);
  • Sua experiência presente, resultado de sua encarnação última (consciente ou inconsciente);
  • Suas memórias de vidas anteriores, que reforçam certas tendências em optar por determinadas decisões (inconsciente);
  • Suas memórias da vida atual, acessível diretamente com algum esforço (o chamado "estado presciente", influenciação consciente ou inconsciente);
  • As limitações de seu corpo ou contraparte material que restringem mais ou menos severamente a maneira como as percepções do mundo externo se dão;
  • As influenciações dos Espíritos que reforçam as tendências inatas e sugerem ideais (inconsciente);
O comportamento humano é produto de uma atuação maior ou menor de um desses fatores ou combinações deles. Mas é particularmente nos fenômenos obsessivos mais ou menos severos que o último fator mais se destaca. Por meio do estado inconsciente, pensa e age o encarnado como se estivesse sozinho, mas, de fato, ele não está. Acreditamos, porém, que, mesmo nos casos de subjugação sistemática, o Espírito pelo menos retém consciência de seu livre arbítrio. Esse é, entretanto, assunto para outro post considerando inúmeros detalhes relevantes que exigem minuciosa atenção e consultas a outras referências.

À guisa de conclusão

O inconsciente parece guardar a chave para a essência do espírito encarnado cuja existência integral ocorre em outro "plano". Cremos que as descobertas recentes sobre a operação da mente inconsciente são importantes validações das lições trazidas pelos Espíritos já durante a compilação das respostas do LE e muito antes de Sigmund Freud (6). Para a ciência que investiga esses casos, o inconsciente é um estado de pre-decisão, talvez mais um dentre os inúmeros estados do cérebro entendido como um "hardware" que "roda" um programa. Para o Espiritismo, entretanto, o inconsciente não é meramente um repositório de lembranças ou desejos reprimidos. Ele é a própria manifestação oculta da vida do Espírito em sua jornada evolutiva. As manifestações observáveis do estado inconsciente são importantes evidências (8) dessa vida oculta que, por meio de experimentos, é possível estudar e que têm implicações ainda pouco esclarecidas para a a sociedade. 

Uma das perspectivas abertas pelo Espiritismo é que o encarnado guarda memórias ou consciência plena de suas decisões, mesmo para aquelas que não "subiram" conscientemente durante a vigília. A consciência de tomada de decisão seria uma espécie de "segunda consciência" que reverberaria no campo mental do encarnado, ou tipo de memória reflexa de seu pensamento como Espírito. Essa reverberação é importante para que dela uma memória seja guardada ("eu me lembro de que tomei essa decisão") e auxilie outras tomadas (inconscientes) em contextos semelhantes, até que o processo seja completamente autônomo.

Em outras palavras, a consciência que temos de nossos atos quando encarnados após uma escolha é um mecanismo de "feedback" (realimentação) que reforça o aprendizado durante a existência. Seu papel principal é guardar informação para uso posterior. Outra razão importante para esse funcionamento inconsciente é o da eficiência: a "mente" parece responder melhor a determinadas situações em que ela não tem que "pensar muito" sobre qual seria a melhor solução. Um trabalho interessante recente (3) argumenta que há uma "moral inconsciente"; as decisões "morais" das pessoas são melhores justamente quando elas decidem inconscientemente, o que é outra prova da operação das faculdades do espírito.

Uma vez que é o Espírito, em essência, o responsável pelos seus atos e que as decisões são tomadas mesmo sem consciência ("awareness") imediata - como um feedback de uma operação inconsciente, ele também é o único responsável por elas, sem prejuízo da noção de livre-arbítrio. Na visão espírita, é preciso elucidar a interação espírito-matéria, sobre como se daria a relação entre o espírito e o cérebro ou sistema nervoso sobre o qual ele atua. Enquanto inúmeros pontos obscuros subsistirem, será arriscado negar a responsabilidade do espírito encarnado sobre seus atos e criar, por exemplo, embaraços jurídicos pela negação do livre-arbítrio.

Para se convencer disso, é importante considerar uma visão integral do ser humano e desvendar inúmeros outros mecanismos pouco esclarecidos sobre o funcionamento da mente. Há indícios recentes de que a percepção consciente, quando obstada por doenças ou mal funcionamento do cérebro, não impede a mente de seu funcionamento inconsciente (7). Presentemente debate-se a possibilidade de o inconsciente ser capaz de realizar tudo o que é possível no estado consciente, o que é uma perspectiva promissora diante do ensino espírita sobre a verdadeira vida do espírito.

Retornaremos em um futuro post com mais discussões sobre nossas observações sobre esse importante assunto.

Referências e notas

1. Libet, B., Gleason, C. A., Wright, E. W., & Pearl, D. K. (1983). Time of conscious intention to act in relation to onset of cerebral activity (readiness-potential) the unconscious initiation of a freely voluntary act. Brain, 106(3), 623-642. Outro interessante trabalho de revisão que se destaca pelo equilíbrio é:

Baars, B. (2003). How brain reveals mind neural studies support the fundamental role of conscious experience. Journal of Consciousness Studies, 10(9-10), 100-114.

2. São os conhecidos experimentos com "mensagens subliminares". Ver Custers, R., & Aarts, H. (2010). The unconscious will: How the pursuit of goals operates outside of conscious awareness. Science, 329(5987), 47-50.

3. Ham, J., & van den Bos, K. (2010). On unconscious morality: The effects of unconscious thinking on moral decision making. Social Cognition, 28(1), 74-83.

4. Todas as citações deste post foram extraidas de www.ipeak.com.br .

5. A influência do sono na solução de problemas é bem reportado por: Karmarkar, U. R., Shiv, B., & Spencer, R. (2017). Should you Sleep on it? The Effects of Overnight Sleep on Subjective Preference-based Choice. Journal of Behavioral Decision Making, 30(1), 70-79.

6. Sobre isso se nota que quando Freud nasceu os primeiros manuscritos de "O Livro dos Espíritos" já existiam. Isso não tira de Freud seu pioneirismo na exploração do inconsciente, mesmo porque o "contexto teórico" da Doutrina Espírita é muito diferente da teoria psicológica de Freud.

Entretanto, é preciso ressaltar que o conceito de inconsciente no Espiritismo ainda aguarda melhor apreciação pelos psicólogos no futuro, principalmente com  relação à contribuição das memórias das vidas anteriores, cuja aceitação é infelizmente inconcebível no contexto da teoria Freudiana (ou pelo menos exigiria uma modificação radical na maneira de se entender o ser humano).

7. Um livro interessante com inúmeros relatos da operação do inconsciente quando o cérebro é severamente afetado é Ramachandran, V. S., & Blakeslee, S. (2004). Fantasmas no cérebro. Rio de Janeiro: Record.

8. O leitor pode se certificar que o inconsciente foi aceito pelo mainstream acadêmico ao ler  Koch C. (2011). Probing the Unconscious mind. Cognitive psychology is mapping the capabilities we are unaware we possess. Scientific American. Acessível em:

https://www.scientificamerican.com/article/probing-the-unconscious-mind/

2 de dezembro de 2017

A síndrome da super memória (HSAM) e sua base espiritual


“(O Espírito) pode lembrar-se dos mais minuciosos pormenores e 
incidentes, assim relativos aos fatos, como até aos 
seus pensamentos. Não o faz, porém, quando 
não tenha utilidade.”("O Livro dos Espíritos", A. Kardec, questão # 306a)

 Artigos acadêmicos promovidos por textos de divulgação na internet (1,2,3) relatam o reconhecimento recente de uma "nova" anomalia psicológica: a "Memória Autobiográfica Altamente Superior", em inglês HSAM ou "Highly Superior Autobiographical Memory" (também chamado "Hipertimesia"). Essa anomalia é caracterizada pela capacidade de alguns indivíduos - a estatística de casos reportados é de 60 no mundo - de se lembrarem de forma bastante detalhada de eventos da sua vida. Um dos casos que chama a atenção é o de Rebecca Sharrock, que se lembra de quando era bebê e de acontecimentos de sua primeira infância, embora não tenha lembranças intrauterinas. Outro é o de Markie Pasternak (2). "Leva certo tempo para se lembrar", comenta Markie, que se recorda de eventos com precisão de uma hora. "Eu não decoro as coisas", ela diz, "não é assim que funciona, eu tenho que ver as coisas, estar lá, tenho que viver, do contrário, aquilo não me afeta" (2).

Tais relatos são muitas vezes tomados com ceticismo, afinal, nossas memórias são eventos privados, que não podem ser "comprovados" externamente. Com a raridades dos casos, há céticos obtusos (os "neuro céticos") que consideram todos fraudes. Para eles essas memórias são baseadas em registros obsessivos em agendas de papel...De uma forma ou de outra, os poucos casos de super memória hoje fazem parte de material de pesquisa realizada no "Centro de Neurobiologia da Memória e do Aprendizado" da UC Irvine (4). De acordo com a descrição desse centro de pesquisa, responsável pelo registro e classificação da síndrome de forma pioneira em 2006 (5):
Indivíduos que tem HSAM têm uma habilidade superior de se lembrar de detalhes específicos de eventos autobibliográficos, gastam uma grande quantidade de tempo lembrando de seu passado e têm uma compreensão detalhada do calendários e de suas características. (4)
O indivíduo não só consegue dizer qual o dia da semana a que se refere determinada data (sem nenhum tipo de cálculo, apenas de "memória da data" mesmo), mas também se lembra em detalhes do que fez ou sofreu naquele dia específico. De acordo com testes feitos na instituição, indivíduos com HSAM não demonstram habilidade superior em testes padrão de memória em comparação a pessoas consideradas "normais". Há também indícios de que a capacidade extraordinária de se lembrar de detalhes do passado seja um empecilho à realização de atividades do dia a dia, mas, ao que parece, portadores dessa capacidade apreciam ser exatamente como são.

A que podemos atribuir essa capacidade ? Para a ciência desprovida da ideia de espírito imortal, a HSAM deve ser atribuída a alguma anomalia neuronal importante - possivelmente herdada (dai a crença em uma base genética) e rastreável por meio de exames (com os de imagem por ressonância magnética). Segunda a página da ref. (4), algumas evidências observadas do cérebro indicam "regiões ou redes neurais específicas que se distinguem de grupos de controle, embora esse trabalho ainda seja bastante preliminar" (veja, sobre isso a ref. (6)). A cautela se justifica, já que o estudo foi feito com base em apenas um indivíduo e variações anatômicas do cérebro tendem a ocorrer de forma distribuída na população. Ou seja, pode ser o caso de que por mera chance aquele indivíduo que mostra HSAM tem também um cérebro algo diferente anatomicamente.

A HSAM e sua base no espírito

Independente da explicação materialista, chama a atenção a um espírita com alguma leitura do "Livro dos Espíritos" (LE) de A. Kardec, as claras bases espirituais dessa nova capacidade. Basta para isso lembrar a questão #306 e # 306a:
306. O Espírito se lembra, pormenorizadamente, de todos os acontecimentos de sua vida? Apreende o conjunto deles de um golpe de vista retrospectivo?
“Lembra-se das coisas, de conformidade com as conseqüências que delas resultaram para o estado em que se encontra como Espírito errante. Bem compreendes, no entanto, que muitas circunstâncias haverá de sua vida a que não ligará importância alguma e das quais nem sequer procurará recordar-se.”
 
a) – Mas, se o quisesse, poderia lembrar-se delas?
“Pode lembrar-se dos mais minuciosos pormenores e incidentes, assim relativos aos fatos, como até aos seus pensamentos. Não o faz, porém, quando não tenha utilidade.”
As respostas dadas pelos Espíritos também afirmam que o espírito se interessa pelas lembranças que tenham impacto em sua vida maior, principalmente as de vidas anteriores. Não é que o Espírito não tenha a capacidade de se lembrar, mas sim que, a medida que evolui, atribui menos importância aos pequenos fatos do dia a dia que em nada ajudariam ao seu progresso:
308. O Espírito se recorda de todas as existências que precederam a que acaba de ter?
“Todo o seu passado se lhe desdobra à vista, quais a um viajor os trechos do caminho que percorreu. Mas, como já dissemos, não se recorda de modo absoluto de todos os seus atos. Lembra-se destes na medida da influência que tiveram na criação do seu estado atual. Quanto às primeiras existências, as que se podem considerar a infância do Espírito, essas se perdem no vago e desaparecem na noite do esquecimento.”
É compreensível que as lembranças das primeiras existências tenham se perdido, uma vez que a própria estrutura corpórea era menos aprimorada, de forma que concluímos que, quanto mais evoluído o Espírito, tanto maior será sua capacidade de reter, na memória, pequenos fatos. É provável que a condição da HSAM reflita uma modificação corporal recente (afinal o corpo também está evoluindo) que leve a disseminação dessa capacidade na população em um futuro ainda distante (e então a Hipertimesia será "epidêmica"...). 

Fig. 1 Ilustração de Gustave Doré (Wikipedia) para o "Le Petit Poucet" de Charles Perrault em "Histoires ou Contes du Temps passé: Les Contes de ma Mère l'Oye (1697)". Essa imagem simboliza o funcionamento da memória. Lembrar-se significa jogar luz e "ver de novo", através da lanterna do espírito, nas memórias do passado que são registradas de forma perene na mente imortal. Dai que a falta da luz não significa que não há memórias, mas que essas jazem na escuridão criada pelo corpo físico (leia-se "cérebro") como uma restrição imposta ao espírito encarnado. 
Também chama a atenção as desvantagens da HSAM, que nos remetem à importância do esquecimento dos fatos passados, uma necessidade que o Espiritismo também foi pioneiro em identificar. Sobre isso, a ref. (7) de J. Marshall, publicada na revista "New Scientist" parece validar essa relevante lição espírita ao afirmar que o "esquecimento é a chave para uma mente saudável". Certamente é, se tais fatos anteriores prejudicarem nosso progresso espiritual, exatamente como previram os Espíritos no LE.   

Não há dúvidas para nós de que a HSAM se acha estabelecida no espírito imortal e o cérebro é apenas a interface que permite registrar tais fatos a partir do mundo material externo (ver Fig. 1). Se ele os registra, é ele também que os oculta em grande parte da visão interna pela qual o espírito se lembra e retém em sua memória "espiritual" todos esses acontecimentos. Ainda que, no estado encarnado, ele não se lembre de um fato porque passou - seja na presente existência, mas, principalmente, nas passadas - isso não implica que ele não o guarde, retido nas camadas mais profundas de sua memória extrafísica. 

Para leitores interessados em publicações acadêmicas sobre o assunto, recomendamos a leitura de (5) a (7).

Referências

1 - A mulher que lembra de como era ser um bebê: 

2 - Only 60 People in the World Have This Insanely Powerful Memory:

3 - TV24. Esta mulher lembra-se de tudo o que viveu desde que nasceu:

4 - Center for the Neurobiology of Learning and Memory, C CNLM Ayala School of Biological Sciences. Highly Superior Autobiographical Memory: http://www.cnlm.uci.edu/hsam/

5 - Parker, E. S., Cahill, L., & McGaugh, J. L. (2006). A case of unusual autobiographical remembering. Neurocase, 12(1), 35-49.

6 - LePort, A. K., Mattfeld, A. T., Dickinson-Anson, H., Fallon, J. H., Stark, C. E., Kruggel, F., ... & McGaugh, J. L. (2012). Behavioral and neuroanatomical investigation of highly superior autobiographical memory (HSAM). Neurobiology of learning and memory, 98(1), 78-92.

7 - Marshall, J. (2008). Forgetfulness is Key to a Healthy Mind. New Scientist Magazine, (2643). Ver:

2 de novembro de 2017

Onde estão os teus mortos?


“O coração não pode errar. A carne é um sonho; ela se dissipa. 
Se esse desaparecimento fosse o fim do homem, tiraria à nossa existência toda sanção. 
Não nos contentamos com esta fumaça que é a matéria; precisamos de uma certeza. 
Quem quer que ame, sabe e sente que nenhum dos pontos de apoio do homem está na Terra. 
Amar é viver além da vida. Sem essa fé, nenhum dom perfeito do coração seria possível; 
amar, que é o objetivo do homem, seria o seu suplício. 
O paraíso seria o inferno. Não! digamos bem alto, a criatura amante exige a criatura imortal. 
O coração necessita da alma. (Victor Hugo)

Para que nos lembremos uns dos outros,
Bastam as nossas dores como são,
Uma pequena cruz, um nome e a relva verde e mansa,
Que nos falem de paz e de esperança
Na saudade sem fim do coração.
(Maria Dolores,  1)
A crença da morte como o fim de toda existência é um delírio criado pela condição dos vivos encerrados na carne, com suas limitadíssimas capacidades sensoriais. Não se deve senão culpar a essa limitação material toda dificuldade presente em apreciar verdadeiramente a vida futura. Essa restrição é necessária para que a experiência do Espírito imortal se restrinja temporariamente àquela determinada pelos sentidos do corpo limitado. É um delírio quase que perpétuo na mente dos que ficam, para sempre destinados ao fim porque seus corpos não permitem ver mais além.

Ainda assim, nossos antepassados em todos os tempo intuíram a continuidade da vida além da morte. A prova disso está na presença da religião, desde os tempos mais primitivos, como uma forma de se cultuar os mortos. O culto aos "antepassados e aos mortos" esteve na origem de todas as crenças antigas (2). Mas, desde uma perspectiva antropológica moderna, incapaz de perceber essa realidade e desprezando as evidências do Espiritismo - que está na origem de todas as religiões - a crença na vida maior é uma resposta meramente psicológica do homem à ameaça representada pela morte do rompimento de seus laços terrenos, suas amizades, sua família, sua segurança doméstica e social. A única realidade estaria no niilismo e no materialismo. Como colocou o sociólogo Zygmund Bauman (1925-2017), "as sociedades (modernas) existem para esconder de seus integrantes o fato real da morte como o fim da vida. Pois se as pessoas percebessem que vida não tem sentido, perderiam toda esperança e abandonariam definitivamente a vida que têm (3)". Felizmente, isso não acontece de forma generalizada - embora represente a força principal que motiva os que tentam o suicídio todos os dias - porque a grande maioria das pessoas traz inconscientemente uma noção ainda que precária da vida maior, renovada todos os dias durante o sono.

Adquire relevância incomparável assim todos os esforços de pesquisa passados e presentes para demonstrar a comunicação dos espíritos, a ampliação dos sentidos humanos libertos dos laços materiais e as provas da imortalidade. Elas representam a única saída para a mente racional quando confrontada com a morte e seu fim aparente. Não foi por mera coincidência que a fenomenologia espírita se desenvolveu a partir de 1850, numa época marcada como o apogeu do materialismo. Esse desenvolvimento foi a resposta da providência ao espírito questionador do tempo moderno que zombava da religiões desgastadas pelos excessos de crenças inúteis e contrárias à razão. É como se uma resposta fosse dada aos que acreditavam Deus estar morto, confirmando a precariedade das religiões instituídas - sim porque a alma sobrevive, mas não está condenada eternamente - e ao mesmo tempo reafirmasse a razão última de todos os credos, a existência de um Deus como causa primária de todas as coisas e uma vida real além daquela experimentada pelos sentidos restritos do corpo.

A morte encerra a verdadeira vida em si como um dos seus mais bem guardados mistérios. Os teus mortos estão vivos. Se hoje deles guardamos alguma lembrança, incapazes ainda de entrar em comunicação direta com os nossos mortos, guardamos igualmente a certeza que nos reuniremos inexoravelmente a eles um dia. Por hora apenas a certeza intelectual e intuitiva da sobrevivência, pontuada por inúmeras revelações e evidências constantemente desprezadas pela cultura do momento. Amanhã a certeza final pela prova definitiva dos sentidos do espírito imortal em sua caminhada sem fim.

Referências

1 - M. Dolores, Conversa no Campo Santo, "Dádivas de Amor", psicografia F. C. Xavier.
2 - R. A Segal (Ed.)(2006). The Blackwell companion to the study of Religion. Blackwell Publishing. Nessa referência, pode-se ler (p. 7):
De acordo com Spencer, a religião surgiu da observação que, nos sonhos, o eu deixa o corpo. A personalidade humana tem portanto aspecto dual e, depois da morte, o espírito ou alma continua a aparecer para os descendentes ainda vivos através dos sonhos. Fantasmas de ancestrais remotos ou personalidades famosas eventualmente adquiriram status de deuses.
Tal era a crença entre os primeiros antropologistas. A situação mudou consideravelmente depois, entretanto.
3 - Citado em (2), p.236.


25 de setembro de 2017

Diferenças entre a justiça humana e a divina

O julgamento e condenação de Jesus ficará para sempre como um símbolo
da imperfeição da justiça humana. Ilustração de Gustave Doré (1832-1883)
O que seria o estado de justiça? Na sociedade, corresponde a uma situação de equidade, equilíbrio ou igualdade concebíveis entre todos os atos praticados pelo indivíduo - ou grupo de indivíduos - com relação a si mesmo, com relação ao seus semelhantes, e do coletivo para com esse mesmo indivíduo ou grupo. Os atos são resultados de ações que  nascem como impulsos mentais livremente criados pelo homem, ou oriundos da aplicação da lei como síntese das crenças, valores e sentimentos de justiça do coletivo. A existência de leis e de um sentimento de justiça não implicam, porém, que esse estado de justiça exista absolutamente. Dificilmente tal estado existe em qualquer lugar sobre a Terra ainda que momentaneamente. A sociedade humana é composta de bilhões de indivíduos, de forma que uma ação sempre trará eventuais consequências negativas a qualquer um deles em certo momento de suas existências. Assim, esse estado ou condição de justiça é uma aspiração, um objetivo a ser perseguido, pois não dependente apenas de condições externas, materiais ou ambientais, mas principalmente da maneira como cada um se relaciona com seus semelhantes.

A justiça humana funciona como um processo semi-automático que deve restabelecer esse estado transitório de desequilíbrio (injustiça) por meio da aplicação de suas leis como um mecanismo de compensação. Entretanto, para que as leis sejam aplicadas é necessário validar a causa do desequilíbrio, que está no sujeito, indivíduo ou grupo responsável por ele. Dada a dificuldade e intempestividade em se remontar às causas, frequentemente uma situação de injustiça permanece por muito tempo, se não indefinidamente. Ainda que evidente, uma situação de injustiça leva tempo para ser devidamente compensada: dessa forma, a justiça humana tarda e talvez nunca se faça presente.  

A que se deve isso? A causa última da precariedade da ação da justiça humana está na privacidade dos pensamentos ou intenções dos indivíduos. Em suas diligências, a justiça humana é obrigada a inferir as intenções com base em evidências ou rastros tangíveis deixados pelos responsáveis das ações. Os pensamentos, ideias, intenções, desejos e vontades dos criminosos estão sempre ocultos porque eles são frutos da atividade mental inacessível. As circunstâncias que envolvem um crime podem ser tão complexas que até mesmo a falta de provas aparentes pode tornar-se uma evidência, e não deve passar despercebida a um bom perito. Como é impossível garantir sempre que existirão evidências ou provas de um crime, é impossível também garantir plenamente sua compensação: a justiça humana pode falhar e sua ação será parcial se o criminoso ou responsável não mais estiver entre nós.

Por maior que seja o primor do trabalho dos legisladores humanos, assim é resumidamente a justiça humana: restrita ao prescrito pelo costume e cultura de um povo, limitada em seu alcance no tempo, falível porque dependente do acesso a evidências, e cega das verdadeiras causas da injustiça. Sua força e duração depende da própria sociedade que estabelece e mantem seu funcionamento. 

Admitamos, porém, que fosse possível ter acesso completo a registros de vontades e intenções anteriores dos indivíduos. Se o pensamento e os desejos próprios de uma alma se transformassem em objetos publicamente acessíveis. Então, não somente os atos concretos ou os traços tangíveis de um crime estariam a disposição, mas suas verdadeiras causas, a ponto dos primeiros tornarem-se dispensáveis. Admitamos ainda que os perpetradores de um crime, revelados por seus pensamentos e intenções, vivessem para sempre. As circunstâncias que suscitaram as vontades e desejos, materializadas em crimes, tornando-se registros tangíveis, para sempre emoldurados nas consciências dos que os praticaram...Como se aplicaria, então, a justiça?

É frequente imaginar a justiça divina como uma versão aprimorada da justiça humana. Porém, aspectos essenciais que distinguem imensamente uma da outra são completamente ignorados pela falta de uma visão além da vida do ser. Muitas comparações feitas no passado pelas religiões encontram eco na imagem material de um Deus legislador, cópia dos humanos, sentado em um trono a observar as ações humanas e a exercer sua justiça. O Espiritismo permite vislumbrar alguns dos novos aspectos da dinâmica de "causa e efeitos" para aprimorar nossa visão sobre como funcionaria esse processo de justiça espiritual. Nele a sobrevivência do ser tem papel fundamental. O acesso a pensamentos e vontades do espírito são aspectos externos relevantes, porque a atividade mental se exterioriza e deixa rastros, tanto quanto eventuais registros da cena de um crime. Impossível será sempre a um criminoso deixar de registrar as marcas de seu crime porque ele principia exatamente nos pensamentos e desejos que levam finalmente a sua consumação.

A justiça divina funciona como um processo natural automático que tem como objetivo estabelecer um estado definitivo de equilíbrio ou justiça, cuja função última é o aprimoramento espiritual do ser. Não é função desse mecanismo natural punir, embora, para o espírito encarnado, as vicissitudes e provas pelas quais ele é obrigado a passar possam se assemelhar a punições. Porque a maioria dos espíritos encarnados está em aprimoramento, é impossível ter na Terra um estado de justiça completo, que sempre dependerá das circunstâncias e maneiras como essa sociedade terrena está organizada. A justiça divina não tem empecilhos em sua ação porque age através da própria consciência dos envolvido e dispõem de múltiplas existências como mecanismo de "ação penal".
Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele próprio e à sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso! (Instrução do Espírito do Sr. Bonnamy, pai. Revue Spirite, março de 1866. Médium:sr. Desliens.)
O aprimoramento do espírito é tão lento que a duração de uma existência humana não é suficiente para se reparar as faltas.  Assim, existe um tempo entre o cometimento de uma ação criminosa e sua correção posterior. A justiça divina aguarda condições e circunstâncias propícias para que elementos naturais ajam, restabelecendo um ordenamento que tenha sido intencionalmente perdido. Esse ordenamento não visa senão a compensação por situações que eram, elas mesmas momentâneas. Dessa forma, direitos eventualmente violados serão restabelecidos de forma transitória porque em si mesmos nunca poderiam durar para sempre. No cômputo dos ganhos do espírito, tudo que for material desaparecerá, subsistindo apenas as vivências do espírito como ganhos que aperfeiçoam a personalidade eterna.

Frequentemente diz-se que a justiça divina é infalível. De fato é como podemos inferir a partir da lei de cause e efeito. Porém, ela não existe para satisfazer a noção humana de justiça. Ela não haje para punir ou satisfazer desejos de vingança - nesse sentido nem mesmo a lei humana tem esse objetivo. Seu fim último é a educação moral do ser que não pode ser destruído. A justiça divina visa, como dissemos, o restabelecimento de uma ordem provisória, mesmo que em contexto totalmente diferente daquele em que uma falta foi gerada.  

Não se pode falar em um equivalente divino do que se concebe presentemente como "estado de justiça" meramente humano. Isso porque, com a evolução moral e intelectual do espírito, as ações praticadas nas coletividades também se aperfeiçoam a ponto de cessar qualquer condição, oportunidade ou circunstância para a injustiça. A lei de justiça entre os homens é incompleta porque deve ser substituída ou complementada por outra: a de amor e caridade. Para os homens dos dias de hoje, a meta maior é atingir um estado em cada um cumpra com suas obrigações legais, deixando de prejudicar os outros. Para a lei divina, a meta é o próprio aperfeiçoamento da justiça, o que só pode acontecer se, além de se respeitarem mutualmente, os homens passarem a se amar verdadeiramente. A aplicação da lei do amor e da caridade é ainda um capítulo recentemente aberto e, portanto, raramente reconhecido como uma necessidade dessa justiça maior. E no consiste esse amor?
Amar, no sentido profundo do termo, é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de vossa parte, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de esperança e de apoio, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça. (Parágrafo 10 de "A Lei de Amor", do Cap. XI de "O Evangelho Segundo o Espiritismo")
Como lei universal, a lei de amor e caridade somente ela poderá transformar o mundo e sua justiça, porque deverá transformar cada indivíduo em um agente dessa justiça maior. Sem ela jamais será possível falar em estado de justiça verdadeiro, dado que cada um sempre agirá de acordo com seus próprios interesses e, fatalmente, o outro será prejudicado. E será sempre impossível ao Estado fiscalizar todas as ações humanas pelas razões que apresentamos acima. Para a lei humana, intensões e desejos maus, se não materializados em atos, não constituem crimes. Para a lei divina,  uma má intensão, pensamento ou ato demonstra necessidade de correção sem o que é impossível ao indivíduo progredir em sua vida maior.

A incredulidade, o egoísmo e o cinismo poderão rir de nossas conclusões sobre as diferenças entre a justiça divina e a humana, considerando-as devaneios religiosos. Mas, felizmente, o incrédulo, o egoísta e o cínico morrerão milhares de vezes para renascer vezes sem conta a fim de aprender, no esquecimento, a lei de amor e caridade, que haverá de transformar a justiça humana para sempre.

Referências

A. Kardec. O Livro dos Espíritos, III Parte, Das leis morais, Cap. VIII. "Lei do progresso".
A. Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XI, Instruções dos Espíritos: "A Lei de Amor".