25 de setembro de 2017

Diferenças entre a justiça humana e a divina

O julgamento e condenação de Jesus ficará para sempre como um símbolo
da imperfeição da justiça humana. Ilustração de Gustave Doré (1832-1883)
O que seria o estado de justiça? Na sociedade, corresponde a uma situação de equidade, equilíbrio ou igualdade concebíveis entre todos os atos praticados pelo indivíduo - ou grupo de indivíduos - com relação a si mesmo, com relação ao seus semelhantes, e do coletivo para com esse mesmo indivíduo ou grupo. Os atos são resultados de ações que  nascem como impulsos mentais livremente criados pelo homem, ou oriundos da aplicação da lei como síntese das crenças, valores e sentimentos de justiça do coletivo. A existência de leis e de um sentimento de justiça não implicam, porém, que esse estado de justiça exista absolutamente. Dificilmente tal estado existe em qualquer lugar sobre a Terra ainda que momentaneamente. A sociedade humana é composta de bilhões de indivíduos, de forma que uma ação sempre trará eventuais consequências negativas a qualquer um deles em certo momento de suas existências. Assim, esse estado ou condição de justiça é uma aspiração, um objetivo a ser perseguido, pois não dependente apenas de condições externas, materiais ou ambientais, mas principalmente da maneira como cada um se relaciona com seus semelhantes.

A justiça humana funciona como um processo semi-automático que deve restabelecer esse estado transitório de desequilíbrio (injustiça) por meio da aplicação de suas leis como um mecanismo de compensação. Entretanto, para que as leis sejam aplicadas é necessário validar a causa do desequilíbrio, que está no sujeito, indivíduo ou grupo responsável por ele. Dada a dificuldade e intempestividade em se remontar às causas, frequentemente uma situação de injustiça permanece por muito tempo, se não indefinidamente. Ainda que evidente, uma situação de injustiça leva tempo para ser devidamente compensada: dessa forma, a justiça humana tarda e talvez nunca se faça presente.  

A que se deve isso? A causa última da precariedade da ação da justiça humana está na privacidade dos pensamentos ou intenções dos indivíduos. Em suas diligências, a justiça humana é obrigada a inferir as intenções com base em evidências ou rastros tangíveis deixados pelos responsáveis das ações. Os pensamentos, ideias, intenções, desejos e vontades dos criminosos estão sempre ocultos porque eles são frutos da atividade mental inacessível. As circunstâncias que envolvem um crime podem ser tão complexas que até mesmo a falta de provas aparentes pode tornar-se uma evidência, e não deve passar despercebida a um bom perito. Como é impossível garantir sempre que existirão evidências ou provas de um crime, é impossível também garantir plenamente sua compensação: a justiça humana pode falhar e sua ação será parcial se o criminoso ou responsável não mais estiver entre nós.

Por maior que seja o primor do trabalho dos legisladores humanos, assim é resumidamente a justiça humana: restrita ao prescrito pelo costume e cultura de um povo, limitada em seu alcance no tempo, falível porque dependente do acesso a evidências, e cega das verdadeiras causas da injustiça. Sua força e duração depende da própria sociedade que estabelece e mantem seu funcionamento. 

Admitamos, porém, que fosse possível ter acesso completo a registros de vontades e intenções anteriores dos indivíduos. Se o pensamento e os desejos próprios de uma alma se transformassem em objetos publicamente acessíveis. Então, não somente os atos concretos ou os traços tangíveis de um crime estariam a disposição, mas suas verdadeiras causas, a ponto dos primeiros tornarem-se dispensáveis. Admitamos ainda que os perpetradores de um crime, revelados por seus pensamentos e intenções, vivessem para sempre. As circunstâncias que suscitaram as vontades e desejos, materializadas em crimes, tornando-se registros tangíveis, para sempre emoldurados nas consciências dos que os praticaram...Como se aplicaria, então, a justiça?

É frequente imaginar a justiça divina como uma versão aprimorada da justiça humana. Porém, aspectos essenciais que distinguem imensamente uma da outra são completamente ignorados pela falta de uma visão além da vida do ser. Muitas comparações feitas no passado pelas religiões encontram eco na imagem material de um Deus legislador, cópia dos humanos, sentado em um trono a observar as ações humanas e a exercer sua justiça. O Espiritismo permite vislumbrar alguns dos novos aspectos da dinâmica de "causa e efeitos" para aprimorar nossa visão sobre como funcionaria esse processo de justiça espiritual. Nele a sobrevivência do ser tem papel fundamental. O acesso a pensamentos e vontades do espírito são aspectos externos relevantes, porque a atividade mental se exterioriza e deixa rastros, tanto quanto eventuais registros da cena de um crime. Impossível será sempre a um criminoso deixar de registrar as marcas de seu crime porque ele principia exatamente nos pensamentos e desejos que levam finalmente a sua consumação.

A justiça divina funciona como um processo natural automático que tem como objetivo estabelecer um estado definitivo de equilíbrio ou justiça, cuja função última é o aprimoramento espiritual do ser. Não é função desse mecanismo natural punir, embora, para o espírito encarnado, as vicissitudes e provas pelas quais ele é obrigado a passar possam se assemelhar a punições. Porque a maioria dos espíritos encarnados está em aprimoramento, é impossível ter na Terra um estado de justiça completo, que sempre dependerá das circunstâncias e maneiras como essa sociedade terrena está organizada. A justiça divina não tem empecilhos em sua ação porque age através da própria consciência dos envolvido e dispõem de múltiplas existências como mecanismo de "ação penal".
Sem dúvida, ainda por muito tempo a lei será repressiva e castigará os culpados. Ainda não chegamos ao momento em que só a consciência da falta será o mais cruel castigo daquele que a cometeu. Mas, como vedes todos os dias, as penas se abrandam; tem-se em vista a moralização do ser; criam-se instituições para preparar a sua renovação moral; torna-se o seu abatimento útil a ele próprio e à sociedade. O criminoso não será mais a fera a ser expurgada do mundo a qualquer preço. Será a criança extraviada na qual deve ser corrigido o raciocínio falseado pelas más paixões e pela influência do meio perverso! (Instrução do Espírito do Sr. Bonnamy, pai. Revue Spirite, março de 1866. Médium:sr. Desliens.)
O aprimoramento do espírito é tão lento que a duração de uma existência humana não é suficiente para se reparar as faltas.  Assim, existe um tempo entre o cometimento de uma ação criminosa e sua correção posterior. A justiça divina aguarda condições e circunstâncias propícias para que elementos naturais ajam, restabelecendo um ordenamento que tenha sido intencionalmente perdido. Esse ordenamento não visa senão a compensação por situações que eram, elas mesmas momentâneas. Dessa forma, direitos eventualmente violados serão restabelecidos de forma transitória porque em si mesmos nunca poderiam durar para sempre. No cômputo dos ganhos do espírito, tudo que for material desaparecerá, subsistindo apenas as vivências do espírito como ganhos que aperfeiçoam a personalidade eterna.

Frequentemente diz-se que a justiça divina é infalível. De fato é como podemos inferir a partir da lei de cause e efeito. Porém, ela não existe para satisfazer a noção humana de justiça. Ela não haje para punir ou satisfazer desejos de vingança - nesse sentido nem mesmo a lei humana tem esse objetivo. Seu fim último é a educação moral do ser que não pode ser destruído. A justiça divina visa, como dissemos, o restabelecimento de uma ordem provisória, mesmo que em contexto totalmente diferente daquele em que uma falta foi gerada.  

Não se pode falar em um equivalente divino do que se concebe presentemente como "estado de justiça" meramente humano. Isso porque, com a evolução moral e intelectual do espírito, as ações praticadas nas coletividades também se aperfeiçoam a ponto de cessar qualquer condição, oportunidade ou circunstância para a injustiça. A lei de justiça entre os homens é incompleta porque deve ser substituída ou complementada por outra: a de amor e caridade. Para os homens dos dias de hoje, a meta maior é atingir um estado em cada um cumpra com suas obrigações legais, deixando de prejudicar os outros. Para a lei divina, a meta é o próprio aperfeiçoamento da justiça, o que só pode acontecer se, além de se respeitarem mutualmente, os homens passarem a se amar verdadeiramente. A aplicação da lei do amor e da caridade é ainda um capítulo recentemente aberto e, portanto, raramente reconhecido como uma necessidade dessa justiça maior. E no consiste esse amor?
Amar, no sentido profundo do termo, é o homem ser leal, probo, consciencioso, para fazer aos outros o que queira que estes lhe façam; é procurar em torno de si o sentido íntimo de todas as dores que acabrunham seus irmãos, para suavizá-las; é considerar como sua a grande família humana, porque essa família todos a encontrareis, dentro de certo período, em mundos mais adiantados; e os Espíritos que a compõem são, como vós, filhos de Deus, marcados na fronte para se elevarem ao infinito. É por isso que não podeis recusar aos vossos irmãos o que Deus liberalmente vos outorgou, porquanto, de vossa parte, muito vos alegraria que vossos irmãos vos dessem aquilo de que necessitais. Para todos os sofrimentos, tende, pois, sempre uma palavra de esperança e de apoio, a fim de que sejais inteiramente amor e justiça. (Parágrafo 10 de "A Lei de Amor", do Cap. XI de "O Evangelho Segundo o Espiritismo")
Como lei universal, a lei de amor e caridade somente ela poderá transformar o mundo e sua justiça, porque deverá transformar cada indivíduo em um agente dessa justiça maior. Sem ela jamais será possível falar em estado de justiça verdadeiro, dado que cada um sempre agirá de acordo com seus próprios interesses e, fatalmente, o outro será prejudicado. E será sempre impossível ao Estado fiscalizar todas as ações humanas pelas razões que apresentamos acima. Para a lei humana, intensões e desejos maus, se não materializados em atos, não constituem crimes. Para a lei divina,  uma má intensão, pensamento ou ato demonstra necessidade de correção sem o que é impossível ao indivíduo progredir em sua vida maior.

A incredulidade, o egoísmo e o cinismo poderão rir de nossas conclusões sobre as diferenças entre a justiça divina e a humana, considerando-as devaneios religiosos. Mas, felizmente, o incrédulo, o egoísta e o cínico morrerão milhares de vezes para renascer vezes sem conta a fim de aprender, no esquecimento, a lei de amor e caridade, que haverá de transformar a justiça humana para sempre.

Referências

A. Kardec. O Livro dos Espíritos, III Parte, Das leis morais, Cap. VIII. "Lei do progresso".
A. Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XI, Instruções dos Espíritos: "A Lei de Amor".

2 de agosto de 2017

Propostas para a teoria de efeitos físicos: abordagens experimentais publicadas no JEE

Imagem Schlieren de uma mão mostrando variações de densidade do ar. Imagem colhida na ref. (1).
O Jornal de Estudos Espíritas (JEE, ISSN 2525-8753), editado por Alexandre F. Fonseca, acabou de publicar e disponibilizar gratuitamente (2), com autorização da LIHPE e CCDPE, dois artigos nossos que julgo interessantes para o público espírita interessado em mediunidade de efeitos físicos:
  1. Uma proposta experimental para detecção de movimentos de fluidos nas cercanias de médiuns de efeitos físicos;
  2. Desenvolvimentos na teoria de transporte e manifestações físicas.
São eles contribuições que fizemos em 2010, quando de nossa participação no 6o Encontro da LIHPE e que foram disponibilizados apenas em papel nas coletâneas resultantes daquele encontro. Passando tanto tempo, eles agora estão no formato digital e acessíveis via rede. 

Trata-se da proposta de embasamento mais teórico de se caracterizar o ambiente físico onde um médium de efeitos físicos atue. Não é desconhecido dos interessados pela fenomenologia psíquica que médiuns de efeitos físicos tem a capacidade de mover objetos ou coisas, em um fenômeno que ficou batizado mais recentemente de "psicocinése". Em que pese a existência de propostas modernas usando física quântica para explicar esses fenômenos, somos da opinião que uma análise baseada em termodinâmica e fluido dinâmica é mais apropriada. Isso porque médiuns de efeitos físicos podem ser comparados à máquinas térmicas que exercem trabalho (em um objeto, por exemplo, realizando transporte) pela transformação de sua energia interna - conseguida, por exemplo, com base em energia bioquímica - em movimento. Isso pode ser lido na referência "Desenvolvimentos na teoria de transporte e manifestações físicas", onde se compara o processo de elevação de um objeto por um médium de efeitos físico com a elevação de um êmbolo por um pistão. Ambos os processos guardam alguma semelhança porque são realizados por meio de um fluido intermediário.

Imagem retirada do artigo "Desenvolvimentos na teoria de transporte e manifestações físicas", onde se compara o processo de elevação de um objeto por um médium de efeitos físicos com a elevação de um êmbolo por um pistão. 
A partir dessa comparação, o trabalho "Uma proposta experimental para detecção de movimentos de fluidos nas cercanias de médiuns de efeitos físicos" propõe uma nova abordagem para caracterizar o ambiente onde opera um médium de efeitos físicos. Não se trata de estudar a mediunidade diretamente, mas de investigar as consequências, sobre o ar circundante, da atuação de um médium desse tipo. 

Ambas as propostas foram feitas oficialmente ao movimento espírita de certa forma por meio da LIHPE em 2010, e aguardam colaboradores para sua execução. Talvez isso não seja algo para uma única existência, mas, de qualquer forma, a propostas está lançada. 

Este blog está aberto a eventuais pessoas que tenham interesse em colaborar com ela, identificando inicialmente candidatos a médiuns de efeitos físicos que sejam aptos a participar de alguma forma.

Referências

(1) DIY Schlieren Photography: https://www.youtube.com/watch?v=QNU6VP2t_78 (acesso em agosto de 2017)

(2) Ressaltamos que os dois artigos podem ser lidos abertamente nos links:


11 de julho de 2017

A colaboração Schubert-Rosemary Brown

Sentada calmamente ao piano, uma senhora em um subúrbio de Londres rabisca uma partitura. Nada incomum não fosse o fato de que ela pouco sabe de música. A prova disso são suas sofridas apresentações - feitas a um círculo muito limitado de pessoas -  que demonstra o caráter precário de seu conhecimento no assunto. Mesmo assim, ela escreve, e o que registra no papel nem mesmo ela é capaz de tocar. Dotada de uma faculdade inigualável, ela ouve o inaudível, nota a nota, do que lhe chega de outras dimensões da vida maior. Dentre os vários compositores que colaboraram com a Sra. Brown, um deles se destaca: é Franz Schubert, conhecido compositor Vienense, falecido há quase duzentos anos e que também trouxe sua contribuição.

O que ele quer? Seguindo rigidamente um processo de comunicação adaptado por Franz Liszt, o Espírito Protetor de Rosemary Brown, F. Schubert busca reunir em uma única peça a prova definitiva de que ele continua vivo, embora inacessível aos que estão na Terra. É preciso ser breve e compacto para não cansar demais a médium, que não dispõem de maiores conhecimentos para entender o que "ouve", muito menos para tocar o resultado. Um canal se estabelece entre o invisível e a matéria densa, e nasce assim a Sonata em Fá Menor como a única sonata de Schubert a ser produzida por essa pequena colaboração entre dois mundos.

Críticos arrogantes e convencidos de um embuste desqualificam as peças musicais produzidas por Rosemary Brown. Flertam com teorias de fraude, de esquizofrenia, do inconsciente supercriativo ou "absorção de estilo". Classificam a Sra. Brown como autista. Outros dizem que ela fez parte de uma conspiração maçom e espiritualista, enfim, produzem explicações baratas. Mesmo entre aqueles críticos que se especializaram em comparar o que chamam "teorias da sobrevivência" com outras hipóteses para explicar o fenômeno da Sra. Brown, sua música é muito simples para constituir prova da imortalidade. Um observador meticuloso perceberá que, exceto pela negação sistemática da sobrevivência, essas explicações pouca coisa têm em comum uma com a outra porque nascem de desejos de negação que são tão variados e criativos quanto as personalidades que os criam.

Meio século transcorre e um jovem pianista resolve aplicar as teorias da musicologia para avaliar a Sonata em Fá Maior. Ninguém antes resolveu tratar o problema de um ponto de vista verdadeiramente científico e aplicar as técnicas de teoria e análise musical. Seu nome é Erico Bomfim e o resultado pode ser lido no artigo "O enigma da música mediúnica: investigando uma forma-sonata atribuída ao Espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown". Esse trabalho foi apresentado no II Congresso da Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical em 2017 e pode ser lido na referência (1).

E quais foram os resultados? Logo no início de sua análise, o autor de (1) declara:
Surpreendentemente, o movimento inicial da sonata atribuída ao espírito de Schubert por Rosemary Brown reúne rigorosamente todas as características mais fundamentais da forma-sonata schubertiana comentadas acima. (1, p. 55)
E concluiu:
Não obstante apresentar diversas características atípicas que merecem mais ampla discussão, fato é que o primeiro movimento atribuído ao espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown apresenta de fato todas as características mais básicas da forma-sonata schubertiana. Essa riqueza de correlações estruturais é ainda mais notável do que pode parecer a uma primeira vista. Afinal, se tomadas isoladamente, são raras as peças da lavra do próprio Schubert que sintetizem tantas características particulares da forma-sonata do compositor. (1, p. 59, grifos meus)
É como se o compositor desencarnado quisesse compactar aspectos de sua obra em uma única peça, provavelmente por conta das muitas restrições do processo de comunicação do instrumento de comunicação à disposição. As provas da colaboração de Schubert na peça produzida por Rosemary Brown são tão flagrantes - e, porque não dizer, vergonhosas para o ceticismo - que Bomfim foi capaz de identificar proximidades com trabalhos específicos do compositor desencarnado:
Para além de dialogar com a característica mais fundamental das transições schubertianas, a transição produzida por Brown encontra precedente consideravelmente próximo na obra de Schubert: a Sinfonia “Inacabada” em Si menor, D. 759. (1, p. 57) 
Enquanto o referido caso do trio D. 929 de Schubert não apresenta esse bloco intermediário e conector observado no movimento escrito por Brown, permanece, no mínimo, um evidente diálogo com o desenvolvimento schubertiano, cuja mais notável característica é a estruturação em grandes blocos transpostos, elemento que incontestavelmente se verifica na sonata da médium. Além do mais, seja em D. 929, seja no desenvolvimento escrito por Brown, os grandes blocos transpostos se relacionam por quinta. (1, p. 58) 
O caso da recapitulação de Brown se assemelha mais estreitamente ao primeiro movimento da Sinfonia “Trágica” em Dó menor, D. 417. (1, p. 59)
E Bomfim conclui:
Esses dados sugerem veementemente, todavia, que a sonata da médium possa ter sido feita para demonstrar o máximo possível de correlação com o estilo de Schubert; quer dizer, para dar o máximo possível de informação estilística e demonstrar, assim, o máximo possível de conhecimento de estilo. Tais dados mostram notável consistência com o propósito declarado da música mediúnica de dar evidências da sobrevivência da alma ao demonstrar conhecimentos profundos de estilo, conhecimentos que a própria médium dificilmente poderia ter. (1, p. 59)
É claro que céticos contra argumentarão, sem qualquer prova, que a Sra. Brown ouviu essas peças e as reproduziu simplesmente. Infelizmente, ninguém conseguiu imitar, nem explicar de maneira racional como isso é possível, dada a precariedade da capacidade da Sra. Brown em reproduzir o que ela "compunha" e diante das 400 outras peças de dezenas de outros compositores que ainda aguardam análise semelhante.

Comentários finais

Não temos qualquer dúvida quanto à excelência mediúnica da Sra. Brown.

O que é estarrecedor nesse caso é que, mesmo os que se consideram especialistas (na sua maioria críticos musicais), não ocorreu que seria esse o caso de se aplicar rigorosamente uma metodologia apropriada para seu estudo. Cremos mesmo que a própria noção da musicologia como método de investigação da mediunidade musical ainda aguarda sua época de aplicação sistemática. Isso deve ser feito por aqueles que estão sinceramente comprometidos com a verdade sobre esses fatos e entendem que isso pode ser feito para se produzir resultados científicos.

E o que não dizer dos que, sem nenhum conhecimento em música, se apresentam como especialistas em fenômenos psi (2), se arriscam a dizer que a obra é um pastiche? Será mesmo que, no oceano musical produzido por Rosemary Brown não se podem achar verdadeiras pérolas que elucidaram em definitivo seu enigma? Semelhante análise é lenta e deve ser feita com toda a minúcia possível para produzir resultados tangíveis como os da ref. (1). Diante dessas dificuldades, é muito mais simples e rápido desqualificar o fenômeno.

Para mais contribuições de E. Bomfim em mediunidade musical ver:
Referência

(1) Bomfim, E. (2017). "O enigma da música mediúnica: investigando uma forma-sonata atribuída ao Espírito de Schubert pela médium Rosemary Brown". II Congresso da Associação Brasileira de Teoria e Análise Musical. Florianópolis, UDESC. Esse artigo pode ser acessado em PDF na referência:
(2) Um caso patológico é o de Stephen Braude identificado por Bomfim (2017) na Ref. Braude (2014). Amigo dos fenômenos "psi", Braude se coloca como um investigador reconhecido da fenomenologia mediúnica, embora lamentavelmente desqualifique a ideia de sobrevivência em várias de suas obras.



1 de junho de 2017

Crenças céticas XXVII: A Navalha de Ockham (e comentários sobre super-psi)

Não é comum, nos embates entre crentes e céticos, que conceitos ou princípios epistemológicos sejam aplicados indiscriminadamente, muitas vezes em apoio de argumentações mal feitas ou inválidas. Um desses princípios - de que se tem abusado bastante - é a famosa "Navalha de Occam" (ou Ockham, em inglês, Occam's razor). A apresentação feita na Wikipedia (1) é suficiente para introduzir o "princípio da parsimônia", como também chamada essa regra, que pode ser usada erroneamente  em defesas pouco válidas de opinião. Há várias maneiras de se enunciar esse princípio:
Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor (1).
Entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (2).
Não se deve admitir mais causas para as coisas naturais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para explicar as aparências. Portanto, aos mesmos efeitos naturais devemos, tanto quanto possível, associar as mesmas causas. (I. Newton, 3)
Colocado dessa forma, as chances de sucesso maior desse princípio pode acontecer com fatos para os quais nenhum paradigma bem estabelecido exista e estamos diante de decisão quanto a melhor explicação inicial. Se um tal paradigma existir, a aplicação da navalha é muito limitada; ela jamais poderá ser invocada para desqualificar o paradigma, que adquire status de verdade até que seja sobrepujado por teoria mais completa.

O princípio pode ser usado diante de embates entre teorias rivais que resultam nas mesmas "evidências experimentais", sem nenhuma garantia que leve à teoria "correta". De fato, há casos que mostram que isso não acontece. Podemos dizer que esse princípio tem alguma chance orientadora, desde que as causas subjacentes sejam realmente simples, o que dificilmente ocorre nos fenômenos naturais ou desconhecidos do homem.

Uma das grandes críticas à aplicação da navalha é o conceito de "simplicidade". Aquilo que nos parece "simples" depende de nossa visão do mundo, daquilo que acreditamos, de onde estamos etc. Portanto, sua aplicação está condicionada a certo preconceito por parte do experimentador. Com certeza, nas ocorrências ordinárias, do dia-a-dia, a navalha não falhará porque as causas subjacentes para os fenômenos são simples, banais ou amplamente conhecidas. Assim, se chego em minha casa e encontro a porta arrombada, com móveis revirados etc, dificilmente concluo que isso foi obra do acaso, de uma "tempestade" e não que, de fato, minha residência tenha sido furtada, que um ou mais indivíduos entraram nela etc.

Mas, o mundo da ocorrências banais dos homens não guarda semelhança com a dos fenômenos da natureza. A Fig. 1 contém um exemplo exagerado de má aplicação do princípio de Ockham. É uma comparação da tabela periódica moderna com a teoria dos quatro elementos, que estaria certa, segundo Occam, por ser a explicação mais simples. O erro aqui está em contrapor visões completamente diferentes da natureza, demonstrando que a noção de simplicidade depende dessa visão ou das circunstâncias que cercam o fenômeno:
Ao ouvir o trotar de cascos, pense em cavalos e não em zebras, a menos que esteja na África, quando então, certamente, trata-se de zebras. 
Fig. 1 Exemplo de aplicação incorreta da navalha de Occam: contrapor a tabela periódica como uma explicação para a origem das propriedades da matéria e a teoria antiga dos quatro elementos. O mais simples nem sempre é o "verdadeiro", mas, também, a noção de simplicidade depende da época e da visão de mundo que se tem.
Ernst Mach formulou uma versão diferente da navalha de Occam pelo seu "princípio de economia":
Cientistas devem usar os meios mais simples para se chegar aos resultados e excluir tudo que não seja percebido pelos sentidos. (2)
A exclusão daquilo que não é "percebido pelos sentidos" é um desastre nas ciências naturais, já que a maior parte das causas dos fenômenos é inacessível aos sentidos humanos comuns. Notamos, porém, que a navalha de Occam nada diz sobre a questão da "percepção pelos sentidos", de forma que essa reformulação de Mach nada tem a ver com o princípio original.

Da aplicação da navalha de Occam aos fenômenos espíritas: a hipótese de super-psi.

A navalha de Occam tem sido uma rota de desqualificação, por parte de céticos da fenomenologia chamada "paranormal" ou dos fenômenos espíritas. Aplicada de forma exagerada, torna-se uma ferramenta de negação sistemática dos fenômenos, que se reduzem a "alucinações", falhas de interpretações ou percepção, exageros psicológicos etc, tudo em nome da simplicidade do mundo.

Como pretensão teórica, busca-se refutar as "entidades desnecessárias", cumprindo aparentemente a regra de Ockham de simplicidade. Trata-se de flagrante desvio do princípio porque reduz uma ocorrência extraordinária a um fenômeno banal. Mas, "afirmações extraordinárias não exigem evidências extraordinárias ?" (4). À parte da questionabilidade desse aforismo - que é uma maneira diferente de se afirmar a navalha de Occam - o núcleo de negação está na própria refutação das evidências que já passaram do ponto e se tornam irrefutáveis. Aqui, o papel da navalha é dar um ar de "sofisticação" a uma reafirmação de uma crença que, em suma, trata esses fenômenos como produtos de uma gigantesca fraude consciente ou não. Não há dúvidas da aplicação incorreta desse princípio aqui, de forma que não há razão para se preocupar com ela.

Mas, há uma famosa controvérsia, entre "Super-Psi" versus "sobrevivência" que forneça um exemplo talvez de aplicação da navalha.  Algumas referências sobre esse embate são (5, 6, 7, 8). Em termos mais simples, trata-se de comparar a explicação espírita (sobrevivência após a morte, existência dos desencarnados como fonte de informação mediúnica etc) com algumas teses que refutam a sobrevivência pela admissão de faculdades quase oniscientes à mente humana (a chamada "tese super-psi"). "Super-psi" é uma causa teoricamente admitida como disseminada em alguns humanos, e que seria responsável por todos os fenômenos chamados "paranormais", sem a necessidade de postular a sobrevivência. De fato, "super-psi" é a única alternativa para os que aceitam a realidade dos fenômenos extraordinários do Espiritismo, sem, entretanto, aceitar sua real causa, o espírito.

Fig. 2 Respostas: "Simples, mas erradas; complexas, mas corretas".

Para os leitores que ainda não se inteiraram completamente do debate, oferecemos um resumo. As referências (6) e (8) são favoráveis a "hipótese super-psi" (HSP) e contrárias à "hipótese da sobrevivência" (HSV), como a chamam. Avançando na apresentação desse refinado ceticismo, adiantamos alguns pontos (ver 6) sobre HSP:
  1. As evidências fornecidas pelos chamados "fenômenos anômalos" são aceitas tais quais são ou, ao menos, acredita-se que uma base de fenômenos verídicos pode ser levantada em torno da qual se dá a disputa pela melhor explicação. O contenda de HSP X HSV não se dá mais em um ambiente cético em relação aos fenômenos, mas em relação a explicação representada por HSV;
  2. Muitos desqualificam a ideia da sobrevivência por considerá-la ininteligível e, portanto, estar além de uma solução científica; 
  3. Como não existe um mecanismo detalhado que explique como se dá a manifestação mediúnica, assume-se que não existiriam limites para a manifestação de "super-psi". Dessa forma, essa faculdade pode produzir qualquer tipo de fenômeno, em qualquer momento, lugar ou intensidade. Essa é a hipótese  mais importante e mais forte feita pelos proponentes de HSP;
  4. A operação de HSP não exige esforço por parte de seu agente, ela sequer exige intenção: é a hipótese da varinha mágica de Braude (6). Essa assunção é importante porque os fenômenos psíquicos são reconhecidamente incontroláveis;
  5. Como consequência disso, não existem "indicadores fenomenológicos" que permitiriam distinguir HSP de outra causa meramente fortuita, isto é, que HSP pode ocorrer de forma generalizada, sem que saibamos disso. É necessário admitir isso, pois, se não fosse assim, seria possível ostensivamente separá-la de ocorrências com causas comuns;
  6. HSV deve ser vista com reservas, porque ela implicitamente requer uma identificação forte entre a personalidade que viveu e aquela que se comunica. Seria importante "provar"  isso antes de se desprezar uma forma mais fraca de sobrevivência, como aquela que diz que a personalidade sobrevive "dissipando-se em um grande todo" ou existindo em uma realidade completamente separada da existência ordinária: é como acreditam alguns cristão com a ideia de céu e inferno. Portanto, não é contra qualquer ideia de sobrevivência que se colocam os adeptos da HSP, mas contra aquela que implica em um fenomenologia especial como produto da sobrevivência e da manifestação da personalidade desencarnada (em suma, é contra o Espiritualismo e o Espiritismo que HSP é proposta);
  7. A operação da faculdade de super-psi é admitida tanto quando o fenômeno manifesta informação que pode ser transmitida entre pessoas (chamado "informação sobre o quê") como com manifestação de habilidades, tendências, gostos típicas do personalidade desencarnada -  a chamada "informação sobre como". Aqui, Braude (6) tece várias considerações sobre isso e busca rejeitar o princípio de que "aquilo que não pode ser comunicado de forma normal, não pode comunicado de forma paranormal". Sua principal explicação para não limitar HSP em "comunicar habilidades" usa o próprio fenômeno paranormal e diz que nossas capacidades (e obstáculos) normais de aprendizado são "suspensas" no estado alterado, como, por exemplo, durante uma hipnose (ver p. 139 em 6). Assim, de novo, HSP seria capaz de fazer qualquer coisa;
  8. Com base em algumas falsas "identificações" de desencarnados em sessões conduzidas por pesquisadores, Braude se pergunta como HSV pode ajudar a entender como o comportamento exibido por algumas personalidades durante o transe se mostra tão diverso daquela historicamente conhecida. Para os proponentes de HSP, isso levanta dúvidas quanto à validade da sobrevivência, já que uma identificação completa não é possível em alguns casos. Dessa forma, HSP não estaria descartada como explicação;
Como podemos resolver a questão? No entendimento dos proponentes de HSP, a sobrevivência é admitida de uma forma muito específica. O que sobrevive necessariamente deve se manifestar como essa ou aquela personalidade pregressa, considerando os registros históricos disponíveis tais quais são. Assim, Braude em (6) rejeita alguns fenômenos notórios de manifestação de desencarnado com base na falta de evidências históricas. Ora, a maioria das ocorrências e personalidades históricas jamais deixaram quaisquer evidências (considere as personalidades históricas de Jesus, Buda, Moisés  etc), o que não é prova da inexistência dessas mesmas personalidades.

A incontrolabilidade e independência dos fenômenos psíquicos se deve à inteligência da fonte. Isso segue de forma natural de HSV, mas é uma hipótese a ser admitida forçosamente e sem justificativas no  cerne de HSP como diz a assunção 4 para se adequar a incontrolabilidade dos fenômenos.

A suspensão dos bloqueios normais de aprendizado das "habilidades como", que é feita na assunção 7 acima, certamente colide com a hipótese de que HSP não precisaria de condições "especiais" (transe etc) para se manifestar. Não há explicação sobre isso.

Ademais, uma leitura  atenda das explicações fornecidas em apoio a HSP mostra que seus proponentes misturam fenômenos que têm origem diferente: uma coisa é a manifestação mediúnica e outra as lembranças de vidas passadas. Em (6) as duas são supostamente explicáveis via HSP, porém, as circunstâncias com que se manifestam (memória de vida passada em crianças X xenoglossia com transe etc) sugerem fortemente que se tratam de fatos com causas diferentes. Isso acontece porque supõem-se que HSP não tem limites de ação, logo, ela pode dar origem a qualquer comportamento "paranormal".

Com relação a problemas de identificação, toda a dificuldade está relacionada com a ideia que se faz sobre como os desencarnados se manifestam: supõe-se sempre que - obrigatoriamente - devam se comportar exatamente como eram antes de sua morte. Como Kardec argumentou, não existem garantias que determinado nome que assine uma mensagem seja exatamente daquela personalidade a qual ele se refira. Aqui, certamente, os detalhes e mecanismos específicos que regem o fenômeno mediúnico têm papel fundamental e a explicação correta está nas mãos daqueles que fizerem melhor ideia sobre esses mecanismos.

Seria possível invocar a navalha de Occam e resolver a questão? Certamente, nesse nível superficial de abordagem, HSP seria a explicação "mais simples", pelo menos no número de causas (ela só postula a existência de "super-psi"), mas à custa de quê? De se imaginar a mente humana produzindo fenômenos aleatoriamente, em substituição a causas naturais, como uma faculdade praticamente onisciente? De se desprezar as circunstâncias e peculiaridades das manifestações, já que não conhecemos os detalhes do fenômeno e, portanto, tudo vale? Não é cômodo admitir HSP como fenomenologicamente indistinguível de uma causa natural para um fenômeno físico banal como diz a assunção 3?  Será mesmo que não existem os tais "indicadores fenomenológicos" de que fale a hipótese 5? Seria mesmo concebível que habilidades e capacidades possam ser "comunicadas" como admite 7? Diante de todas essas hipóteses "ad hoc", é impossível querer aplicar a navalha.

Somos da opinião que é preciso sondar com muito cuidado os fatos e os dados antes de se aceitar teorias baratas como HSP. No nível de esforço presentemente gasto na investigação dos fatos psíquicos, HSP se apresenta como uma alternativa que "salva as aparências" para aqueles que rejeitam a sobrevivência completamente, mas tem o mérito de aceitar os fenômenos. Ela existe graças a essa falta de esforço e por causa da raridade de alguns fatos psíquicos que não receberam a devida atenção ou adequado tratamento, mas que podem hoje ser "explicados" com base nas escarças descrições remanescentes. Nas palavras de A. Conan Doyle:
É um erro capital teorizar antes de se ter dados. Inconscientemente, começamos a torcer os fatos para se acomodar a teorias e não as teorias aos fatos.
Referências

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Occam
(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Occam%27s_razor
(3) Newton, Isaac (2011) [1726]. "Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica" (3a edição). Londres: Henry Pemberton. ISBN 978-1-60386-435-0.
(4) Sobre isso ver nosso post: Crenças Céticas XIV.
(5) H. Hart. "Survival versus Super psi". http://www.survivalafterdeath.info/articles/hart/superpsi.htm
(6) S. Braude (1992). Survival or Super-psi? Journal of Scientific Exploration, 6(2), pp. 127-144. http://www.sgha.net/library/jse_06_2_braude.pdf
(7) J. Beischel e A. J. Rock. Addressing the survival versus psi debate through process-focused mediumship research. http://windbridge.org/papers/JP73BeischelRock2009.pdf
(8) M. Sudduth (2009). Super-Psi and the survivalist interpretation of mediumship. Journal of Scientific Exploration, 23(2), pp. 167-193. http://michaelsudduth.com/wp-content/uploads/2016/01/SurvivalMediumship.pdf