2 de abril de 2013

III - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)


Numa série de posts, apresentamos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.


2. Parapsicologia: o lado teórico.

Podemos aplicar essa moral ao caso da parapsicologia? Acredito que sim. Mas, não é minha intenção aqui fazer uma apologia fajuta das pesquisas 'psíquicas' e cair fora. O que tenho em mente, ao invés disso, é o seguinte: a teoria cinética do calor é um claro exemplo de um sucesso científico que teve muita sorte; que características gerais da teoria e/ou que características de metodologia de seus proponentes foram responsáveis por tal sucesso? Se pudermos responder essa questão, então poderemos enfrentar a próxima questão lógica. Será que as teorias propostas e a metodologia usada pelos proponentes da parapsicologia têm qualquer relação mostrada pelo nosso caso de sucesso? (1) Vamos ver.

A primeira vantagem que os teóricos cinéticos tinham era uma alternativa sistemática e detalhada concernente aos fenômenos em questão. A nova teoria especificava que qualquer gás, por exemplo, era constituído de um grande número de partículas que colidiam de forma perfeitamente elástica entre si, partículas que tinham massa, volume e velocidade. Ela previa que a pressão exercida pelo gás em um vasilhame era nada mais que o efeito da colisão incessante dessas partículas em sua parede. Ela afirmava que o calor total de qualquer sistema era a soma da energia cinética das suas moléculas constituintes. Dizia ainda que a temperatura global de um sistema nada mais era que o nível de energia cinética de suas moléculas médias.  E, dado que a noção de massa, velocidade e energia cinética eram bem entendidas então, um grande número de eventos microscópicos poderia ser tratado com a linguagem e as leis da mecânica Newtoniana. Os proponentes da teoria cinética podiam tratar os desafios que os confrontavam com um número impressionante recursos teóricos.

Naturalmente, havia ainda muitas coisas que ainda demandavam explicações - a massa e a velocidade dos corpúsculos, a diferença entre calor específico mostrado por diferentes substâncias e o desaparecimento do calor latente durante os fenômenos de fusão e evaporação. Mas a própria teoria fornecia abordagens teóricas e experimentais bem definidas a esses problemas, abordagens que deram frutos em curto tempo. Na ausência de dessa teoria específica, poderosa e altamente detalhada, o progresso jamais teria sido alcançado (2).  

Será que a parapsicologia tem qualquer corpo de teoria que descreva o que a mente não material é, uma teoria sobre os elementos não físicos que a compõem e sobre quais leis não físicas governam a interação entre esses elementos e deles com o mundo material? Deixo claro que esta questão diz respeito à existência dessa teoria e não a sua verificação (3) Será que a parapsicologia tem qualquer corpo significativo de teoria com a qual é possível tratar os fenômenos empíricos? O fato embaraçoso é que ela não tem. (4) Um busca nas páginas do Journal of Parapsychology - um dos mais respeitáveis órgãos de comunicação parapsicológica (5) - vai mostrar muitos experimentos projetados para revelar alguma capacidade surpreendente de homens e animais. Mas o leitor não achará nada na direção de uma teoria bem definida, sistemática e positiva concernente à substância mental ou às propriedades mentais e as leis quantitativas e formais que governam sua interação e comportamento. 

Fig. 1 Churchland considera que a parapsicologia se assemelha a uma pescaria coletiva, onde a linha de pescar é jogada em uma direção qualquer seguindo um impulso local e se obtém uma quantidade grande de resultados inexplicáveis, pois a parapsicologia não tem um núcleo teórico que oriente a realização e o  progresso dessa pesquisa.
Se é que se encontra uma teoria, ela é vaga, impressionística e não quantitativa, usualmente voltada para explicar uma classe muito restrita de fenômenos, de forma que ela parece idiossincrática (6) ao autor. Não há um núcleo teórico estabelecido que tenha reunido a comunidade a partir de sucessos passados ou cuja forma presente tenha se moldado em resposta a falhas experimentais anteriores, um programa que faça a disciplina seguir adiante. Tais elementos, tão caros às ciências estabelecidas, estão sumariamente ausentes na causa em questão. Para um filósofo ou historiador de ciência, a parapasicologia parece uma disciplina surpreendentemente ateórica. Além da assunção vaga de que agentes conscientes têm um aspecto não físico de algum tipo, que se expressa as vezes na forma de percepção paranormal ou manipulação paranormal, simplesmente não se encontra um núcleo aceito de uma teoria geral.

O que se percebe na maior parte das vezes é uma busca experimental voltada para a isolação e demonstração de efeitos que transcendem uma explicação em termos das ciências físicas. Caracteristicamente, tais experimentos estão preocupados em identificar casos de sucesso na percepção de algum tipo ou de outro, onde a percepção é considerada como fisicamente impossível (por exemplo, visão remota, telepatia, clarividência) ou a manipulação ou controle são considerados como fisicamente impossíveis (psicocinesia, telepatia). Tais experimentos são usualmente bem elaborados, utilizando os mesmos recursos eletrônicos high-tech dos mais bem estabelecidos ramos da ciência e exploram as mesmas técnicas de avaliação estatísticas aprovadas em todo lugar. De fato, a motivação experimental é tão bem desenvolvida que ela pode ser aplicada a qualquer conjunto de variáveis arbitrárias que se suspeite terem alguma relação estatística significativa entre si. 

Como resultado, a pesquisa parapsicológica se parece com uma pescaria coletiva (7). Na falta de uma teoria geral que discrimine uma parte do lago da outra, o anzol experimental é lançado aqui e ali conforme o impulso momentâneo sugere fazer assim. O resultado coletivo é uma amontoado de resultados mal motivados que conduzem a disciplina a nenhuma direção particular, pois eles não motivam nenhuma modificação no núcleo da teoria que os guia (8), pois não há esse núcleo. 

Há outros problemas com a metodologia de se olhar para algum efeito, qualquer efeito, que não possa ser explicado em termos físicos. Pois, quando tais resultados são encontrados (ou melhor, alega-se que são encontrados), eles, de fato, podem ser misteriosos do ponto de vista físico, mas são igualmente misteriosos do ponto de vista não físico. A razão é que parapsicólogos não são capazes de fornecer uma explicação melhor do que qualquer físico, pois a parapsicologia não tem recursos teóricos significativos para construir tais explicações. Se alguém conseguir fazer com que o resultado de uma longa série de lançamentos de moedas tenha 100% de acurácia, não constitui explicação desse resultado simplesmente se afirmar que o sujeito "tem precognição" (9). Isso é o mesmo que dizer que o amobarbital faz você dormir porque tem as "virtudes do sono". Uma explicação real deveria citar os mecanismos não físicos envolvidos, identificar os fatos empíricos que os refletem, apelar para as leis que os governam e, então, deduzir exatamente o efeito surpreendente observado. A parapsicologia não faz nada disso.

J. B. Rhine (1895-1980) testando sujeitos com baralhos Zenner. Diante da ausência de uma motivação para se desenvolver uma teoria, a pesquisa parapsicológica se concentrou em produzir dados obstinadamente, na ideia errônea que isso bastava para caracterizar a parapsicologia como ciência.
Compare tudo isso com a teoria cinética do calor. A pesquisa experimental conduzida pelos teóricos cinéticos não tinha como objetivo encontrar um resultado experimental contrário à teoria clássica. Seu objetivo era testar algumas previsões específicas da teoria cinética. Quando um resultado experimental foi encontrado, eles tiveram sucesso não porque desafiavam qualquer explicação clássica, mas porque resultavam em explicações e predições ainda mais precisas, se colocadas em termo da teoria cinética corpuscular. A teoria cinética não brilhava por luz refletida de uma falha, ela tinha luz própria. 

Ao contrário, a parapsicologia brilha por luz refletida das falhas do materialismo, se é que ela brilha. A parapsicologia não tem sucesso explanatório por si própria, porque ela não tem uma teoria substancial que ela possa denominar como sendo sua própria. Se não há teoria detalhada, não pode haver explicações detalhadas. E, se não há explicações detalhadas, então a parapsicologia não pode brilhar por si. 

A ausência de uma teoria significativa é um problema muito sério. Mas, ainda mais sério, eu acho, é a falta de qualquer movimento, por parte da comunidade parapsicológica em toda sua história, em tentar reparar esse problema. A preocupação presente dos profissionais dessa área tem se concentrado em anedotas passadas ou presentes em torno de maravilhas psíquicas e/ou experimentos desenhados para demonstrar um efeito parafísico. Mas, nenhum efeito, não importa o quão impressionante ele seja, poderá ser identificado como 'parafísico', a menos que se encontre também uma explicação de sucesso em termos de uma teoria parafísica detalhada (10). Na ausência de tal explicação, o efeito não representará nada. Ele não passará de mais um efeito surpreendente e presentemente inexplicável. E, em nada adiantará descrevê-lo como 'parafísico'.

A saber, a perseguição obstinada de resultados experimentais parafísicos, dentro de um vácuo teórico genuíno, me parece algo metodologicamente estéril, ainda que os experimentos sejam feitos com o mais meticuloso cuidado e produzam algum resultado genuíno. O movimento Browniano era também um resultado profundamente embaraçoso e também foi encontrado por pesquisadores respeitáveis usando técnicas respeitáveis. Mas, ele não serviu em nada contra a termodinâmica clássica e nunca serviria, apenas quando a nova teoria cinética desse a sua existência uma forma inteligível. O que a parapsicologia precisa, antes de tudo, é, portanto, uma teoria específica e substancial que dê forma as suas vagas aspirações e sirva como guia sistemático a sua atividade experimental. Enquanto essa teoria não existir, ela nunca será uma ciência, não importa quantos experimentos ela acumule (11).

Há um vício metodológico com que todos estão familiares. Filósofos, em particular, estão acostumados com ele e são acusados de cultivá-lo. O vício consiste em tentar fazer progressos teóricos de grande envergadura na ausência de resultados experimentais sistemáticos para controlar o desenvolvimento teórico subsequente: os resultados são descritos como 'castelos no ar'. Aqueles que procedem desse jeito protestarão que eles são teóricos. E, com certeza, eles são. Eles dirão que suas teorias são coerentes e imaginativas. E, com certeza, elas podem ser. Mas, o resultado final tem muito pouco a ver com ciência.


O vício tem um equivalente oposto, menos observado na prática, que é tão obtuso em seu resultado final quanto o primeiro. Ele consiste em tentar fazer progressos experimentais de envergadura na ausência de uma teoria sistemática que guie a tradição experimental e que a modifique à luz dos resultados. Esses aparecem na forma de um monte de correlações entre parâmetros de significação questionável. Os que procedem dessa forma protestarão a dizer que são experimentalistas. E, do mesmo modo, respondemos que eles o são. Eles protestarão dizendo que seus testes são feitos de forma honesta e precisa. E, assim, eles podem ser. Mas, o resultado final terá pouco a ver com ciência. Como os aspirantes anteriores, tais pessoas apenas brincam de fazer ciência (12).

Avançando um pouco mais no exame da tradição parapsicológica representada nas páginas de seus jornais de divulgação, poderíamos imaginar que ela sofre do primeiro defeito. Mas, dessas duas doenças, não é a primeira, mas a segunda, eu afirmo, que descreve melhor a fraqueza da parapsicologia (13).






Comentários

(1) Grifo em itálico nosso.

(2) Essa afirmação é a base para se compreender a diferença entre ciência e não ciência. O que caracteriza a atividade científica, já dissemos várias vezes com base em estudos anteriores, é a existência de uma teoria embasada em resultados experimentais que oriente o progresso experimental. Sem essa teoria, simplesmente amontoar resultados não constitui ciência. Churchland aplica repetidamente esse princípio ao analisar a parapsicologia aqui.

(3) Grifo em itálico nosso. A primeira preocupação importante é saber se há uma teoria. Não importa que ela não seja ainda verificada experimentalmente.

(4) Grifo em itálico nosso. Note a afirmação forte e direta de Churchland contra a parapsicologia.

(5) A referência pode ser acessada aqui.

(6) Isto é, cada pesquisador tem a sua explicação própria de um fenômeno. Como não há uma teoria dominante, surge um 'labirinto de hipóteses' tão variado quanto a quantidade de tendências e gostos particulares de cada pesquisador.

(7) Grifo em itálico nosso. Ver comentário na Fig. 1.

(8) Grifo em itálico nosso.

(9) Grifo em itálico nosso. Essa observação de Churchland descreve bem o estado atual da pesquisa em parapsicologia: o da explicação em termos meramente textuais. Palavras como 'retrocognição', 'precognição', 'efeito PK', 'psi-gama', 'psi-kappa' são etiologias cuja definição está ligada diretamente às ocorrências e que são constantemente usadas como 'explicações' para um fenômeno, em um movimento claramente suspeito.

(10) Grifo em itálico nosso.  

(11) Grifo em itálico nosso. A justificativa final que consagra o princípio porque a parapsicologia não pode ser encarada como uma ciência. Embora se possa fazer pesquisa aparentemente científica pelo uso de equipamentos, técnicas e procedimentos tecnológicos considerados 'avançados', jamais se conseguirá  ciência de verdade na ausência de uma teoria.

(12) Grifo em itálico nosso.

(13) Esforços na direção de inserir a parapsicologia como uma atividade normal em campus universitários  foram feitos, encontrando, entretanto, dificuldades enormes. Ver:

24 de março de 2013

II - Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)



Numa série de posts, apresentaremos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é do artigo.

Continuação de 'I - O argumento da tolerância'.

A "teoria predileta" desta história é a teoria clássica do calor e energia, que tem como princípio central que todas as interações mecânicas envolvem ao menos a conversão de energia mecânica em calor. Isso significa que, qualquer sistema isolado de corpos em movimento deve eventualmente 'parar', assim como ficam em repouso bolas de bilhar em uma mesa de sinuca depois de uma jogada. A energia (mecânica) cinética é dissipada pelo sistema como calor. Todo o ambiente, a borda da mesa, o ar adquirem uma temperatura levemente maior do que a que tinham antes da jogada.

O ponto importante aqui é a generalidade de um princípio chamado 'segunda lei' da termodinâmica clássica. De acordo com esse princípio, qualquer sistema de interações mecânicas, que seja fechado à entrada de energia externa, um catavento, um pêndulo oscilante, um conjunto de bolas de ping-pong colidindo em um caixa, deve eventualmente sempre entrar em repouso.

O fenômeno importante e falsificante dessa estória é o movimento Browniano, descoberto pelo botânico Robert Brown no começo do século 19. O movimento Browniano é a incessante agitação de partículas microscópicas suspensas em água ou ar, tal como espórulos de plantas ou partículas de fumaça. O movimento caótico e aparentemente eterno de tais partículas pode ser visto, e é frequentemente visto, através de um microscópio, mas não foi considerado como tendo qualquer relação com a termodinâmica clássica e a segunda lei. O palpite inicial de Brown para explicar esse movimento quase indetectável apelou para a biologia, afinal os espórulos estão vivos. O movimento igualmente ativo observado com partículas sem vida de fumaça destruíram essa hipótese, sem qualquer ameaça à segunda lei. Quem não poderia dizer que nova energia estivesse continuamente a ser fornecida de alguma fonte microscópica e quem seria capaz de contabilizar de forma precisa a quantidade de energia consumida por tais partículas tão pequenas, ou pelo meio difuso em que elas estavam em suspensão, a fim de calcular se isso estava em desacordo com a teoria clássica do calor? Tais coisas estavam muito além da capacidade de determinação experimental. E, assim, o movimento Browniano permaneceu como um problema menor para os teóricos clássicos, se é que ele fosse sequer notado. A teoria clássica dominava a paisagem como um gigante intocável.


Este vídeo mostra o movimento Browniano através de nanopartículas em suspensão na água. O movimento das partículas é perturbado por colisões com os átomos de água invisíveis. Este fenômeno permaneceu como uma anomalia desprezada pela teoria dominante, a termodinâmica clássica, que previa que as partículas teriam que acabar em repouso depois de certo tempo.

Mas, não por muito tempo. Uma teoria alternativa e razoavelmente geral do calor foi eventualmente desenvolvida por razões que não tinham nada a ver com o movimento Browniano. Essa teoria - a moderna teoria cinética - propôs que o calor nada mais é do que um tipo de energia mecânica, a saber, a energia cinética das moléculas que formam os sólidos comuns, os líquidos e os gases. Elas também estão em movimento, vibrando caoticamente ou oscilando no nível microscópico. A temperatura de um corpo foi interpretada como sendo apenas uma medida de quão vigorosamente as moléculas constituintes estão se movendo. E a 'conversão' inevitável da energia cinética no nível macroscópico em calor, que é um tema recorrente na segunda lei clássica, nada mais seria do que uma distribuição dessa energia do nível macro para o micro. Uma bola pulando eventualmente para porque as moléculas do ar ou do chão levam embora partes pequenas dessa energia cinética que estava tão organizada inicialmente no  movimento coerente do pular. A bola agora está em repouso, mas ligeiramente mais quente, assim como o chão e o ar circundante. A energia original da bola agora vive na forma de um aumento da atividade das moléculas constituintes, tanto do ar como do chão. 

Mas, o que dizer sobre as próprias moléculas em movimento? Elas não dissipariam sua energia cinética, à medida que colidem umas com as outras, assim como no caso da bola? Será que elas não terminariam também em repouso, mas ligeiramente mais quentes? Não, assim prediz a teoria cinética. As interações entre as moléculas são perfeitamente elásticas, o que é uma outra forma de dizer que nenhuma energia é perdida em qualquer interação entre elas. Dessa forma, as partículas permanecem colidindo entre si felizes para sempre. As moléculas não podem dissipar suas energias cinéticas na forma de calor, porque o movimento delas já é o que se chama calor. Um sistema fechado de moléculas em colisão, portanto, nunca estará em repouso.


Essa teoria não foi bem recebida pela maioria por uma razão fácil de se entender. Por um lado, ela postulava a existência de partículas que, por causa de seu tamanho, jamais seriam observadas pelos humanos. Por outro lado, essas partículas inerentemente 'tímidas' eram admitidas como realizando colisões elásticas entre si, em contradição direta com o princípio bem estabelecido da segunda lei. Na aparência, essa era uma proposta metodologicamente suspeita e improvável como fato.
Animação em computador do estado de agitação molecular. Para uma nova teoria (a cinética dos gases), o calor nada mais é do que uma manifestação microscópica do movimento de átomos e moléculas, que fornecia uma explicação alternativa à da termodinâmica clássica. Essa manifestação invisível de mudança tem consequências indiretas que podem ser observadas empiricamente. Cortesia Wikipedia.
Como testar essa teoria nova sobre a natureza do calor? Há muitas formas, mas discutiremos apenas uma delas aqui.  Moléculas são muito pequenas para serem vistas, mesmo com um microscópio, então não havia esperança de se ver diretamente se um gás aquecido era composto de moléculas em movimento incessante. Mas, se suspendermos partículas em um gás, partículas tão pequenas que pudessem ser afetadas de todos os lados pelo movimento das próprias moléculas de gás, mas grandes o suficiente para serem vistas ao menos com um microscópio, então o movimento incessante das moléculas será revelado pela dança incessante das partículas suspensas nele. Ou seja, se a teoria cinética é verdadeira, o movimento Browniano deveria existir! Além disso, a violência do movimento observado deve ser proporcional à temperatura absoluta do gás (quanto mais rápido as moléculas se movem, tanto mais rápido se moverão as partículas). E, mais ainda, a teoria cinética fez previsões sobre a distribuição de partículas de fumaça por causa da gravidade e da temperatura e resultou também num bom acordo com a lei clássica dos gases. Mas, não precisamos detalhar isso aqui mais. É suficiente dizer que todas essas predições são experimentalmente acessíveis e todas foram corroboradas em detalhes. 

Dessa forma, uma curiosidade menor, de relevância duvidosa para qualquer coisa, surgiu como um grande fenômeno que revelou um aspecto oculto tanto da matéria como do calor e se constituiu numa refutação permanente da segunda lei. Mas, isso aconteceu somente porque uma nova teoria nos mostrou uma maneira diferente de se pensar as coisas. Tivéssemos permanecido cristalizados nas categorias e imagens da teoria clássica, o significado do movimento Browniano jamais teria sido compreendido.  

A moral dessa história é que devemos sempre ser tolerantes com a proliferação de pontos de vista teóricos diferentes. Na verdade, devemos ativamente encorajar isso, mesmo se nossas teorias prediletas presentes não sofrerem nenhum problema empírico (1). Isso não significa que devemos abandonar teorias de sucesso ou programas de pesquisa produtivos a fim de seguir toda e qualquer ideia maluca que aparecer. Isso seria demonstrar falta de espírito crítico, de irresponsabilidade, além de postura muito ineficiente. Ao invés disso, devemos estar conscientes dos problemas com o monopólio intelectual, não importa quão bem uma teoria tenha sido desenvolvida. E, também, implica que devemos sempre estar abertos a tentativas de articular e explorar alternativas conceituais interessantes.   

Comentários


(1) Embora essa seja uma recomendação que faz sentido, na prática, a maior parte do tempo dos cientistas é gasto no desenvolvimento do paradigma principal. O paradigma confere estabilidade e permite resolver problemas, que é uma preocupação central no labor científico. A construção de alternativas teóricas - embora recomendado pela proposta de Feyerabend - é, muitas vezes, não intuitiva no contexto da prática científica.

Continua no próximo post: parte II - Parapsicologia, o lado teórico.