1 de fevereiro de 2013

Pequena reflexão depois de uma morte coletiva.

Durante a vida, o homem tudo refere ao seu corpo; entretanto, de maneira diversa pensa depois da morte. Ora, conforme temos dito, a vida do corpo bem pouca coisa é. Um século no vosso mundo não passa de um relâmpago na eternidade. Logo, nada são os sofrimentos de alguns dias ou de alguns meses, de que tanto vos queixais. Representam um ensino que se vos dá e que vos servirá no futuro. Os Espíritos, que preexistem e sobrevivem a tudo, formam o mundo real. Esses os filhos de Deus e o objeto de toda a Sua solicitude. Os corpos são meros disfarces com que eles aparecem no mundo. Por ocasião das grandes calamidades que dizimam os homens, o espetáculo é semelhante ao de um exército cujos soldados, durante a guerra, ficassem com seus uniformes estragados, rotos, ou perdidos. O general se preocupa mais com seus soldados do que com os uniformes deles.” (A. Kardec, (1))

Nenhuma dor pode ser maior do que aquela de uma mãe ou pai ao descobrir a morte de um filho. Não que outras dores ou que a dor de outros familiares possa ser desprezada. Há uma tristeza solene na contemplação do corpo da criança ou do jovem falecido por uma tragédia que não se pode evitar, diante do tempo que não se pode fazer retroceder! E, depois, a saudade a fustigar infinitamente aquela mãe ou pai que, condenado a uma ausência aparentemente perpétua, pensa que jamais poderá ver o seu maior bem.

Embora o fenômeno da morte seja na aparência apenas mais um no concerto de fenômenos naturais e orgânicos, ele se torna justamente o que é pelos laços de afinidade e mútua estima que ligam indivíduos, famílias, coletividades e até países. Essa forças, não obstante invisíveis, são muito fortes para serem desprezadas. A dor da descontinuidade por conta da perda daquele ente amado é superlativa demais para não merecer devida explicação no conjunto das ocorrências naturais que nos cercam. Em vão os propagandistas do niilismo dirão que são forças subjetivas e que apenas a cega lei do acaso impera.

Quando, porém, a morte se dá em grande número, então essa necessidade de uma explicação se torna máxima. Não é difícil entender que, se grande número de pessoas são submetidas as mesmas condições extremas que ameaçam o fluxo vital de seus organismos,  então a condição necessária para as mortes coletivas se forma. Muitos dos que pregam a ilusão pura dos sentidos acreditam que isso é tudo que se pode dizer sobre o assunto.

Mas não! É justamente na constatação do intercâmbio incessante, natural ou provocado, entre dois planos da vida que uma imagem do mundo se levanta como um novo sol a aquecer e prover energia a todos. À princípio timidamente, para então se transformar numa grande realidade, a continuidade da vida após a morte - razão fundamental de todos os cultos -  é a grande consolação para os que aqui permanecem temporária e fisicamente separados daqueles que se foram e para onde gravitam todas os homens, independente de suas crenças.

A certeza da continuidade que se obtém ao se ter o mérito de contactar um filho amado depois da grande separação jamais poderá ser igualada a simples crença nessa possibilidade. Isso distingue o Espiritismo de outras doutrinas e concepções religiosas que apenas poderão fornecer uma vaga certeza, quase sempre ameaçada por outras expectativas de separação definitiva.

Antes, porém, de se buscar por uma causa para uma ocorrência de morte coletiva, meditemos no próprio significado da realidade que aguarda a todos mais além:
  • Certeza de um novo encontro;
  • Possibilidade de comunicação;
  • Separação temporária e não definitiva;
  • Vida que continua e não fim de linha;
  • Possibilidade de recomeço em plano mais elevado;
Por isso, antes também de se concluir pela aparente dureza do destino ou da lei natural, convém considerar que nossas concepções de justiça são obviamente adaptadas à nossa apreensão severamente limitada da realidade e da nossa própria existência transitória...

A sobrevivência além-túmulo elimina assim uma descontinuidade. Aprendendo a enxergar com essa perspectiva mais ampliada da vida, alcançamos um novo nível de justiça e tolerância à morte.

A perspectiva da sobrevivência abranda o peso da morte de todas as formas:  individual, seja na suave paz da consciência tranquila que experimenta o grande fim após uma existência bem vivida ou na triste dor da separação que parece imposta;  ou coletiva, na imperceptível lista dos que morrem todos os dias separadamente ou dos milhares que às vezes partem juntos e assustados diante de uma ocorrência que não puderam prever.

"Venha por um flagelo a morte, ou por uma causa comum, ninguém deixa por isso de morrer, desde que haja soado a hora da partida. A única diferença, em caso de flagelo, é que maior número parte ao mesmo tempo".(2) De um jeito ou de outro todos se ausentarão em definitivo - o que torna ainda mais relativa os julgamentos precipitados dos que condenam o destino ou uma aparente falta de Deus após episódios de mortes coletivas. "O general se preocupa mais com seus soldados do que com os uniformes deles" diz a mensagem dos Espíritos a ressaltar o destino de felicidade de todos os seres.

Se o final não pareceu feliz, então é porque ele não foi verdadeiramente um final...

Referências

(1) "O Livro dos Espíritos", Resposta à questão #738a (texto www.ipeak.com.br);
(2) "O Livro dos Espíritos", Resposta à questão #738b, segundo parágrafo (texto www.ipeak.com.br).

21 de janeiro de 2013

Paradigmas e Ciência Espírita

"Examinado de perto, seja historicamente ou no laboratório contemporâneo, esse empreendimento se assemelha a uma tentativa de forçar a natureza a entrar em uma caixa relativamente inflexível e pré-montada que é fornecida pelo paradigma. De jeito nenhum é objetivo da ciência normal descobrir novos tipos de fenômenos; na verdade, aqueles que não entram na caixa nem são percebidos. Nem tem o cientista o objetivo de desenvolver novas teorias e, frequentemente, são intolerantes com aquelas teorias inventadas por outros." (T. Kuhn, (1) )

Quando se observa em detalhes o 'motus operandi' da grande maioria das chamadas 'ciências estabelecidas', embora o grande número de descobertas e consequências advindas do labor científico bem  articulado, não se pode deixar de perceber que há um preço a se pagar, frequentemente pouco lembrado pelos entusiastas desse conhecimento (2). É que a ciência estabelecida também restringe-se a si mesma, tanto no escopo como na abrangência de seus estudos a fim de que se torne factível.

O grande pesquisador da ciência Thomas Kuhn (1922-1966) criou o termo 'paradigma científico' (1,3) para descrever um conceito importante que caracteriza toda ciência madura, em particular nas 'ciências naturais' (4): o conjunto de teorias (ou a teoria) bem estruturada capaz de congregar gerações de cientistas em torno de um tema, a se constituir um tipo de 'passaporte confiável' para solução de determinados problemas. Ele chegou a essa conclusão depois de anos de estudos em história da ciência, quando percebeu que as teorias disponíveis para explicar como a ciência opera e se estabelece não estavam de acordo com o conhecimento histórico. 

Há uma crença bem popular de que é possível gerar conhecimento científico de forma infalível através da aplicação de um 'método científico' ou processo que constituiria uma verdadeira 'pedra filosofal' para a ciência. Na crença da existência dela, sua busca tornou-se um das principais tarefas de gerações de filósofos da ciência. Kuhn teve sucesso em demonstrar que não só a busca era improfícua, como o próprio método era uma ilusão por um conjunto de razões, dentre as quais (5):
  • Falta de acordo histórico: a existência de um 'método infalível' não era observado em uma análise detalhada dos muitos detalhes históricos que caracterizavam o desenvolvimento de teorias científicas ao longo dos séculos;
  • Dependência entre a observação e as teorias científicas: são as teorias que orientam a realização e o sucesso dos experimentos e não o contrário. Por outro lado, só há boas teorias quando os conceitos básicos de uma ciência estão bem estabelecidos (6), o que leva à necessidade de se ter uma linguagem própria conectada a conceitos bem compreendidos;
T.Kuhn (1922-1966)
Ao invés de um método, Kuhn propôs o conceito de paradigma científico  (7) que permite escolher - de uma ampla gama de fenômenos e aparentes problemas científicos - quais devem ser estudados daqueles que devem ser desprezados. Na existência de um paradigma (8), a atividade científica se aproxima de uma 'solução de quebra-cabeças', quando se tem certeza que uma solução será alcançada. O preço óbvio que se paga por essas vantagens é a restrição de escopo: cientistas não precisam (e nem devem) se interessar por qualquer tipo de problema, mas apenas por aqueles garantidamente tratáveis pelos paradigmas a que eles aderem. A atividade científica torna-se uma tarefa monótona (frequentemente envolve a busca ou aperfeiçoamento de soluções para problemas já resolvidos...) e são raríssimas as ocasiões em que 'soluções para problemas fundamentais' são sequer procuradas.

Uma explicação para o ceticismo 

A noção de paradigmas de Kuhn (1) permite compreender melhor a ideia errônea de que cientistas aderem irrestritamente ao ceticismo. Pois, não é que cientistas sejam inerentemente céticos, mas que eles apenas estão interessados em resolver problemas que tenham uma relação direta com o(s) paradigma(s) que escolheram se dedicar profissionalmente. Como ressaltado por Thomas Kuhn, para que a ciência dê resultados, não é possível se dedicar a qualquer tema ou problema que apareça, mas apenas aqueles para os quais exista um paradigma ou teoria bem estruturada que permita que a pesquisa seja organizada de forma eficiente. Isso envolve não só a escolha de uma teoria favorita, mas de uma ampla gama de conceitos chave na forma de uma linguagem própria. O paradigma propicia o progresso, evitando que sempre se tenha que começar 'do zero' quando surge a necessidade de dar solução a um novo problema pertencente ao tema de escopo do paradigma. Resta-nos discutir futuramente o que acontece com os temas sem padigma reconhecido (8).

Acusações apressadas de céticos de sofá que dizem que o 'Espiritismo aspira ao status de ciência' são incapazes de perceber que não se trata de se buscar uma 'nova ciência acadêmica' e desconhecem a restrição imposta pelos paradigmas científicos. Não é objetivo da ciência dar respostas para tudo: ela precisa se especializar para que funcione. Consequentemente, existem muitas lacunas e problemas desprezados por essa mesma ciência. Esse tipo de ceticismo está a tal ponto enceguecido que é incapaz de perceber a necessidade de aceitar novos conceitos para que uma nova linguagem e teoria tenha chance de mostrar seu valor. Aqui, a visão de paradigmas de Kuhn permite compreender mais amplamente o problema. De fato, como querer discutir reencarnação ou comunicabilidade além-túmulo se o próprio conceito de espírito como unidade indivisível, independente e invisível sequer é aceito? Há a barreira inicial de se aceitar os conceitos (com sua 'ontologia própria') a fim de que uma nova linguagem teórica seja articulada e dê resultados. Sem a aceitação dos conceitos, é impossível aceitar igualmente a teoria e a compreensão mais profunda sobre os tipos de teste ou situações de observação que são propiciadas por ela.  

O 'paradigma espírita' (9) é capaz de dar explicação razoável para um grande número de fenômenos e ocorrências naturais desprezadas pela sua incomensurabilidade com outros temas mais materiais de pesquisa. Resta ao ceticismo negar insistentemente a importância do tema: como já tivemos ocasião de expor, esse ceticismo é um vasto emaranhado de crenças preconcebidas que se recusa a aceitar alguns conceitos e, por causa disso, está condenado a negar os fenômenos, até que seja completamente esquecido pelas novas gerações.

Nosso texto aqui teve como objetivo mostrar a importância que estudos em filosofia da ciência tem para a correta compreensão de teorias e propostas de estudos para os fenômenos psíquicos. Sem esse estudo, manifestações claramente contrárias as propostas espiritualistas (aquelas que postulam a continuidade da existência da consciência, primeiro sua independência do cérebro etc) serão necessariamente limitadas. Não se pode impor limites ao conhecimento científico e o que muitos céticos personalistas fazem nada mais é que estabelecerem limites de acordo com sua própria compreensão dos fatos.

Falaremos sobre esse tema instrutivo em outros posts futuramente.  

Notas e referências

(1) Kuhn T. (1970) "A estrutura das Revoluçõeos Científicas", International Encyclopedia of Unified Science, Volume 2, Número 2, 2a edição.

(2) A quem poderíamos chamar 'cientificistas'. Há uma seita mais ou menos radical de indivíduos que vão além e pregam que a ciência estabelecida é a única forma confiável de se gerar conhecimento científico de valor. Desprezam a religião e tem aversão por ideias consideradas 'místicas', o que incluem todos os temas que não são de interesse das ciências ordinárias, inclusive os espiritualistas;

(3) Paradigma: do grego "παράδειγμα" (paradeigma), "modelo, exemplo, amostra" do verbo "παραδείκνυμι" (paradeiknumi), "exibir, representar, expor"  e de "παρά" (para), "além" + "δείκνυμι" (deiknumi), "mostrar, apontar";

(4) As ciências de interesse para filósofos como Popper, Kuhn e Lakatos são as chamadas 'ciências naturais' - física, química, biologia etc. O conhecimento de humanas (sociais, economia etc) está excluido dessa análise.

(5) A. Chalmers (1993), 'O que é ciência afinal?', 1a edição, Ed. Brasiliense.p. 109-110;

(6) Exemplo: só tem sentido em se propor um experimento para medir a carga de um elétron, quando se reconhece a existência de elétrons e o conceito de carga. Isso várias vezes passa desapercebido quando se trata de criticar experimentos ou a análise de fenômenos psíquicos;

(7) Exemplos de paradigmas de sucesso em ciência foram: a teoria de Ptolomeu dos epiciclos planetários, a teoria da evolução de Darwin, a física de Newton, a Mecânica Quântica, o atomismo etc;

(8) Na inexistência de um paradigma, estamos na fase 'pre-paradigmática' (1) da ciência ou fase 'pré-científica'. Falaremos sobre essa fase em outro post;

(9) Para saber mais: http://www.geeu.net.br/artigos/paresp.html