3 de dezembro de 2011

Física Quântica e os espiritualistas no século 21 (análise preliminar)

Representação gráfica da molécula de DNA.
Do ponto de vista filosófico, espiritualista é todo aquele que acredita haver algo além da matéria, que justifique os fenômenos da consciência, do ser e da personalidade humana (e, porque não dizer, dos animais). Deixa de ser espiritualista aquele que acredite que a matéria seja a base para se compreender os fenômenos psíquicos e psicológicos. Essa é uma maneira muito didática de apresentar conceitos que sempre geram muita confusão e é de autoria de Allan Kardec (*).

Mas, no que consiste esse materialismo? Já que a física moderna demonstrou que existem modalidades de matéria muito distantes dos nossos sentidos, deixa de ser viável acreditar que fenômenos como o da consciência sejam explicáveis por meio de interação simples entre átomos entendidos como blocos rígidos de matéria. Além desses 'blocos constitutivos', existem outras entidades na forma de campos ou forças que atuam à distância, além de outros conceitos fundamentais que são necessários para explicar como a matéria pode se organizar para constituir algo vivo primeiro e, então, como esse ser vivo pode manifestar consciência. O materialismo moderno, portanto, deve fazer uso dessas ideias e conceitos abstratos para explicar como a vida e a consciência podem existir em nosso mundo. Mas então, a raiz da palavra 'materialismo' na forma de 'matéria' ou aquela coisa sólida e tangível deixa de ter seu significado original.

Visto meramente do ponto de vista das definições que se faz para coisas e conceitos, pode-se defender a ideia hoje em dia que há menos distância entre as noções espiritualistas do ser do que antes, durante o século 19, por exemplo. No auge do positivismo lógico, a matéria que impressionava os sentidos era tudo o que poderia existir. Hoje, há meios de se compreender que o espírito (Nota 1) seria também uma força, outro elemento, inacessível aos sentidos ordinários como  ingrediente fundamental para a formação da consciência. Entretanto, há uma clara dificuldade quando se trata de validar essa noção do ponto de vista considerado 'científico'.

A visão de Mundo pelos cientistas modernos (início do século 21)

Em paralelo com tal constatação, existe uma queixa por parte do mundo acadêmico com relação a qualquer tentativa de explicação do mundo a nossa volta por meio de conceitos que não nascem diretamente do  processo considerado adequado de se fazer ciência. É que o pensamento científico de nossa época se desenvolveu a partir da ideia de que noções como a existência de deuses ou forças invisíveis conscientes que atuariam diretamente no mundo são desnecessárias. No passado, a religião organizada ditava as normas sobre o que seria considerado razoável e não havia problema em se acreditar que o mundo era de fato regido diretamente pelas mãos de Deus. Desde que a física clássica conseguiu explicar muitos dos fenômenos mecânicos e elétricos do Universo com base na existência de leis cegas e sempre operantes (não são leis arbitrárias como arbitrário pareciam ser os caprichos de Deus), todas as outras ciências (principalmente a Biologia e a Medicina) também buscaram desenvolver suas teorias dentro da noção de que leis cegas são suficientes para explicar os fenômenos naturais.

Essa visão do mundo, conjugada à maneira positiva de se encarar as entidades (coisas que existem no mundo, de fato) que trabalham como 'atores' nas teorias científicas, levou a uma situação onde aparentemente não mais seria possível acreditar na possibilidade de forças inteligentes (além daquelas que tem como causa a existência dos seres humanos) atuarem diretamente no Universo. Há uma imensa categoria de fenômenos naturais (que são objeto de estudo das ciências físicas) que são claramente produto de forças ou leis cegas. Entretanto,  a comunidade acadêmica acabou se especializando neles e são hoje  incapazes de aceitar que há uma limitação de escopo na ciências que trabalham. Por se referirem a fenômenos simples, colecionáveis, reprodutíveis etc, as teorias deles derivados são necessariamente limitadas a esses objetos que criam uma visão de mundo igualmente limitada. Acrescenta-se a isso o espírito corporativista das associações científicas e teremos um ambiente notoriamente cético em sua maneira de considerar determinados fenômenos e avesso a qualquer tentativa de mudança ou novidade, que é mal vista como um enxerto desnecessário e suspeito.

Surge a psicologia quântica

No que a física quântica mudou esse quadro? Uma resposta a essa questão pareceria envolver necessariamente grande conhecimento dessa nova física. Mas, no que nos interessa aqui, não deixa de ser interessante observar o fenômeno recente de como essa nova física tem sido invocada para justificar a crença de determinados grupos espiritualistas, psicólogos e até de grupos de acadêmicos marginalizados (Zohar, 1999). O exemplo que encabeça a lista é a do físico e escritor Amit Goswami que, numa série de livros, palestras e congressos, se fez conhecido como um 'ativista quântico' e propõe uma 'interpretação' radicalmente quântica do ser humano.  Além disso, vários parapsicólogos (Kugel, 2000) aderiram à ideia de que é preciso utilizar a física quântica para explicar os fenômenos psíquicos. Essa física também surge como uma novidade capaz de motivar uma nova psicologia (Zohar, 1990).

O fenômeno é curioso porque a física quântica, não obstante ter introduzido uma modificação bastante radical na maneira de se encarar as entidades que fazem parte das teorias da física anterior, apenas é aplicável ao mundo infinitamente pequeno. Trata-se da microfísica ou física das partículas e agregados atômicos, que só atua em escalas muito pequenas. Como então que essa nova física veio parar em compêndios de psicologia e artigos de parapsicologia?

Nossa introdução procurou fornecer um quadro muito resumido da atual maneira de se encarar o mundo por parte dos cientistas. Uma vez que a física quântica é um mistério - sua interpretação ainda é motivo de calorosos debates entre os especialistas - parece ser conveniente para tais grupos invocar a física quântica na psicologia, parapsicologia e até ecologia que também lidam com mistérios. Como a física quântica é um mistério e a consciência é um mistério, então o cérebro é quântico... Dessa forma, a física quântica surge como uma validação científica de mistérios para uma ciência que aprendeu a encarar os fenômenos naturais como se eles não o fossem. É compreensível a irritação de muitos acadêmicos com a 'onda quântica' na psicologia e outras disciplinas.

Desvantagens da abordagem quântica em assuntos espiritualistas

Alguns de nossos leitores poderiam nos questionar porque alguém que se afirma espiritualista poderia ser contra essa abordagem 'quântica'. Minha argumentação, em ordem de importância é conforme segue:
  1. Embora concorde que a física quântica alterou nossa visão do mundo (microscópico), não é possível querer extrapolar essa nova física para a psicologia porque os objetos de estudo dessa disciplina podem não ser quânticos (Jahn, 2011, ver Nota (2)). Abusa-se demais de analogias e interpretações para forçar uma nova maneira de ver o mundo derivada de coisas que não são os objetos da vida cotidiana. Isso tem consequências ainda maiores quando buscamos descrever os fenômenos oriundos da atuação do espírito sobre a matéria. Para mim o princípio inteligente (que é a fonte de toda informação dos seres) não é quântico, os que assim pensam ainda precisam demonstrar que é possível levar adiante essa ideia não apenas como uma simples extrapolação; 
  2. Ao se buscar descrever o comportamento da mente, do espírito ou da consciência com base em analogias da física quântica, será que poderemos também exportar diretamente os métodos de pesquisa da microfísica para esses objetos de estudo? A tarefa de criar uma nova ciência não está apenas em encontrar uma nova explicação para certos fatos, mas criar um método de pesquisa que seja consistente, dê resultados práticos e possibilite relacionamento harmônico entre diversas disciplinas correlacionadas. Em suma: é preciso demonstrar a fertilidade heurística das analogias quânticas nos estudos da consciência e psicologia;
  3. A psicologia e até doutrinas espiritualistas de forma geral não precisam de interpretações quânticas para descrever o principal objeto de seus estudos. É possível conceber aplicações e métodos de grande valor prático para essas disciplinas sem que seja necessário se recorrer à analogia com a física quântica. Podemos argumentar que recorrer a analogias da nova física pode prejudicar o desenvolvimento de novas ideias e novos métodos de investigação nesses campos de conhecimento;
O conhecimento completo dos fundamentos da física quântica, ao ponto que seria possível fazer propostas de aplicações inovadoras na pesquisa corrente da física é uma atividade que leva anos de estudo e exige conhecimento nada elementar de álgebra, geometria e cálculo. Será que as propostas de se interpretar o fenômeno da consciência desde o ponto de vista da física quântica chegarão ao ponto de incorporar também a necessidade de se conhecer e aplicar esses métodos de pesquisa? De outra forma, como a ciência do 'psi quântico' irá se desenvolver? Essas são questões que devem ser respondidas de forma satisfatória, antes que se propague uma ideia que pode estar condenada desde seu princípio.

Além das justificativa pouco convincentes do ativista quântico Goswami (Fonseca, 2010), sabemos que é um fenômeno mais de aceitação, da necessidade de se ter o endosso da ciência - que se crê popularmente ser a guardiã da verdade sobre o mundo - do que qualquer outra coisa. Ao aplicar conceitos da microfísica na psicologia humana, estamos diante de um quadro nunca visto antes de desespero intelectual, um quadro sem nenhum respaldo de evidência possível, permitido por uma brecha de interpretação surgida dentro da própria física.

E que brecha é essa?  As forças admitidas cegas que guiam os fenômenos naturais continuam cegas nos fenômenos quânticos. Mas, mesmo assim, por sugerir fortemente que podemos estar enganados com relação à maneira como vemos o mundo, a física quântica fornece um contexto de conhecimento que se coloca fortemente em desacordo com uma visão mecânica e puramente sensorial do mundo. Nossa visão do mundo macroscópica (não quântica) pode ser apenas um epifenômeno sensorial, não estamos vendo a realidade que é manifestamente oculta. É principalmente isso que os 'ativistas quânticos' querem chamar atenção.  Mas duvido que isso seja um caminho prático para se gerar conhecimento útil no que concerne à realidade do Espírito.

Referências
  • (*) Ver a Introdução de "O Livro dos Espíritos", Parte I.
  • Fonseca, A. F. (2010), Uma análise espírita da obra "A Física da alma" de Amit Goswani, O Espiritismo visto pelas áreas de conhecimento atuais, Textos selecionados Ed. por CCDPE-ECM, São Paulo.
  • Goswami, A. (1993) The self-awere universe. New York, Puttnam’s Sons;
  • Goswami, A. (1998). O universo autoconsciente. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos;
  • Jahn R. G., Dunne B. J. (2011), Journal of Scientific Exploration, Vol. 25, No. 2, pp. 339–341.
  • Kugel,W. (2000) Quantum correlation as a potencial detector for Psi-phenomena. Proceeding of 43rd Annual Convention of Parapsychological Association, Frieburg, Alemanha;
  • Zohar, D (1999), O Ser quântico, Editora Best Seller.
Notas


(1) espírito; de acordo com 'O Livro dos Espíritos' (Questão #23) o espírito é o princípio inteligente, necessário para 'espiritualizar' a matéria.  

(2) Os pesquisadores pioneiros em interpretações quânticas para a consciência Robert Jahn e Brenda Dunne alertaram recentemente (Jahn, 2011):
Muitas pessoas envolvidas em áreas de fronteira de estudo científico mostram uma tendência de invocar a nomenclatura da mecânica quântica para aumentar sua credibilidade acadêmica tanto com o público leigo como acadêmico. Embora essa estratégia seja efetiva no esclarecimento de conceitos sutis e podem ser caminhos úteis para se enfatizar a necessidade de perspectivas alternativas à realidade, se levado ao excesso pode se tornar contra produtivo e deve ser cuidadosamente evitado. Primeiro de tudo, existe uma tendência compreensível, se não totalmente legítima, das comunidades das 'ciências exatas' em evitarem a aplicação  do que entendem ser suas conceituações e classificações quânticas a outras áreas menos precisas e rigorosas do conhecimento, especialmente quando tais apropriações são escandalosamente vazias, se não totalmente incorretas.  Em nossa luta continua para o desenvolvimento de um referencial conceitual capaz de acomodar a dimensão subjetiva da realidade, tais tentativas ingênuas parecem ser mais ofensivas do que persuasivas. Mas, além disso, elas tentam obscurecer o fato importante de que a mecânica quântica, como qualquer estrutura teórica, é, em si mesma, uma técnica metafórica para se formalizar e comunicar representações objetivas de observações e interpretações de dados subjetivos. (...)


23 de novembro de 2011

Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia)

"Of course it is happening inside your head, Harry, but why on earth should that mean that it is not real?" J. K. Rowling, em "Harry Potter and the Deathly Hallows"

O Dr. Sam Parnia é conhecido pesquisador da área médica, especialista em cardiologia, com uma grande virtude: tem interesse declarado pelas ocorrências de 'experiências de quase morte' (EQM ou NDE - ver vocabulário abaixo para os termos comumente usados em inglês). Em seu livro 'O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a vida após a morte', ele nos fornece um relato interessante de suas primeiras pesquisas no fascinante mundo das experiências de quem esteve a um passo de se encontrar com a 'morte', mas voltou para nos contar como é.

Embora o subtítulo sugestivo da edição em português 'um estudo sobre a vida após a morte', o livro é, em essência, uma introdução ao tema discorrendo de forma paralela como um relato em primeira pessoa do interesse do autor pelo assunto. A 'vida após a morte' aqui é uma referência ao curto estado em que passam determinados pacientes em coma profundo que descreveram posteriormente NDEs. Do ponto de vista espírita, uma EQM é um evento de desdobramento espontâneo causado pela parada cardíaca que revela de forma independente a natureza dual do ser humano.

Divisão de capítulos

O livro está dividido nos seguintes capítulos: 1 - Experiências de quase morte: da antiguidade aos dias atuais; 2 - Organizando o estudo de Southampton; 3 - Como é morrer?; 4 - Paradoxo científico; 5 - Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência; 6 - Os ingredientes da vida; 7 - Isso é real; 8 - A Horizon; 9 - Implicações para o futuro. 

Faremos alguns comentários breves sobre alguns capítulos, enfatizando o que acreditamos ser mais relevante no que é apresentado pelo Dr. Parnia. O Capítulo 1 é, na verdade, uma introdução ao assunto, revelando que, desde cedo (adolescência), o autor teve grande interesse pelas questões relacionadas à "tanatologia". Há poucos relatos de NDE em 'casos da antiguidade' conforme relatado no Capítulo, exceto por uma citação de Platão (*). Os exemplos históricos de eventos de NDE fornecidos são muito mais recentes.  Mas o Capítulo 1 não deixa de ser interessante, pois o autor faz um resumo das teorias existentes para explicar as NDEs. Antes disso, convém apresentamos grosso modo uma visão cética sobre o assunto:
Todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente. Os cientistas já provaram esse fato, e afirmam que isso tudo não passa de reações químicas, falta de oxigênio ou qualquer outro distúrbio mental que provoca alucinações, sensações de expansão da consciência, e outras variedades dos chamados " fenômenos espirituais; sendo assim, a viagem para fora do corpo poderia ser explicada como um fenômeno mental....também! (retirado da Internet: ver Blog 'Crônicas do Frank')
Para essa crítica, 'todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente'. E as sensações "reais" ocorrem onde? Para muitos que não conseguem ver o problema de forma mais profunda, elas ocorrem no mundo externo... Para sabermos se os cientistas "estão realmente provando isso" convém consultarmos Parnia. Ele relaciona nos seguintes grupos as explicações chamadas 'ortodoxas' para o fenômeno:
  • Teoria das alucinações;
  • Teoria do cérebro moribundo (depleção de oxigênio);
  • Teoria do dióxido de carbono;
  • Teoria das drogas (e seus efeitos);
  • Teoria dos receptores químicos do cérebro;
  • Teoria da epilepsia do lobo temporal;
  • Teorias psicológicas;
Se existisse qualquer consenso aceito para o fenômeno, então não haveria tantas explicações propostas. O conjunto de 'explicações não ortodoxas' (na verdade só existe uma) é chamada por Parnia de 'teorias transcendentais'. Trata-se daquela que postula a continuidade da vida após a morte e que explica as NDEs como relatos de experiências reais passadas pelo indivíduo (NDEr).  Das explicações acima, a mais aceita nos meios acadêmicos (e que constantemente se vê colocada como uma 'explicação' para os fenômenos pela grande mídia) é a 'teoria do cérebro moribundo' que supostamente explica a NDE como efeito de falta de oxigênio. Entretanto, Parnia vai a fundo na questão e pondera:
Do ponto de vista médico, a falta de oxigênio é um problema corriqueiro num hospital. Muitos médicos operando em emergência deparam com o problema frequentemente, particularmente com pacientes cujos pulmões ou corações não estão funcionando muito bem, por exemplo, em casos de asma ou falência cardíaca. Cuidei de mais de 100 pacientes com falta de oxigênio. Quando os níveis caem, os pacientes ficam confusos e bastante agitados. Esse 'estado agudo de confusão', como é conhecido na medicina, é muito diferente da experiência de quase morte. (Parnia, 2008, p. 44)
Parnia argumenta que as 'teorias químicas do cérebro' (todas baseadas em alguma modificação severa nos níveis de substâncias presentes no tecido cerebral, seja oxigênio, drogas, receptores químicos etc) não são boas explicações porque elas não preveem as condições em que os NDE ocorrem. Em outras palavras, eventos de NDE não são observados costumeiramente quando essas condições estão presentes. Experiências de quase morte são eventos singulares, únicos, imprevisíveis, mas com estatística de ocorrência alarmante para serem desprezados. De nossa parte nos perguntamos: será que isso demonstra que os NDE não são produzidos apenas a partir de condições endógenas (e. g. parada cardíaca etc) mas também exigem fatores externos (independentes do indivíduo) para acontecer? Isso certamente explicaria a aleatoriedade dos eventos.

Quanto às 'teorias psicológicas', elas se aglomeram em torno da tese de que as experiências seriam supostamente produzidas pela mente como resposta a uma situação potencialmente traumática. Para lidar com a situação, o cérebro supostamente inventa toda cadeia de eventos relatados pelos paciente que passa por uma NDE. Parnia chama a atenção que muitas teorias simplesmente partem do pressuposto de que os relatos são invenções e alucinações, descartando anomalias observadas durante as ocorrências. 

O Capítulo 2 (Organizando o estudo de Southampton) é uma descrição algo irônica das dificuldades de se estudar esse tipo de fenômeno na prática. Nesse capítulo, Parnia descreve com humor sua tentativa frustrada de iniciar um estudo das EQM por meio de cartazes fixados em salas de UTI no hospital de Southampton. A ideia é que, se as visões de NDErs forem reais (no sentido de se referirem a eventos externos), eles seriam capazes de ver e descrever posteriormente o que está escrito nesses cartazes, fixados de forma que os dizeres se voltam para o teto. A narrativa de Parnia mostra que um estudo considerado minimamente 'científico' exige tratar  fatores que vão muito além daqueles disponíveis quando se manipulam coisas simples de laboratório. Esse é mais um exemplo que mostra que a chamada 'metodologia científica', se exportada ou extrapolada sem modificações e cuidados, nunca irá funcionar de forma satisfatória. A cada fenômeno, um método.

Relatos infantis de EQMs

No Capítulo 4 (paradoxo científico), Parnia descreve vários relatos de crianças (com idade que pode chegar a 6 meses de vida) que passaram por experiências de quase morte. Esses são, para mim, os relatos mais impressionantes.  Em muitos desenhos feitos posteriormente, é possível ver que a criança reproduz a situação de se ver a si própria fora do corpo, em outro corpo e de se encontrar com outros seres ou pessoas, gente 'morta' como elas mesmas relatam posteriormente.
Desenho infantil como um relato de uma EQM. É possível ver como a criança se vê, 
estendida sobre a mesa e flutuando acima dela. Fonte: HubPages.
No que consiste esse 'paradoxo científico' ? O Dr. Richard Mansfield, colega de Parnia, nos conta um caso de um paciente que sofreu parada cardíaca por mais de 20 minutos e permaneceu por 15 minutos totalmente sem assistência de ressuscitação. Segundo Mansfield:
Quando o vi, ele me contou que tinha visto tudo de cima e descreveu em detalhes absolutamente tudo o que aconteceu. Disse tudo o que eu tinha dito e feito, como checar seu pulso, decidir parar com a ressuscitação, sair do quarto, voltar depois, olhar para ele, checar novamente seu pulso e não recomeçar o processo de ressuscitação. Ele contou todos os detalhes de forma correta e precisa, o que era impossível, uma vez que não apenas ele estava sob parada cardíaca, e não possuía pulso durante a parada, mas sequer estava sendo ressuscitado por cerca de 15 minutos depois. O que ele me contou realmente me arrepiou, e até hoje eu nunca havia contado a ninguém porque sabia que não conseguiria explicar...  (Parnia, 2008, p. 103) 
De outra forma, se a consciência é produto da atividade cerebral, como pode alguém ficar privado de oxigênio por quase meia hora e se lembrar de detalhes durante o ocorrido? Se a consciência é simples produto de atividade de circuitos neuronais, como alguém pode ter consciência perfeita de acontecimento quando seus circuitos neuronais sequer tem energia para cumprir os processos primitivos de controle metabólico? O paradoxo está na consciência anômala adquirida pelo paciente quando da parada cardíaca, consciência que se manifesta inclusive como total ciência, visão e audição dos eventos ao redor, produzindo informação verificável. Portanto, na medida em que se consideram muitos detalhes nos eventos de EQM (ou seja, que se estudem a fundo esses fenômenos), descobre-se que elas não são meras alucinações ou invenções do cérebro. 

O Capítulo 5 (Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência) é uma introdução ao conhecimento presente sobre as teorias de funcionamento do cérebro e da mente. O estilo de Parnia é bastante livre e ele consegue passar de uma descrição autobiográfica para técnica em poucas linhas. Nesse capítulo, o autor discorre sobre limitações das teorias convencionais do cérebro e adentra no campo da filosofia e de física quântica, esta última entendida como explicação não convencional. O Capítulo 6 (Os ingredientes da Vida) é uma extensão do capítulo anterior e o autor descreve alguns fundamentos de física quântica que ele entende serem importantes para tentar responder às questões fundamentais. Na verdade, esse capítulo descreve que o que entendemos como 'matéria' não é algo tão 'tangível' como se pode pensar e que é possível, portanto, que no nível mais elementar, a mente seja formada por outro tipo de coisa.

A realidade 

No Capítulo 7 (Isso é real?), Parnia se põe a discutir métodos ou meios pelos quais seria possível separar uma experiência real de algo imaginário. A maior novidade na discussão são as propostas de  metodologias baseadas em imagens de tomografia que permitem observar em tempo real as áreas que são ativadas no cérebro quando um indivíduo está realizando uma atividade ou simplesmente pensando em algo.  Como vimos, a maior parte das teorias ortodoxas para as NDEs parte da hipótese de que as experiências não são reais, mas alucinações. Segundo Parnia:
Isso é uma maneira bem simplista de se olhar um assunto complexo que precisa de mais esclarecimentos e explicações. O que muitos que apoiam este argumento não mencionam é que exatamente as áreas do cérebro envolvidas com alucinações estão igualmente envolvidas com muitas das experiências 'reais' e 'normais' e emoções como o amor, ódio etc. Por conseguinte, simplesmente identificar essas áreas do cérebro como aquelas envolvidas em EQM não pode nos dizer se são experiências reais ou alucinações. (Parnia,  2008, p. 166)
De outra forma: exames de tomografia do cérebro não permitem que se diferenciem experiências 'privadas' das experiências 'públicas'. Os circuitos neuronais envolvido na atividade de se contemplar uma lâmpada acesa são os mesmos de simplesmente imaginar ver uma cena com essa lâmpada acesa. Não parecem existir bases em mapeamento neuronal suficientemente seguras para se caracterizar determinadas experiências como alucinações ou experiências reais. Isso complica bastante os métodos laboratoriais de pesquisa no assunto, já que não é possível diferenciar um caso de outro e todo o assunto, por essa via, parece muito complexo. Mais uma vez estamos diante de um objeto de estudo que escapa aos métodos presentes de pesquisa considerados científicos.

A Horizon (Capítulo 8) é uma fundação criada por Parnia que tem como objetivo apoiar estudos na área de EQM. De certa forma, essa foi a solução encontrada pelo autor para dar vazão à pesquisa na área, ainda incipiente ou pouco tolerada pelo meio acadêmico convencional. Há vários projetos em andamento e é bom sempre verificarmos esse link para sabermos das novidades na fascinante área da pesquisa das experiências de quase morte. 

Finalmente, no último capítulo (9 -Implicações para o futuro), Parnia  faz um resumo do que apresentou anteriormente, traça planos para o futuro e discute as consequências para  a humanidade de uma aceitação global do pós-vida a partir de evidências fornecidas pelas EQMs. Não seria apenas uma nova ciência, mas uma revolução como nunca antes vista:
Isto levaria a um estudo objetivo do que comumente é considerado assunto religioso e filosófico e, portanto, terminando muitos desacordos e levando, por conseguinte, a uma sociedade muito mais tolerante. Da mesma forma que a ciência revolucionou nossa compreensão do mundo externo, ela também poderia revolucionar nosso entendimento do mundo subjetivo dentro de nós.
De certa forma, isso já está acontecendo. Em síntese, o livro de Parnia é bastante elucidativo, trazendo discussões e contra argumentos ao ponto de vista cético padrão de considerar as EQM como meras alucinações. Certamente, as experiências de quase morte são uma via alternativa através da qual podemos acessar parte da realidade maior em que estamos envolvidos. Para a imensa maioria dos que passaram por essa experiência, hoje não há mais dúvidas: elas existem e são reais.

(*) A citação está no livro 'A República', Livro X, última parte onde Platão narra a fábula de Er. Parnia não fornece a referência completa. Ver o blog  Rotas Filosóficas.
  
Dados sobre o livro

O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a Vida após a Morte.
Autor: Sam Parnia (2008).
Ed. nacional com tradução de Emanuel Mendes Rodrigues.
ISBN: 978-85-7635-360-7
Número de páginas: 246.
Editora Larrouse, São Paulo, SP.

Vocabulário

NDE (inglês) - 'Near Death Experiences'  ou experiências de quase morte (EQM em português) são relatos de vítimas de coma ou 'instâncias de quase morte' (em geral sobreviventes de paradas cardíacas) que mantem entre si determinadas características comuns. Dentre as mais marcantes está a de separação do corpo, sensação de grande paz, presença de pessoas já falecidas, visualização de uma luz ou tunel de onde retornam para continuar a presente existência. A experiência é descrita como não traumática e de grande impacto na vida do paciente. 
NDEr (inglês): É o indivíduo que passa por uma EQM.

Outros artigos de Parnia e colaboradores (ver www.horizonresearch.org)
  • Parnia S, Fenwick P, Near Death Experiences in Cardiac Arrest: Visions of a dying brain or visions of a new science of consiousness. Resuscitation 2002 Jan 52, 5-11;
  • Parnia S, Fenwick P: Do reports of consciousness during cardiac arrest hold the key to discovering the nature of consciousness? Medical Hypothesis 2007;
  • Parnia S, Waller D, Yeates R, Fenwick P, A qualitative and quantitative study of the incidence, features and aetiology of near death experiences in cardiac arrest survivors. Resuscitation, Feb 2001 48, 149-156.
Outros links

Outra página de referência (em inglês) é a da Near Death Experience Research Foundation.