24 de abril de 2011

Crenças Céticas XIV - "Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias."


"Pessoalmente, ficaria muito satisfeito se houvesse vida após a morte, especialmente se ela me permitisse continuar a aprender sobre este e outros mundos, se ela me desse a chance de descobrir como a história aconteceu". C. Sagan

Embora a sua aparência lógica, inexiste frase mais incongruente do que esta que serve de título deste post, atribuída ao astrônomo Carl Sagan Carl Sagan (1934-1996), membro fundador de uma importante seita de céticos. Por isso mesmo, ela veio a se constituir em um dos pilares da crença cética. (1)

C. Sagan foi bem meu herói de juventude: quem não se lembra da série 'Cosmos' no começo da década de 1980, com suas primeiras simulações computacionais, mostrando um viajante em suas viagens pelo Universo, de uma maneira acessível ao grande público? A série era primorosa e, mesmo hoje em dia, a maneira com que ele explica cada tópico em Astronomia deixa saudades. Mais  tarde, descobri que Sagan errava em alguns pontos com relação à história da ciência, o que é de pouca importância comparada a sua postura de defensor infatigável da ciência (lê-se academia) utilizando, entretanto, argumentação algo equivocada, que o levaria a tirar conclusões em contradição com sua visão materialista de ver o mundo. 

Sagan pretendia fazer algo muito importante: livrar a sociedade das trevas da ignorância medieval, do irracionalismo cristão que condenou tantos mártires considerados hereges à fogueira. Nisso talvez ele estivesse certo. Por isso, Sagan chega à conclusões belíssimas com relação a nossa verdadeira posição no Cosmos: no auge da gerra fria fez uso de uma foto tirada por uma das Voyager mostrando tudo aquilo que somos. Nada mais que um grão de areia perdido na imensidão do Cosmos.

'Pale Blue dot': foto da Terra de um ponto muito distante no espaço.
Para C. Sagan, o uso dessas imagens poderia demonstrar ao público
a verdadeira dimensão das disputas e pontos de vista humanos.

Sobre tal foto escreveu ('Pálido Ponto Azul'):
Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos. 
Carl Sagan - (de “Um pálido ponto azul”, 1994)
Entretanto, Sagan frequentemente afirmava que a sociedade, que passou a depender da Ciência e da tecnologia, sem saber o que isso significava de fato, deveria arraigar-se ao cientificismo que, segundo ele, era a única coisa que poderia salvar a Terra e a sociedade, tanto de uma hecatombe nuclear como num retorno à Idade Média e de suas fogueiras. Desta forma, Sagan fazia da ciência uma plataforma de pregação de suas crenças céticas e se voltava contra qualquer coisa que não se adequasse à visão corrente resultante de interpretações das teorias científicas, algo que é estranho à atividade científica em si.

Não é papel da Ciência fazer pregações sobre como a sociedade deva se comportar.  A Ciência deve ser sempre neutra em sua visão do mundo porque, da humildade resultante de quão pouco sabemos, apesar de termos progredido tanto em conhecimento, vem a conclusão que inexiste limites para o que podemos aprender com o Cosmos. Encontra-se assim uma contradição no pensamento de Sagan: enquanto afirmava categoricamente que o Universo era infinito em muitas possibilidades, ele negava veementemente a possibilidade de muitos outros fatos que ele considerava crenças pseudocientíficas. Para Sagan, o Cosmos era tudo o que existia e era ilimitado, mas não tanto assim a ponto de validar determinadas crenças que entravam em conflito com as suas próprias. 

Isso fica bem claro na sua visão sobre a Astrologia: dizia que 'os jornais do mundo trazem todas as semanas horóscopos, mas dificilmente notícias sobre o Universo' (isso era uma verdade na década de 1980, mas hoje, com a internet, jornais dedicam muitas reportagens à pesquisa científica). Pretendia que as pessoas comuns, que não escolhem carreiras científicas em suas vidas, tivessem pela Ciência o mesmo interesse que tem por Astrologia. Acontece que essa é uma expectativa ingênua: a Ciência nada tem a dizer sobre o sentimento ou temores das pessoas, enquanto que as colunas astrológicas aparentemente tem (mesmo que sejam na forma de frases auto evidentes). A Ciência jamais será tão popular quanto novelas ou histórias românticas, porque o ser humano tem sentimentos, expectativas, temores e esperanças para as quais a Ciência - principalmente aquela de C. Sagan -  jamais conseguirá dar respostas atraentes.

Em algum ponto de sua pregação cética nasceu o slogan sobre as 'afirmações extraordinárias e das evidências extraordinárias' (Ver nota (1)). Embora pareça uma frase lógica, tão lógica quanto: 'pessoas felizes tem vidas felizes' ou 'planetas rochosos tem densidades elevadas' (para usar um exemplo mais ao gosto de C. Sagan), trata-se de uma falácia lógica (non sequitur) que não tem base alguma na história da ciência. Basta que analisemos alguns exemplos para percebermos sua precariedade, o que ajuda a esclarecer um pouco como se dá o processo das descobertas científicas.

Primeiro há o problema com a definição de 'evidência extraordinária'. O que é uma 'evidência extraordinária'? Uma pessoa comum, tropeçando com uma pedra no chão, dificilmente reconhecerá nela qualquer sinal de um fóssil antigo, fato que um bom paleontólogo será capaz de fazer. Ou seja, uma 'evidência extraordinária' só é realmente em relação a um 'referencial de conhecimento'. Não há evidências extraordinárias de qualquer tipo para quem não acredita em nada ou não sabe nada. No âmbito da Ciência, uma evidência desse tipo só é verdadeiramente 'extraordinária' desde um ponto de vista muito especial e privilegiado, o ponto de vista de uma teoria particular. Na ausência desta, inexiste evidência alguma - ainda que a Natureza nos bombardeie diariamente com vários fenômenos.

Um exemplo interessante (embora distante de nossa realidade diária) foi a 'descoberta' das partículas elementares chamadas neutrinos. Elas foram 'postuladas', ou seja, imaginadas como existentes para explicar certas anomalias em  processos de desintegração radioativa, em particular o decaimento beta. Entretanto, nenhuma 'evidência extraordinária' foi encontrada na condições exigidas por muitos crentes céticos, pois os neutrinos não interagem com absolutamente nada, assim não podem ser detectados diretamente. A menos que tenhamos muitos bilhões de dólares para construir um detector de neutrinos (que consegue isso por métodos indiretos e de forma estatística), jamais teremos qualquer evidência de sua existência.
Pelo menos em física de altas energias,  'evidências extraordinárias
exigem orçamentos extraordinários'. A foto mostra um detector
de neutrinos (interior do LSND ou detector de neutrinos por
cintilação líquida em Los Alamos, USA).
O mais certo é dizer que, no estágio atual de desenvolvimento das Ciências da matéria, 'evidências extraordinárias exigem orçamentos extraordinários', tal é a quantidade de dinheiro necessária para que determinadas 'afirmações extraordinárias' tenham qualquer chance de serem consideradas. Céticos dogmáticos não se dão conta disso e pretendem generalizar a regra para todos os fenômenos da Natureza. E, mais importante ainda, não podemos deixar de reconhecer o papel fundamental das teorias que devem ser aceitas e trabalhadas. Sem elas é impossível desenhar ou projetar qualquer equipamento para tornar visíveis determinadas evidências. Assim, a Ciência verdadeira está longe de ser uma atividade imparcial, pelo menos no que diz respeito à crença que se deve depositar na validade de certas conjecturas a respeito do Cosmos.

Portanto, a frase de Sagan é retórica elegante mas sem fundamento. As contradições com diversas descobertas científicas são tão grandes que deixamos ao leitor a tarefa de encontrar outros exemplos na história da ciência.

Mesmo com essas constatações, não podemos deixar de admirar o brilhantismo e o esclarecimento que Carl Sagan prestou em seu papel de divulgador e como astrônomo. A maioria dos que pretendem seguir seus passos hoje, o fazem exagerando ainda mais no ceticismo e são quase todos desprovidos de sua elegante retórica. Sem a reverência que Sagan tinha pelo imensidade do Cosmos, pretendem ditar normas sobre o que é 'científico' ou não na visão deles, e seu argumento é usado para refutar o que céticos chamam de 'claims' de muitos fenômenos, que devem ser 'provados rigorosamente', o que inclui: exigências de farta repetibilidade (como se na Natureza não houvessem fenômenos estocásticos e raros), 'objetividade' e outros quesitos. 

Notas

(1) Segundo o site 'The Anomalist', a frase teria sido criada por Marcelo Truzzi (1935-2003). Junto com P. Kurtz, Truzzi fundou o "Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal" (CSICOP), tendo se arrependido disso posteriormente:
"I might note here that it was Marcello, not Carl Sagan, who coined the often-misattributed maxim "Extraordinary claims demand extraordinary evidence." In recent years Marcello had come to conclude that the phrase was a non sequitur, meaningless and question-begging, and he intended to write a debunking of his own words. Sad to say, he never got around to it." 

15 de abril de 2011

Crenças Céticas XIII: 'O Porvir e o Nada'.

Wellington Menezes de Oliveira, o assassino do Realengo, explica porque cometeria o seu crime.
Todos somos livres na escolha das nossas crenças; podemos crer em alguma coisa ou em nada crer, mas aqueles que procuram fazer prevalecer no espírito das massas, da juventude principalmente, a negação do futuro, apoiando-se na autoridade do seu saber e no ascendente da sua posição, semeiam na sociedade germens de perturbação e dissolução, incorrendo em grande responsabilidade. (A. Kardec em 'O Céu e o Inferno')

Nossa época apresenta-se como o apogeu da cultura científica e da pobreza filosófica, fruto de doutrinas negativas e niilistas adotadas de forma conveniente após a separação entre o Estado e a Religião estabelecida, que se provou ser remédio mais fulminante do que a própria doença. Por isso, alguns indivíduos, portadores de deficiências ainda mais profundas na compreensão que deve existir entre seres que se reconhecem iguais, tornam-se casos alarmantes a demonstrar conduta de visível decadência em todos os sentidos.

Por que isso aconteçe? Um pouco de reflexão, desde que pautada na visão espírita mais dilatada da razão e da existência dos seres, nos mostra facilmente o motivo.

Em primeiro lugar, é importante enunciar verdades à guiza de princípios: nossa sociedade vive fase de pesadas angústias sociais, fruto do desabamento de suas estruturas éticas e morais. Isso acontece porque, em uma sociedade onde não existe esperança no porvir, na vida futura, não poderá haver nenhuma tipo esperança. 

De uma lado temos a Religião estabelecida que se tornou motivo de riso e deboche, uma vez que as práticas  não correspondem aos princípios pregados. De outro, a intelectualidade que se incumbe hoje de decisões dos Governos e organizações civis, perdida em interpretações apressadas da Ciência, se satisfaz com crenças céticas e pessimistas diante das quais a ética torna-se apenas uma questão de opinião pessoal.

Diante desse quadro, para determinadas mentes enfermiças que, ao nascerem, se reconhecem diante de um mundo cuja razão é desconhecida, o convívio harmonioso se torna uma necessidade. Se o mundo não tem sentido, então ao menos viveremos com algum sentido sendo aceitos e compreendidos por nossos semelhantes.

Mas o que fazem nossos semelhantes? Vivem conforme a imensa maioria, perdidos nesta mesma sociedade cujas crenças exclusivistas determinam gozar ao máximo a existência presente que, afinal, tem como fim último o vazio eterno. 

Nada nos espanta ver então o surgimento de grupos que sistematicamente desprezam, caluniam e atacam outros considerados diferentes ou inferiores. E nada, governo, sociedade ou pessoa alguma poderá detê-los, afinal, como não existe vida futura, inexiste justiça. É em vão que se invoca a justiça dos Governos, muito tempo depois que a oportunidade de uma educação baseada na verdadeira esperança foi perdida. 

Em vão tentarão reformular leis, convencer ou mudar uma sociedade que não vê sentido em nada além. Qual será a diferença entre matar uma mosca e matar seu semelhante? Tal é a questão que se coloca  para quem aprendeu a relativizar seus sentimentos em um mundo sem direção.  

Mais de um século nos separam hoje desde que Allan Kardec escreveu as palavras abaixo  (Em 'O Céu e o Inferno') que se aplicam perfeitamente aos dias que vivemos:
Suponhamos que, por uma circunstância qualquer, todo um povo adquire a certeza de que em oito dias, num mês, ou num ano será aniquilado; que nem um só indivíduo lhe sobreviverá, como de sua existência não sobreviverá nem um só traço: Que fará esse povo condenado, aguardando o extermínio?
Trabalhará pela causa do seu progresso, da sua instrução? Entregar-se-á ao trabalho para viver? Respeitará os direitos, os bens, a vida do seu semelhante? Submeter-se-á a qualquer lei ou autoridade por mais legitima que seja, mesmo a paterna? Haverá para ele, nessa emergência, qualquer dever? 
Certo que não. Pois bem! O que se não dá coletivamente, a doutrina do niilismo realiza todos os dias isoladamente, individualmente.
E se as conseqüências não são desastrosas tanto quanto poderiam ser, é, em primeiro lugar, porque na maioria dos incrédulos há mais jactância que verdadeira incredulidade, mais dúvida que convicção – possuindo eles mais medo do nada do que pretendem aparentar – o qualificativo de espíritos fortes lisonjeia-lhes a vaidade e o amor-próprio; em segundo lugar, porque os incrédulos absolutos se contam por ínfima minoria, e sentem a seu pesar os ascendentes da opinião contrária, mantidos por uma força material.
Torne-se, não obstante, absoluta a incredulidade da maioria, e a sociedade entrará em dissolução. Eis ao que tende a propagação da doutrina niilista. (Grifos nossos)
Kardec explica aqui porque nem todos se dissolvem na falta de ética resultante da crença niilista: não é porque esta explicação seja inapropriada, mas porque a dúvida e a falta de convicção norteia a imensa maioria que, por medo, faz de forma automática o que se aprendeu por imitação a fazer. Seguem hebetados a costumes e modismos, sem nenhum compromisso com o futuro. Kardec previu, entretanto, que haveria um aumento do relaxamento moral, na medida que o niilismo ganhasse força na sociedade. É por isso que hoje vemos, todos os dias, notícias de crimes escabrosos que ocorrem aqui e ali, quando então o medo e a dúvida são substituídos pela violência que sacrifica sem piedade suas vítimas. Também Leon Denis em 'O problema do Ser, do Destino e da Dor' adverte:
Em toda parte a crise existe, inquietante. Sob a superfície brilhante de uma civilização apurada esconde-se um mal-estar profundo. A irritação cresce nas classes sociais. O conflito dos interesses e a luta pela vida tornam-se, dia a dia, mais ásperos. O sentimento do dever se tem enfraquecido na consciência popular, a tal ponto que muitos homens já não sabem onde está o dever. A lei do número, isto é, da força cega, domina mais do que nunca. Pérfidos retóricos dedicam-se a desencadear as paixões, os maus instintos da multidão, a propagar teorias nocivas, às vezes criminosas. Depois, quando a maré sobe e sopra o vento de tempestade, eles afastam de si toda a responsabilidade.
(...) A origem de todos os nossos males está em nossa falta de saber e em nossa inferioridade moral. Toda a sociedade permanecerá débil, impotente e dividida durante todo o tempo em que a desconfiança, a dúvida, o egoísmo, a inveja e o ódio a dominarem. Não se transforma uma sociedade por meio de leis. As leis e as instituições nada são sem os costumes, sem as crenças elevadas. Quaisquer que sejam a forma política e a legislação de um povo, se ele possui bons costumes e fortes convicções, será sempre mais feliz e poderoso do que outro povo de moralidade inferior.
Em vão alguns pigmeus morais afirmarão que o niilismo de nossa sociedade nada tem a ver com os problemas de polícia. Outros tratarão de culpar o Estado pela falta de segurança e pelo mal estar geral devido a crise econômica. Ainda outros, religiosos dogmáticos apresentarão as portas do inferno eterno aqueles que não se enquadram em suas doutrinas repletas de idéias preconcebidas e interpretações errôneas.

O problema que temos que enfrentar é muito mais profundo e exige tratamento das causas e não ação de paliativos. A certeza na Imortalidade e a noção de uma Justiça Natural preexistente a tudo deverá ser a base para uma nova educação, baseada na aceitação, compreensão e múta estima - calcada em exemplos e não em mera retórica - que deverá ser ministrada a nossos filhos e descendentes a fim de que possamos viver realmente em paz.