19 de março de 2011

Cartas Psicografadas (3/3) - Pragmática e intenção em psicografias de Chico Xavier.

Esta é a 3a. e última parte da sequência de posts deste assunto.

Vá para a 1a. Parte.
Esta é a 3.a Parte.

Uma vez que se assuma um modelo de comunicação simples, qualquer análise preliminar da mensagem irá falhar em considerar aspectos que poderiam ser tratados por um modelo mais sofisticado (Akmajian, 2010; Bach, 1979). Informação, vista como um fluxo do emissor ao receptor, pode apenas dar conta de aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos, isto é, sinais que podem ser facilmente ‘copiados e colados’, implicando a possibilidade de que isso tenha ocorrido de fato. Entretanto, mesmo tais aspectos morfológicos, sintáticos e semânticos tornam-se um desafio diante de mensagens escritas em línguas estrangeiras.

Seria assim muito mais fácil explicar a capacidade paranormal acima em um arcabouço teórico que não considerasse problemas de pragmática tais como: a presença de expressões linguisticamente ambíguas, mensagens contendo informação sobre coisas particulares referenciadas (isto é, coisas que somente o recipiente tem conhecimento para ‘completar’ a referência), transmissão de intenção, o assim chamado ‘problema da subdeterminação de intenção comunicativa’ (Bach, 1979), presença de conteúdo através de expressões semanticamente mal definidas (comunicação não literal) e, finalmente, o problema dos ‘atos não comunicativos’ – o objetivo da mensagem não é comunicar, mas produzir um efeito no recipiente. Em face disso, as seguintes observações são pertinentes à carta em análise (ver post anterior) 

1. Referência ao nome que Patrick chamava a sua mãe privadamente (seu nome correto era Christiane e não o referenciado);
2. Referência ao nome da cidade de onde Patrick deveria ter retornado. O acidente foi a 500 metros da residência de férias da família em Itaipava/RJ. A mãe confirmou ter afirmado ao médium que o acidente ocorrera no Rio de Janeiro (estado);
3. Referência não literal. O emissor não retornou de nenhuma guerra, mas utilizou essa expressão para se referir a sua situação anterior;
4. Referência à irmã residente à época na França;
5. Referência à namorada;
6. Referência à avó materna residente à época na França;
7. Referência ao avô paterno residente à época na França;
8. O emissor se refere aqui a preocupações de natureza privada de sua mãe de alguém ter sido responsável por sua morte;
9. Referência à bisavó materna (Margeritte Yvetot), falecida em França em 1974;
10. Referência ao apego da mãe do emissor aos objetos pessoais de Patrick;
11. Referência ao pai;
12. O emissor pede a sua mãe que perdoe sua irmã por uma discussão ocorrida ao telefone após a morte de Patrick. O fato era de conhecimento privado;
13. Patrick era muito sensível à natureza e gostava de animais.

Tais observações foram feitas pelos pais de Patrick depois de receber a carta e mostram claramente a existência de uma ‘decodificação’, devido à existência de intenções, objetivos, crenças e desejos por parte do emissor. Sabe-se que qualquer modelo satisfatório de comunicação deve levar em conta o contexto e a inferência (Bach, 1979), simplesmente porque é muito difícil caracterizar ou acessar elementos que são reconhecidamente privados no processo de comunicação humana. Primeiro é preciso reconhecer que, para que a estratégia do emissor dê certo, um conjunto de crenças compartilhadas entre ele e seu receptor deve existir (Capone, 2006) e que tal conjunto não está disponível ao médium antes da ocorrência do fenômeno psicográfico. Não se trata, assim, simplesmente de se transmitir e receber símbolos linguísticos o que está envolvido em um processo de psicografia. Dada a quantidade e frequência de ocorrências pragmáticas nas cartas produzidas por C. Xavier, é difícil explicar tal fenômeno usando o ‘senso comum’ ou abordagens ‘naturalistas’. Além disso, a situação torna-se mais complexa diante de mensagens escritas em outras línguas, uma vez que elementos léxicos, sintáticos e semânticos acrescentam uma quantidade grande de informação linguística. Portanto, é razoável esperar que teorias e análises linguísticas tenham um papel importante na defesa da idéia da imortalidade da alma em muitas composições psicográficas (Beischel, 2009; Rock, 2008b). Por exemplo, um aspecto interessante que se vê nas mensagens de C. Xavier é o aumento da letra, como se mão do médium estivesse sendo assistida na produção das mensagens. 

Acreditamos que um novo campo de estudos está aberto com a análise das composições 'anômalas' de C. Xavier. Isso também é facilitado uma vez que muitos familiares podem ser contatados para fornecer detalhes adicionais sobre as cartas. A quantidade e qualidade de material produzido por C. Xavier é pouco conhecido fora do Brasil porque está disponível em sua maior parte em Português. Traduções são, portanto, necessárias. Esperamos poder preencher essa lacuna no futuro.

Agradecimentos

Agradeço a Ana C. Xavier (Medical University of South California/USA) por me ajudar na tradução para o inglês da mensagem de Patrick.

Referências.

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11 de março de 2011

Cartas Psicografadas (2/3) - Pragmática e intenção em psicografias de Chico Xavier.


Segunda parte da tradução do artigo original publicado na revista 'Paranthropology', 2 (1), 2011. p. 35-47. As referências serão apresentadas no parte final depois da última postagem (número 3).


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Esta é a 2.a Parte.
Vá para a 3.a Parte.


Nesse contexto, a figura mais importante do movimento espiritualista brasileiro é Franciso Cândido Xavier (1910-2002), também conhecido como Chico Xavier. Tendo passado por uma infância não privilegiada, publicou mais de 400 livros entre 1925 e 2001, além de ter produzido milhares de cartas de conteúdo paranormal. Entre seus livros, trabalhos poéticos e literários de autores portugueses e brasileiros do final do século 19 devem ser destacados (Xavier, 1935; Xavier, 1938), implicando em outra dimensão na análise do fenômeno mediúnico, o da estética (Rocha, 2001). Limitações de espaço nos impedem de discutir aqui a questão da poesia nos trabalhos mediúnicos de Chico Xavier. Sua vida foi tema de um filme recente (Filho, 2010; Grumback, 1910),  mas, mesmo assim, suas obras são pouco conhecidas fora do Brasil.

Aqui apresentamos uma tradução não publicada em inglês (1) de uma mensagem psicografada por C. Xavier atribuída a um recém-falecido (Arantes, 2008a). O objetivo dessas cartas era dar consolo espiritual a pais e parentes que o procuravam por informações de seus filhos e parentes falecidos. Algumas considerações sobre o ambiente e o contexto em que a mensagem foi obtidas seguem:
  1. De acordo com regras de conduta aceitas no Movimento Espírita de orientação Kardecista, destacamos o caráter voluntário dos trabalhos produzidos, isto é, ausência de quaisquer taxas para a realização das sessões. Os direitos autorais de todos os livros psicografados foram doados pelo autor a trabalhos de assistência social e outras obras;
  2. A mediunidade de C. Xavier foi similar em grau e sensibilidade ao da Sra. Piper (Piper, 1929; Braude, 2003c). Ele era capaz de produzir manifestações tanto de caráter físico como inteligente, com preferência por psicografias. 
  3. Sua mediunidade pode ser dividida em várias fases. A que trataremos aqui que se inicia em 1960 foi caracterizada pela visita de familiares buscando informações por parentes recém-falecidos. Uma pequena parte dessas cartas foi publicada (Arantes, 1981; 1982a; 1982b;1984a; 1984b; 1986; 1988;1990; 1998;2008a).
  4. O ambiente em que se encontrava o médium durante essa fase era composto por pessoas de uma ampla variedade de classes sociais e crenças religiosas, a maioria inconsciente de mecanismos envolvidos na produção dos fenômenos. Devido ao caráter excepcional das manifestações, grande quantidade de pessoas o procuravam em busca de informação gratuitas de seus parentes, e faziam isso com pouco ou nenhum contato anterior com o médium. 
  5. A maior parte das cartas eram produzidas em Português, que era o idioma nativo do médium. Mas comunicações em outros idiomas foram obtidos (p. ex., italiano, (Perandrea, 1991) e inglês).
  6. A assinatura do emissário era reproduzida de alguma forma no final de várias cartas. Tal fato permitiu a realização de estudos comparativos (Perandrea, 1991) usando análise grafoscópica.
  7. As cartas não eram obtidas de forma instantânea. Em alguns casos, eram obtidas em uma primeira visita, em outros um intervalo de várias semanas ou meses era necessário.
  8. Em muitos casos, mais de uma carta era obtida.
  9. Nunca tendo encontrado o médium antes, parentes confirmaram que eles frequentemente eram chamados por seus nomes próprios por ele em uma primeira visita. Nome de parentes falecidos eram também citados, alguns não reconhecidos inicialmente pelos familiares, mas apenas após buscas ou pesquisas subsequentes.
É reconhecidamente difícil registrar e confirmar subsequentemente a informação em comunicações de natureza psíquica (Braude, 2003c). Entretanto, as cartas de C. Xavier representam uma ocasião ímpar por se dirigirem a parentes que podem, eles mesmos, fornecer 'elementos de identificação'. Por exemplo, muitas cartas eram assinadas e, no exemplo abaixo, o emissor (falecido aos 20 anos de idade) deixou uma assinatura que, de acordo com sua mãe, era semelhante a de seu filho aos 8 anos de idade.

Entretanto, para todos os pais que se entrevistaram, a evidência autoral vem da competência pragmática exposta nas cartas que revelam informação que somente era conhecida por por um conjunto restrito de pessoas. Em muitas ocasiões as cartas revelam um conhecimento tácito de certas situações que era difícil de se obter por meios normais. De particular importância é a citação de nomes de personalidades falecidas cujos nomes exigiram posterior confirmação para sua validação (em muitos caso, nomes estrangeiros). Mais incrível ainda é o fato do emissor revelar conhecimento de sentimentos privados experimentados por pais e parentes anteriormente a emissão da mensagem.

A carta abaixo é um exemplo de comunicação psicográfica por C. Xavier obtida em Uberaba/MG, no dia 1 de Janeiro de 1979 assinada por G. Patrick Castelnaud (24/1/1958-11/3/1978) que faleceu de um acidente de carro. Sua mãe recebeu esta carta após uma segunda visita à Uberaba, localizada a 800km do lugar do acidente e residência da família.

Mamãe Christine (1), abençoe-me. 

Tudo bem. Chegada em paz. Sabe o que sucedeu? Realmente não regressei de Itaipava (2). Retornei da guerra. Felizmente. 

Diga ao meu pai, a nossa Chantal (4) e a nossa Ninon (5) que prossigo. Tudo prossegue. É a vida de que se cogita ainda mesmo quando nossas capas físicas se estendam estraçalhadas nos acientes. 

Ontem, o campo da resistência e luta. Agora, é a região de pas reconquistada. 

Avise à vovó ‘chéri gand-mère’ Fernanda (6) e ao vovô Mogliocco (7) que estou bem. De uma paisagem bonita como a nossa, me transferi para outra. Graças a Deus, a guerra para mim terminou. 

Aqui tudo mamãe Christine, foi reajuste. Não culpem a ninguém(8). Minha outra avó Margueritte (9) está me ensinando a compreender. Ainda vacilo nas lições. Mas o importante é que estou na escola. 

Mãezinha, lance tudo o que é recordações de infância no esquecimento (10). Papi Gerard (11) está certo, somos todos irmãos. Não existem adversários. Existem os filhos de Deus e todos nos pertencemos uns aos outros. 

Console a querida Chantal(12). A vida pede compreensão e não entende qualquer animosidade de nossa parte contra ela.

Tudo é belo na obra de Deus(13). O dia e a noite, a alegria e o sofrimento, o barco e a estrela, e até o próprio mal existe por bem, ainda interpretado para a essência positiva que nos transforma as dificuldades em bênçãos.

Mãezinha, esta carta é um alô simplesmente. Vai alô iluminado de beijos; são todos seus. Se possível entregue alguns para Chantal e Ninon , e receba com meu pai Gerard todo o coração de seu filho, sempre seu filho do coração.

Gerard Patrick Costelnaud.

Na terceira e última parte analisaremos o conteúdo da mensagem e traremos a lista de referências.

Notas
1 - Esta é uma tradução para o português do artigo originalmente em inglês. Obviamente, a mensagem reproduzida é a original.

5 de março de 2011

Cartas Psicografadas (1/3) - Pragmática e intenção em psicografias de Chico Xavier.


Primeira parte da tradução do artigo original publicado na revista 'Paranthropology', 2 (1), 2011. p. 35-47. As referências serão apresentadas no parte final depois da última postagem (número 3).
Minha intenção aqui é apresentar a mediunidade de Chico Xavier em psicografias de recém falecidos. Seria interessante explicar os mecanismos envolvidos nessa mediunidade, saber como a mente do médium pode adquirir informação oculta que é tão abundante nessas psicografias, sobre quais são as condições e exigências envolvidas no fenômeno, sobre como a informação pode ser obtida dessa forma etc. Essa é uma tarefa muito difícil e busquei inicialmente invocar a teoria da comunicação (Griffin, 1987), assumindo que a informação está em algum lugar e que muitos detalhes do processo são bem compreendidos. Minha tentativa inicial mostrou a precariedade dessa abordagem. Além de ser um fenômeno humano, cada caso de mediunidade é único e tem suas próprias peculiaridades, requisitando estudo dedicado. Tal característica não permite enquadrar a mediunidade em categorias bem definidas de fenômenos o que parece ser importante numa fase pré-científica de uma disciplina.

Espero também que tal narrativa despretenciosa possa motivar outros estudos de caráter antropológico (Koyama, 2006) ao redor da figura de Chico Xavier e sua obra, que é pouco conhecida fora do Brasil. Uma vez que o ponto de vista cético é bem divulgado, não procurarei fazer qualquer tentativa de teorização, pois minha intenção aqui é descrever o fenômeno como ele se manifesta, junto com alguma informação sobre o contexto em que eles foram produzidos.

A moderna teoria da informação (Shannon, 1949) tem como objetivo fornecer um modelo para o processo de comunicação entre duas entidades - emissor e receptor - no qual influências de ruído e outras interferências na transferência de mensagens são levadas em consideração. Para ser viável, o processo exige uma fonte de informação (emissor ou remetente), uma mensagem (codificada usando um protocolo conhecido tanto pelo emissor como pelo receptor - a linguagem) e um alvo (destinatário, receptor). Além disso, a mensagem é transferida do remetente ao destinatário através de um meio. Tanto a linguística como a semiologia (Cobley, 2001) tem como objetivo o estudo da comunicação, fornecendo teorias mais adequadas para a compreensão de sinais e outros aspectos relacionados ao processo de comunicação, além daqueles que são explorados mecanicamente na abordagem de Shannon e outros (Bosco, 2006; Rigotti, 2006).

Dada uma mensagem, podemos nos interessar particularmente pelos elementos chave que resultam na identificação da verdadeira natureza da fonte de informação. Sabe-se (Chaski, 2000; Kopka, 2004) que, dependendo do meio usado para a transmissão, a mensagem pode conter elementos suficientes que permitem a identificação do emissor, um assunto para a recém criada línguística forense (Chaski, 2000; Olsson, 2008). Tomemos, por exemplo, a tarefa de identificar a autoria de uma carta escrita por um amigo que se mudou recentemente para a Austrália. Nela eu encontro sinais gráficos, morfológicos, sintáticos, semânticos e outras estruturas pragmáticas (Akmajian, 2001) que me permitem identificar facilmente meu amigo como seu autor.

No nível mais elevado ou da pragmática (Cutting, 2002), além do significado aparente, a mensagem é composta de tal forma que somente o destinatário tem capacidade de compreender realmente seu conteúdo. Por exemplo, meu amigo, sabendo de meu pouco interesse em visitar a Austrália, descreve em cores vivas as belas paisagens daquele continente, a fim de atualizar minhas impressões e mudar minha opinião sobre ir visitá-lo na Austrália. Se outra pessoa ler suas descrições, ele provavelmente não conhecerá sua verdadeira intenção tão só pela leitura das frases. Embora a morfologia, a sintaxe e a semântica sejam as mesmas para todos, isto é, elas são publicamente disponíveis, a pragmática é um aspecto privado do protocolo de comunicação. Em todo processo de comunicação desse tipo, competência pragmática (capacidade do autor em passar informação de conteúdo privado ao seu destinatário) é um fator importante para a identificação da fonte da mensagem (Borg, 2006).

Embora fenômenos psíquicos apresentem-se como anomalias para o pensamento científico contemporâneo e como fraudes para grupos céticos (aqui fazemos distinção entre ciência e ceticismo), eles sempre se manifestaram prima facie como processos de comunicação (Rock, 2008a; Beischel, 2007). Esse aspecto tem sido repetidamente desconsiderado por pesquisadores dos fenômenos psíquicos (Beischel, 2009) que não aceitam a ideia de que informação de caráter psíquico possa ser gerada fora da mente do médium (Braude, 2003a; Wales, 2009). Parece, então, razoável usar a semiologia e a linguística (Wales, 2009) para reafirmar ou não a autoria de muita informação de natureza psíquica de qualidade em uma tentativa de se atestar a natureza da fonte.

Entre as variedades de processos inteligentes de natureza psíquica (em contraposição às manifestações físicas), a psicografia (Oxon, 1848; Braude, 2003b) apresenta-se como uma evolução de formas primitivas e mecânicas de comunicação tais como a tiptologia e o uso de pranchetas (Kardec, 2000b). Composições produzidas por via psicográfica (incluindo poesia) são conhecidas em países de língua inglesa (veja o caso Patience Worth em Braude, 2003b; Casper, 1916), embora em caráter menos extensivo do que sua contraparte acústica, a 'psicofonia' (capacidade de falar mensagens de conteúdo paranormal) que também se produziram por toda a parte.

No Brasil, a pratica da psicografia é muito popular no movimento espiritualista local conhecido com Espiritismo e fundado por H. L. D. Rivail, um pedagogo francês também conhecido como Allan Kardec (Kardec, 1985). Kardec escreveu um tratado sobre mediunidade (Kardec, 2000a) nos início da pesquisa psíquica na Europa e lançou os princípios do Spiritisme no 'Livro dos Espíritos' (Kardec, 1996). Em seu aspecto religioso, o Espiritimo de Kardec, além da ênfase na mediunidade que se tornou uma prática espírita, também incorporou a crença na reencarnação como forma de evolução da alma (Chibeni, 1994). Tal ambiente de aceitação franca da realidade da comunicação dos Espíritos e reencarnação constitui-se em um campo fértil para o desenvolvimento da mediunidade ativa, em particular de caráter psicográfico.

No próximo post: a mediunidade de psicografia de Francisco Cândido Xavier.





26 de fevereiro de 2011

Crenças Céticas XII - Tomando carona no ceticismo: Críticas ao 'Espiritismo' em Ateus.net


Vamos agora analisar alguns textos utilizando as discussões que apresentamos anteriormente sobre as crenças céticas. Com isso, fornecemos alguns fatos, como exemplos interessantes, que confirmam nossas exposições sobre o ponto de vista cético.

Nosso objetivo aqui não é discutir as crenças do ateísmo, mas fazer alguns comentários em torno de um artigo que pretende levantar críticas contra o Espiritismo, notadamente sobre a relação desse com as disciplinas acadêmicas. O artigo intitulado 'Espiritismo, Ciência e Lógica' é longo, mas uma síntese do pensamento do autor desse texto pode ser compreendida lendo-se a comparação que ele faz através de um quadro entre suas noções de 'Ciência' e de 'Espiritismo'. Esse quadro está mais ou menos no meio do artigo, e passamos a discuti-lo abaixo.

Um pouco antes desse quadro pode-se ler:

E o Espiritismo nessas mudanças? O fosso entre as metodologias da “ciência espírita” e as demais “ciências” do mundo material foi progressivamente aumentando.

Por 'mudanças' aqui, o autor entende as revoluções da física moderna que levaram a uma noção diferente do mundo em comparação aos critérios e interpretações da física chamada 'clássica'. Ele afirma que existe um 'fosso' entre as  'ciências do mundo material' e o 'Espiritismo'. Vejamos os pontos principais de sua argumentação, analisando o quadro comparativo que o autor coloca como argumentos a favor da existência de tal 'fosso':

"Ciência"

1) Comum novas gerações de cientistas refutarem trabalhos anteriores. Aversão a critérios de “autoridade”.

Aqui a palavra 'refutar' está sendo empregada de forma pouco precisa. Alguém já ouviu falar em 'refutação' dos trabalhos de Newton, Einstein, Maxwell? Será que 'Einstein refutou Newton'? Será que 'Maxwell foi refutado pela teoria dos campos'? Será que a Mecânica Quântica refutou a mecânica clássica?   Existem casos históricos de teorias - que eram as preferidas dos acadêmicos - terem sido suplantadas por outras. Um exemplo interessante foi a teoria do flogisto (antes dos desenvolvimentos da termodinâmica na Física), ou a teoria dos continentes fixos (na Geologia), suplantada pela tectônica de placas. Na Física, as teorias clássicas podem ser derivadas das teorias não-clássicas (ex., relatividade e mecânica quântica) a partir de determinados limites.  A tese de 'refutação' não se defende muito bem.

Também, a observação em análise demonstra conhecimento idealizado do mundo acadêmico: com relação à aversão aos 'critérios de autoridade', isso é um mito que corre entre cientistas. Todos sabem que um artigo científico receberá tratamento muito diferente se for publicado por um estudante (ou autor desconhecido) ou um prêmio Nobel, ainda que tenha o mesmo conteúdo. A autoridade se constrói no conceito: o 'nome' (número de artigos, citações, impacto etc). Ele conta muito e se correlaciona fortemente com quanto um pesquisador ou grupo de pesquisadores irá receber do governo ou de seus financiadores para a realização de pesquisa. Essa é a razão porque cientistas procuram sempre ter seus currículos atualizados com novas publicações e alunos. 

2) Obras de grandes mestres (Principia Mathematica, Origem das Espécies, etc.) ainda lidas como referência, fontes de valor histórico e como uma forma de adentrar no raciocínio do autor. Os estudantes, porém, usam bibliografia recente, expandida e corrigida.

É verdade, e, frequentemente, se acham erros de interpretação imperdoáveis em tais 'bibliografias recentes, expandidas e corrigidas' para tristeza dos estudantes (Campanario, 2006; Hubizs, 2003). Qualquer pesquisador sério sabe que não há nada melhor do que uma consulta aos autores originais para se encontrar os princípios que fundamentam as diversas teorias de sua ciência.

3) A lógica é usada como ferramenta apenas. O raciocínio precisa estar corroborado em evidências

Somos também brindados com essa preciosa observação: 

"Kardec depositava fichas demais na lógica. Ela é importante sem dúvida e tê-la é um requisito mínimo. Mas quem a estuda não demora a descobrir que ela não tem tanto poder assim como dizem."
Ao longo do texto, seu autor confunde a validade de pressupostos de uma argumentação lógica com a própria argumentação lógica. Não só Kardec, mas toda a comunidade de cientistas deposita fichas demais na lógica porque não existe outro método de raciocínio disponível.

4) O bom senso e a experiência usual nem sempre são seguidos (Relatividade e Mecânica Quântica que o digam. Idem para a “ação à distância” de Newton). Opta-se por soluções pragmáticas, ainda que esdrúxulas.

O autor diz que a 'Ciência opta por soluções esdrúxulas' e que isso é o resultado da Ciência se afastar do 'bom senso' e da 'experiência'.  Para quem compreende bem os fundamentos da Mecânica Quântica, ou da Relatividade sabe que essas teorias da Física estão estruturadas de forma lógica - sim a mesma lógica que o autor disse que 'não tem tanto poder assim como dizem'. Sob determinadas interpretações particulares, esses ciências podem revelar aspectos do Universo e do mundo que não estão de acordo com a experiência comum do dia-a-dia dos humanos. 

5) Há grande discussão em torno da filosofia da ciência quanto à questão da melhor metodologia para o estabelecimento de novos conhecimentos (refutabilidade, crise de paradigmas, etc.).

A Epistemologia é uma área acadêmica da filosofia. Entretanto, não existe consenso entre especialistas da área sobre o impacto dos estudos da epistemologia nas ciências. Na verdade, há quem defenda que estudos da Epistemologia não tem serventia na Ciência (Holton, 1984). Embora seja altamente positivo que estudantes das ciências se debrucem também sobre esse ramo da filosofia, sabe-se que a Epistemologia não é matéria obrigatória nos currículos da Física, Biologia, Química etc. Prefere-se não perder tempo com o assunto, embora sua aparente relevância para o desenvolvimento da Ciência.

6) Teorias inverificáveis, mas belas, são postas de lado.

Aqui,o que se entende por 'belas teorias'? Pois 'beleza' não é algo intrínseco do objeto admirado, depende também de quem admira. Uma teoria que é bela para um cientista pode não ser para outro. Exemplos dessa situação existem muitos na história da ciência. A teoria do movimento da Terra era insustentável para os defensores da Terra fixa e vice-versa.

Que exemplo que se pode dar de uma teoria inverificável? Como podemos saber que uma teoria é inverificável hoje diante dos avanços da tecnologia? Toda teoria é construída sobre algum fundamento empírico, entretanto, muitas teorias poderosas foram propostas bem antes de se registrar qualquer evento ou fenômeno que a suportasse.

7) Apropriações entre ramos da ciência (malthusianismo no darwinismo, biologia na sociologia – darwinismo social, eugenia) hoje são vistas com reservas. 

Talvez o mais apropriado aqui fosse dizer 'integração' e não 'apropriações'. De qualquer forma, a frase parece conferir status de ciência ao Darwnismo Social e a Eugenia. Talvez o objetivo seja dizer que determinadas interpretações ou extrapolações a partir de teorias científicas não mais são aceitas facilmente: o darwinismo social e a eugenia da biologia, o malthusianismo do darwinismo. A sociologia é uma teoria independente da biologia. 

8) Ciências que não têm acesso direto ao seu objeto de estudo (astronomia, história, etc.) lançam mão da análise indireta dos efeitos que chegam até nós. (espectro de luz, documentos históricos). 

Entretanto, porque ateus, céticos e materialistas exigem 'provas objetivas e repetitivas' dos fenômenos psíquicos? Por que a ênfase no 'rigor' e na 'objetividade'? A imensa maioria dos fenômenos chamados 'paranormais' não é acessível aos sentidos. Kardec foi a primeira pessoa a reconhecer as manifestações do Espíritos só podem ser acessadas indiretamente. 

9) Orações, Meditação e estados alterados de consciência são passíveis de estudo, mas isso não significa que seja verdade aquilo que seus praticantes dizem. 

Alguns estudos acadêmicos estrangeiros apontam para algo diferente, anômalo ou peculiar nos seres humanso: sua origem e natureza espiritual. Obviamente, todo cientista é livre para pesquisar o que bem entender, as limitações que se impõem vem da falta de recursos financeiros,  tempo (que é conseqüência da falta de recursos) ou capacidade intelectual.

A frase faz transparecer que a Ciência (no sentido de comunidade acadêmica) tem preconceito com relação a certas fontes de conhecimento. Mesmo assim, essa opinião contrasta com a de pesquisadores sérios em Parapsicologia que, frequentemente, reportam o que seus 'sujets' sentem (como informação importante), sem falar nos pesquisadores de experiência de quase morte. Infelizmente ainda não se desenvolveram métodos não humanos de se acessar as realidades do pós vida ou mesmo para praticar uma simples telepatia.

10) Não faz afirmações morais. Descobertas podem, inclusive, entrar em choque com a moral vigente. 

O objetivo das ciências naturais não é mesmo fazer afirmações morais. Mas isso não pode ser contado como uma virtude como a observação parece sugerir. O mais correto é dizer que as ciências naturais são neutras. De outra forma, aplicações tecnológicas (derivadas das descobertas científicas) podem tanto ser usadas para o bem como para o mal (Exemplos: avanços da genética, pesquisas nucleares etc).

"Espiritismo"

1) Medo de se distanciar da ortodoxia kardequiana. Culto à autoridade contido no espírito da Verdade ou Kardec. Há exceções, óbvio.

O culto à ortodoxia é o que mais se vê no ambiente acadêmico. Mais uma vez, a frase deixa transparecer conhecimento superficial do mundo acadêmico - que é o ambiente onde as ciências acadêmicas são 'produzidas'. Confunde-se repetidamente 'ciência' (teoria, hipótese, conhecimento) com o movimento humano que a produz. Assim confunde-se igualmente 'Espiritismo' com 'Movimento Espírita' tanto quanto 'ciência acadêmica' com 'academia'. 

O que na frase é chamado de 'culto' é o que ocorre em qualquer ambiente humano, que, no caso da Ciência, tem como objetivo proteger suas teorias contra revisões ou alterações mal intencionadas. Um cientista defende uma boa teoria com o mesmo zelo que um fazendeiro sua propriedade, e não há o que se achar estranho nisso. Pelo contrário, o oposto seria algo bastante inexplicável.

2) Livros de Kardec ainda utilizados sem alterações, mesmo no que há de errado. Notas de rodapé corrigem alguns erros.

Imaginemos uma situação hipotética: uma nova edição do 'Principia' de Newton sendo lançada repleta de 'revisões' e 'correções' a partir da relatividade restrita e geral. Imaginemos que os livros editados por Mawxell, Newton, Galileu, Boltzmann e outros grandes físicos fossem relançados com revisões completas - não notas de rodapé. Imagine lançar o livro fundamental de Charles Darwin em uma edição totalmente revisada conforme as novas descobertas da genética.

As obras dos pesquisadores pioneiros (em todas as áreas do conhecimento) representam um manancial de conhecimentos originais, onde se podem encontrar os princípios ou fundamentos das ideias e teorias e, portanto, não são passíveis de revisão.

Há muitas coisas que ainda devem ser 'descobertas' nas obras de Kardec. Justamente por não se dar o devido valor a certas passagens, é que não se consegue construir uma teoria correta sobre muitos fenômenos considerados 'anômalos'. 

3) A lógica é utilizada como meio de prova ou refutação de hipóteses, não havendo verificação de se a natureza pensa igualmente.

Quem 'pensa' em matéria de criação e teste de hipóteses são os seres humanos. A Natureza não pensa, ela simplesmente é. Aqui aparece a mesma crítica à lógica que o autor do texto diz 'que não tem tanto poder como pensam' (ver item 3 em 'Ciência' acima).

4) O senso comum, ao lado da lógica, é superestimado.

Em boa parte dos desenvolvimentos da Ciência, o 'senso comum' é utilizado como sinônimo de 'razoabilidade', ou seja, é uma percepção humana que permite distinguir o que é razoável do que não é. O mesmo ocorre com a lógica. (Ver considerações do item 3 em 'Ciência').

5) O conhecimento espírita ainda é majoritariamente indutivo, baseado em moldes científicos do século XIX (positivismo). 

Se por 'positivismo' entendermos a necessidade de se fundamentar o conhecimento em fatos ou fenômenos naturais, é compreensível que o Espiritismo tenha caráter 'positivo' neste sentido. Afinal aquilo que Kardec descreve em 'O Livro dos Médiuns' não é invenção dele, mas constitui uma fenomenologia verificável. É necessário que seja assim, pois a base do conhecimento não pode ser a crença ou a invenção. Toda ciência - ainda que nascida como pura teoria - só se estabelece ao se conectar a uma classe de fenômenos observáveis (não necessariamente através sentidos humanos). A ciência moderna continua a ser positiva ou positivista nesse sentido. 

Entretanto, é falso considerar o desenvolvimento e fundamentação do Espiritismo em uma acepção particular do positivismo: aquela que crê que o mundo deve ser explicado a partir de entidades que sejam acessíveis apenas aos sentidos humanos. Um positivista nessa definição só acredita naquilo que os sentidos lhe apresentam. Kardec aceitou a existência dos Espíritos e de muitas outras coisas a partir de evidências indiretas (afinal Espíritos não podem ser vistos ou 'detectados' por nenhum tipo de equipamento.

6) Persiste a presença de hipóteses “ad hoc” inverificáveis para sustentar pontos nebulosos da doutrina. (ex: vida “invisível” em outros planetas) .

Se o plano invisível existe na Terra, porque não poderia existir em outros planetas? Por que esse privilégio? Há aqui interpretação limitada da noção dos 'mundos habitados' . Ela não se refere a planetas, mas a planos de existência. Ao exigir 'hipóteses verificáveis' o autor está sendo incongruente com sua crítica de Kardec - o de acusá-lo de 'positivista'.

6) Apropriações correntes são feitas sem garantia de que são válidas (ação e reação, noções de mecânica quântica, etc.)

É verdade. Há muitas pessoas que fazem uso de paradigmas de ciências bem estabelecidas como modelos de entidades de natureza espiritual. Isso não só no Brasil como no exterior onde, dizem, o Espiritismo de Kardec não existe. Há que se explicar porque isso ocorre nesse contexto (além da argumentação simples exposta pelo autor), demonstrando que isso não é característica da Doutrina Espírita. Para ver um exemplo recente do uso de noções de Física Quântica, consulte a revista Neuroquantology.

7) Pede um lugar “especial” entre as ciências por não ter acesso direto ao seu objeto de estudo (espíritos).

Aqui temo outra afirmação totalmente falsa. Por isso é importante distinguir entre a noção de  disciplina acadêmica (disciplina que tem corpo de pesquisadores, cátedra, laboratórios, verbas, corpo de edição com publicações sujeitas à avaliação por pares etc) com ciência ou conhecimento sobre o qual ela discorre. Toda vez que dizemos 'O Espiritismo é Ciência', não estamos a afirmar  que ele é uma disciplina acadêmica nesse sentido especial. Assim, a afirmação não é válida.

Ainda assim, é possível ver que os 'objetos da Natureza' descritos e utilizados pela Doutrina Espírita são entidades que têm sua existência no mundo em que vivemos. Se eles não são objeto de estudo das disciplinas acadêmicas, então quem os estudará?

8) Verdades podem ser extraídas de “estados alterados de consciência”, vulga mediunidade. Contudo, nenhuma proposta rigorosa para a separação do joio e do trigo foi apresentada. 

Será correto igualar 'estados alterados de consciência' com a mediunidade? Se definirmos estado de consciência normal como o estado mental durante a vigília, então, quando dormimos ocorre mediunidade? Se o estado de vigília e sono são estados normais de consciência, então alguém bêbado terá mediunidade?

As 'propostas rigorosas' passam todas pelo crivo neo-positivista tece longas críticas à existência da própria fenomenologia psíquica. Aqui vemos transparecer incoerência: a Ciência aceita 'explicações esdrúxulas' e evidências indiretas fugindo do 'bom senso', mas  as investigações na esfera psíquica ou espiritual deve passar por um 'crivo rigoroso'. 

8) Produz cartilhas de certo e errado. Eufemismos são usados para se alegar que “não é bem assim…” 

Fica difícil avaliar essa afirmação do autor de 'Espiritismo, Ciência e Lógica' se ele não deu nenhuma referência a quais são essas 'cartilhas'.

Existem maneiras mais sofisticadas e razoáveis de se defender o ateísmo. Está claro que o referido artigo não só é tendencioso em relação à Doutrina Espírita, mas constitui uma defesa precária do ateísmo, que merece nosso respeito como crença. 


Referências

J. M. Campanario, (2006), Using textbook errors to teach physics: examples of specific activities. Eur. J. Phys. 27, 975–981 doi:10.1088/0143-0807/27/4/028

G. Holton (1984), Do Scientists need a Philosophy?, Times Literary Supplement 2, 1232.

J. L. Hubisz, (2003), Middle school text don’t make the grade. Phys. Today 56, 50–4