19 de janeiro de 2011

Fundamentos I - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.


Resumo


Discute-se aqui brevemente a interação entre a Doutrina Espírita e as ciências. Essa relação pode ser entendida de diversos aspectos, uma necessariamente que considera o aspecto científico do Espiritismo. É importante porém frisar que não pode haver compreensão correta dessa interação, se não se tem compreensão correta do sentido em que se fala do aspecto científico do Espiritismo. Essa discussão apresenta implicações importantes para os espíritas que acreditam na necessidade de atualização da Doutrina Espírita.

Observação: Neste artigo, 'Espiritismo' e 'Doutrina Espírita' são usados como sinônimos, entendendo-se por eles o conjunto de princípios definidos em 'O Livro dos Espíritos' por Allan Kardec.

1.Introdução

Todo adepto com razoável entendimento dos princípios da Doutrina Espírita sabe que ela é um conjunto de princípios que se apresentam como afirmações sobre o mundo. Não é menos certo que muitos desses princípios, ainda que se apliquem ao objetivo maior do Espiritismo que é o estudo do elemento espiritual, contêm afirmações singulares e gerais sobre o mundo material. Isso necessariamente nos leva à fronteira entre o Espiritismo e as ciências bem estabelecidas que também afirmam coisas sobre o mundo. Para que haja evolução na forma de aquisição de conhecimento – um dos objetivos das ciências e também do Espiritismo, no caso, conhecimento sobre o mundo espiritual – faz-se necessário conhecer exatamente como se dá essa relação.

A ciência, tal como a conhecemos hoje, é produto da evolução lenta com que nossa sociedade passou nos últimos séculos. Não existe um consenso geral (na forma de uma formula ou padrão estabelecido) sobre qual seria a definição exata de ciência. Podemos, porém, descrevê-la de acordo com alguns de seus atributos bem conhecidos. De todos eles, um que parece conveniente para caracterizar as chamadas ciências bem estabelecidas (física, biologia, química e outros) é a noção de paradigma [1]. Por paradigma entende-se um conjunto de princípios que versam sobre determinado objeto, e que se encontram naturalmente relacionados a um grupo ou conjunto de fenômenos naturais. Fazem parte do corpo que forma o paradigma também leis que complementam o conhecimento, permitindo a aplicação das leis do corpo principal aos fenômenos observados. Os paradigmas são os campos de trabalho tradicional na pesquisa normal das grandes áreas do conhecimento científico. Assim, Ciência não é a mera coleção de fatos e hipóteses mas algo muito mais complexo, em constante mutação através das gerações possuindo seus próprios sistemas de proteção a fim de evitar que seu corpo principal de doutrina seja corrompido. Não se pode mudar a orientação de determinado programa de pesquisa de uma noite para outra, ainda que se tivesse uma boa razão para isso. As mudanças nos programas de pesquisa que caracterizam o paradigma – conhecidas como revoluções científicas – necessitam de um tempo de maturação e, muitas vezes, uma mudança no posicionamento dos cientistas, na maneira como eles vêem o mundo. As revoluções científicas são acontecimentos de curta duração seguidos muitas vezes de estágios de desenvolvimento mais ou menos estáveis.

Semelhantes considerações, como pode se compreender, não devem ser deixadas de lado na análise do assunto que serve de título a este texto. Da mesma forma, de uma análise imparcial da própria Doutrina Espírita deve nascer um modelo de idéias que consiga descrever corretamente o que se entenda por “aspecto científico” do Espiritismo. De posse desses dois ingredientes (compreensão correta do aspecto científico do Espiritismo e do significado da Ciência) podemos então considerar seriamente um debate sobre a relação entre esses dois ramos do conhecimento humano. Apresentamos aqui brevemente alguns subsídios para se iniciar esse debate.

2. Noções incorretas de ciência espírita e ciência normal. Discutindo um modelo mais apropriado de ciência. 

Um número razoável de espíritas e simpatizantes procuram abordar o aspecto científico do Espiritismo de forma a moldá-lo segundo a visão parcial do conhecimento considerado genuinamente científico. Essa visão parcial vê a ciência como uma atividade extremamente rigorosa em seus métodos de análise e acredita que os sucessos obtidos com o desenvolvimento científico – que permitiram compreender os fenômenos e desenvolver novas aplicações tecnológicas – são produto direto desse rigor metodológico. Nada poderia estar mais longe da realidade. O sucesso da ciência atual, que se materializa na forma de produtos tecnológicos e sofisticados métodos numéricos de reprodução da realidade em seus mínimos detalhes, não decorre apenas de um rigor metodológico qualquer que seja ele, mas principalmente das teorias que nascem em sua forma primitiva na cabeça dos cientistas. Semelhante compreensão parcial da realidade é comum para muitos espíritas que acreditam que os fenômenos espíritas devam satisfazer necessariamente a critérios de adequação empírica conforme os moldes das ciências normais. Para esses, a “ciência espírita” tem a ver unicamente com a parte fenomenológica (na forma da mediunidade em seus múltiplos aspectos) com exclusão de qualquer consideração de princípios. O Espiritismo é visto como um amontoado de fenômenos a partir dos quais se pode inferir um conjunto de afirmações mais gerais e deduzir consequências. Seguindo esse caminho, logicamente os inimigos do Espiritismo se comprazem em negar os fenômenos ou inventar explicações alternativas que parecem atingir os princípios espíritas. Coincidentemente, essa visão também é popularmente atribuída à ciência. De uma maneira simplificada podemos esquematizar o entendimento popular de ciência – que dá origem ao chamado “método científico” – de acordo com a Fig. 1. 


Fig. 1

Nessa figura, um observador bem intencionado (quer dizer, isento de pré-julgamentos ou explicações próprias consideradas tendenciosas) observa os fenômenos da natureza. Essa observação deve ser igualmente isenta e completa suficiente para não permitir perda de informação a respeito dos fenômenos. Deve ser realizada de forma a cobrir o maior número de “condições” possíveis, o que leva à necessidade de se repetir testes experimentais um grande número de vezes. A partir dos fenômenos ele elabora hipóteses consideradas razoáveis que, por um processo mal explicado, degenera (ou se sintetiza) em “leis gerais”. Esse processo de criação de leis gerais é denominado indução. A partir das leis induzidas outros fenômenos semelhantes (ou os mesmos) podem ser explicados por um processo denominado dedução. Um ponto importante a ser considerado diz respeito às conseqüências para o desenvolvimento de uma ciência se o modelo mostrado na Fig. 1 for considerado ideal. Compreensivelmente pode-se com ele destruir qualquer tipo de explicação negando-se simplesmente os fenômenos. Desde que esses não existam, não há sentido em se acreditar nos princípios deles supostamente induzidos. Isso acontece com os que negam inúmeras vezes os fatos psíquicos e, com eles, a ideia de comunicação entre vivos e mortos com a sobrevivência dos seres após a morte. 

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Referências

[1] A. F. Chalmers, “O que é ciência afinal ?”, (1993), Ed. Brasiliense.

15 de janeiro de 2011

Novo Jornal de Estudos Antropológicos

ISSN 2044-9216


Entre dois mundos

Várias vezes antropologistas testemunham rituais de Espíritos, e várias vezes exegetas indígenas tentam explicar que os Espíritos estão presentes...Mas, antropologistas resolvem sempre interpretar tudo de forma diferente. Nós, antropologistas, precisamos treinamento para ver o que os Nativos vêem.
Edith Turner (1993). "The reality of Spirits: A Tabooed or Permitted Field of Study?" Anthropology of Consciousness 4(1): 9-12.

No que segue abaixo, o que está em azul são textos de J. Hunter que comento mais abaixo.
 

Por J. Hunter (Universidade de Bristol, UK)

Bem vindos à primeira edição de 'Paranthropoloy: Journal of Anthopological Approaches to the Paranormal". Essa jornal tem como objetivo básico fornecer uma plataforma para a disseminação de novas pesquisas e idéias concernentes à abordagens antropológicas para o estudo de crenças paranormais, associadas à prática ou aos fenômenos. Embora a ênfase do jornal seja uma abordagem antropológica, ele também se ramificará em outras disciplinas - psicologia, parapsicologia, sociologia, folclore, história - como um meio de explorar a maneira como tais metodologias teóricas lançam luz sobre o paranormal.

Antropologia e Paranormal: qual é a questão? 

Há muitas razões para uma abordagem antropológica como estudo do paranormal. Não só a antropologia fornece uma metodologia promissora para a elucidação e compreensão do paranormal, como também o paranormal se apresenta como um aportunidade para que teorias e técnicas antropológicas sejam testadas e expandidas. 


Andrew Lang

A idéia que métodos antropológicos sejam apropriados para o estudo de fenômenos paranormais não é nova. Escrevendo ainda no Século 19, o acadêmico escocês Andrew Lang (1844-1912), apresentou o método antropológico aos membros da Sociedade de Pesquisa Psíquica (SPR). Lang achou incrível que a SPR tenha, por qualquer razão, se recusado a comentar sobre experiências psíquicas na literatura antropológica e, semelhantemente, que a antropologia da época estivesse super interessada no tipo de pesquisa feita pela SPR. Lang (1996) expressou a opinião que ambos os conjuntos de dados (antropológicos e psíquicos) seriam melhor compreendidos se fizessem referência mútua, ao invés de serem tomados como eventos separados e descorrelacionados.

Métodos antropológicos, em particular participação etnográfica, podem resultar em uma compreensão aprimorada dos mecanismos sociais, psicológicos e espirituais que envolvem as manifestações do paranormal, fatores que podem adicionar uma compreensão mais profunda do tipo de fenômenos estudados por parapsicológos. A pesquisa parapsicológica tende a assumir que efeitos paranormais só podem ser replicados no laboratório sem consideração à maneira como tais efeitos tem sido tradicionalmente produzidos. De fato, Frederic Myers, um dos fundadores da SPR, afirmou que um dos objetivos da pesquisa psíquicas seria o estudo de fenômenos psíquicos ostensivos sem uma...
...análise da tradição, ou sem qualquer manipulação metafísica, mas simplesmente experimentação e observação - pela simples aplicação aos fenômenos dentro de nós e ao redor de nós, dos métodos de pesquisa exata, deliberada e desapaixonadamente, que serviram de base para o conhecimento do mundo que podemos ver e tocar."  (citado por Gauld, 1983, xi)
Tal abordagem altamente racional, positivista e empírica tornou-se a pedra fundamental da parapsicologia moderna e deve, possivelmente, explicar as evidências relativamente inexpressivas que essa disciplina tem conseguido se comparada aos fenômenos extravagantes registrados na literatura etnográfica: é simplesmente um abordagem que desconsidera a tradição mágica. De Martino (1972), por exemplo, lista um número grande de fenômenos paranormais ostensivos (clarividência, precognição, experiências fora do corpo, psicocinese, fire-walkings etc) testemunhados por etnógrafos em partes diferentes do mundo, e compara o jeito com que etnógrafos registra tais ocorrências (i. e., dentro de um contexto particular histórico, social, cultura, mitológico e cosmológico) com o jeito como parapsicólogos  fazem o mesmo. Assim ele escreve sobre a parapsicologia:
Ocorre um quase que total redução do estímulo histórico que está em ação nas ocorrências espontâneas de tais fenômenos. Assim, no laboratório, o drama do homem desencarnado (dying man) que reaparece... para um parente ou amigo - é substituido (reduzido) a um experimento de repetição - tenta-se transmitir à mente do sujeito a imagem de uma carta de baralho escolhida aleatoriamente. (1973, p. 46)
A proposta do jornal de Parantropologia é inovadora para a nossa época e parte da necessidade de se avaliar a quantidade enorme de evidências etnográficas e históricas para fenômenos psíquicos. De fato, poderíamos dizer que a verdadeira pesquisa psíquica deve se iniciar com a antropologia e não na proposta de laboratórios de parapsicologia. Por que? Porque a Antropologia procura modelos para o fenômeno humano (tanto moderno como primitivo) sem eliminar nada deles que lhes seja característico. Embora esses fenômenos sejam interpretados dentro de concepções restritas que eliminam o transcendente, a proposta da Paranthropology é justamente iniciar ou propor modelos antropológicos onde a existência do transcendente não possa ser descartada.

O horror à idéia da sobrevivência e as concepções espiritualistas fez surgir a pesquisa parapapsicológica com proposta  supostamente científica e certamente fechada às observações que ocorram fora dos recintos de laboratórios (veja a citação de F. Myers acima). Essa decisão foi tomada sem prestar atenção ao fato de que existem fenômenos naturais que não podem ser reproduzidos em laboratório, ou mesmo que a exigência de repetibilidade em laboratórias torna restritiva as condições de ocorrência, ou seja, resultam em interferências destrutivas no fenômeno.

Há uma crença generalizada de que só existe ciência se os fenômenos puderem ser repetidos em laboratório. A constatação de De Martino, embora interpretada como uma observação quanto à eliminação de estímulos históricos, reflete a eliminação de quase todos os estímulos possíveis necessários para as ocorrências psíquicas. A que se reduz então os testes parapsicológicos 'rigorosos'? A medidas de coincidência de leitura de carta por 'sujets' ou outros sinais gerados por computador, ou por fontes radioativas. Com isso, espera-se medir correlações que lançem luz à existência de precognição ou retrocognição, sem se postular nenhum mecanismo para que isso ocorra, a menos da existência de Super Psi, ou a existência de indivíduos dotados de percepção quase que onisciente (tanto no espaço como no tempo). O Super psi nasce como uma explicação naturalmente fora do escopo de qualquer teste, já que ele, por definição, associa à mente determinadas características que tornam muito difícil a 'contra prova' ou o processo do 'falsificacionismo' no sentido proposto pelo Filósofo Karl Popper. Em outras palavras, ao se assumir Super Spsi fica muito difícil a proposição de uma observação onde Super Psi possa ser 'falsificado' ou demonstrado como não existente. Logo, as teorias de Super Psi são suspeitas do ponto de vista epistemológico.

Mas Super psi tornou-se um mecanismo de crença de céticos moderados que, não aceitando a idéia da sobrevivência, não podem deixar de aceitar a existência dos fenômenos. Ai entra a necessidade de estudos Antropológicos que podem:
  • Lançar luz quanto a condições de ocorrência de fenômenos psíquicos;
  • Chamar a atenção para a grande coincidência de narrações - ou seja, explicações que os antigos e outro povos davam ao fenômeno do mediunismo e suas manifestações, atentando para a grande coerência entre tais descrições;
  • Ajudar a classificar fenômenos e lançar luz quanto as verdadeiras fontes ou origens desse fenômenos.
  • Pode-se obsevar, através da antropologia, a supressão ou aumento das ocorrências mediúnicas, conforme se eliminem ou aumente os 'estimulos históricos' ou outras condições a serem determinadas no momento da ocorrência psíquica.
Finalmente, Hunter chama a atenção para uma corrente de antropólogos modernos que adota uma postura diferente:
Mais recenemente, entretanto, teóricos tem argumentado em favor de tratar tais crenças tal como os nativos o fazem. Edith Turner (1993, 1998, 2006) tem se colocado favorável a essa perspectiva, especialmente em termos de interpretar a crença na existência e atuação dos Espíritos no campo. Outros antropologistas tem também considerado os Espíritos seriamente, mesmo que não no nível ontológico real: por exemplo, Nils Bubandt (2009) explorou a atuação política de Espíritos que se comunicam com médiums 'possuídos' em Norte Maluku - tratando-os como metodologicamente reais. Aqui vemos a noção antropológica da ação consciente expandida para incluir outras formas de personalidade.
Por que isso é importante? Porque não é possível fazer avançar o conhecimento antropológico ao se desconsiderar a opinião dos nativos tais como elas se apresentem. Esperamos, assim, que uma nova era no conhecimento da verdadeira natureza do Homem se inicia a partir da adoção dessa postura mais aberta.

Referências
  • Bubandt, N. (2009). “Interview with an Ancestor: Spirits as Informants and the Politics of Spirit Possession in North Maluku.” Ethnography 10(3): 291-316.
  • De Martino, E. (1972). “Magic: Primitive and Modern”. London: Tom Stacey Ltd.
  • Lang, A. (1896). “Cock Lane and Common Sense.” London: Green & Co.
  • Turner, E. (1993). “The Reality of Spirits: A Tabooed or Permitted Field of Study?” Anthropology of Consciousness 4(1): 9-12.
  • Turner, E. (1998). “Experiencing Ritual”. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.
  • Turner, E. (2006). “Advances in the Study of Spirit Experience: Drawing Together Many Threads.” Anthropology of Consciousness 17(2): 33-61.