17 de junho de 2012

Reflexões sobre um texto de David Hume

"O sábio, respirando esse ar sereno, olha para baixo, com um prazer misturado de compaixão, para os erros dos mortais iludidos, que cegamente procuram o verdadeiro caminho da vida, e buscam a riqueza, a nobreza, a honra e o poder, em vez da verdadeira felicidade. Vê que a maioria é desapontada em suas mais caras aspirações. Alguns lamentam que, tendo uma vez possuído o objeto de seus desejos, ele lhes tenha sido arrebatado pela fortuna invejosa. E todos se queixam que mesmo a satisfação de suas próprias aspirações seria incapaz de dar-lhes a felicidade, ou de aliviar a ansiedade de seus espíritos confundidos". (D. Hume, 'O Estóico', I.XVI.12)

Este texto complementa o artigo "A recompensa da Virtude" publicado na revista Reformador, Abril de 2012. Editado pela Federação Espírita Brasileira.

Qual seria a recompensa da Virtude? 

Essa é a questão proposta por David Hume (1711-1776) em seu texto 'O Estóico' (1). No que segue, o que está em azul são transcrições desse texto de Hume. Questão de gigantesca importância em nossa época em que o ceticismo e o hedonismo nulificaram as virtudes humanas, nivelando as consequências dos atos do homem correto e bem aos de um corrupto ou criminoso. 'Não há recompensa alguma nos atos de virtude, portanto, que tenha livre curso a corrupção de todos os atos', tal é a regra do dia.  

Hume é conhecido como um dos maiores filósofos do ocidente, sendo que é particularmente reverenciados pelos céticos. Entretanto, o ceticismo de Hume é de uma qualidade e caráter bem diferente do ceticismo vulgar de muitos que duvidam apenas pelo gosto de duvidar. Seus ensaios foram muito influentes, inclusive sobre a constituição dos Estados Unidos da América. Para começar, Hume não deixa de se surpreender em 'O Estóico' com as diferenças que existem entre os vários estágios da evolução humana que ele classifica em três:
  1. A do homem incivilizado, que usa de 'paus e pedras como defesa contra as rapaces feras do deserto';
  2. A do home civilizado 'que goza sob a proteção das leis todas as vantagens inventadas pelo trabalho';
  3. A do 'homem virtuoso', 'verdadeiro filósofo, que comanda seus apetites, subjuga suas paixões, e a quem a razão ensinou a atribuir um justo valor a todo objeto do desejo'. (grifos nossos)
Para Hume essa diferença demonstra que, se a humanidade hoje pode ser tomada como estagiando no segundo nível, não existem escusas para que cada um se esforce para alcançar o último:
Mas, ao mesmo tempo que ambiciosamente aspiras ao aperfeiçoamento de tuas faculdades e poderes corpóreos, serias capaz de mesquinhamente desprezar teu espírito, e com despropositada preguiça deixá-lo no mesmo estado rude e inculto com que veio das mãos da natureza? (1, XVI.4)
Há 2000 anos, diria Jesus: 'Sede pois vós outros, perfeitos como vosso Pai celestial' (Mateus, Cap. 5: 48). Qual seria a necessidade de perfeição diante de um paraíso fácil concedido pela imensa maioria das doutrinas cristãs que vieram depois que tais palavras foram proferidas? Pois a perfeição, assim como a ascensão ao último estágio do nível descrito por Hume não é imediata, não é no intervalo de uma única existência que se atinge a condição de 'verdadeiro filósofo' ou 'patriota desinteressado' nas palavras desse famoso filósofo empirista. Entretanto, Hume não deixa de ser profundamente otimista em relação à personalidade humana em geral, pois pondera que o homem pode aspirar a sentir o prazer que para ele seria o único verdadeiro, o de se perceber melhor a cada dia:
E que o mesmo esforço pode tornar o cultivo de nosso espírito, a moderação de nossas paixões e o esclarecimento da razão uma ocupação agradável, quando a cada dia tomamos consciência de nosso progresso e vemos nossos traços e atitudes interiores cada vez brilhando mais com novos encantos? (1, I.XVI.8)
Para Hume bastaria que o homem se 'curasse dessa letárgica indolência' (1, I.XVI.8) que o impede de ascender moralmente. Querer que o homem, de forma geral, se cure dos vícios morais (responsáveis por tantos crimes que enxameiam o noticiário da atualidade) no intervalo de apenas uma existência é o mesmo que querer vislumbrar toda a vida de um indivíduo tão só pela análise de algumas fotografias. Por outro lado, a ideia de uma única existência torna difícil esse esforço, assim como a falta de perspectiva de uma vida futura (como ocorre com as doutrinas materialistas) é suficiente para torná-lo inútil. 

Resposta

A solução? Ela está sinteticamente representada pela resposta à questão #167 de 'O Livro dos Espíritos' (2):
167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?
“Expiação, melhoria progressiva da Humanidade. Sem isto, onde a justiça?”
Portanto, a ascensão na escala de Hume ocorre em tempo muito mais dilatado através das vidas sucessivas. Por tal doutrina é que compreendemos como, operacionalmente, se dá esse progresso moral. Hume não seria assim 'otimista demais', nem estaria equivocado, o prazer que ele afirmar ser possível em se perceber melhor a cada dia virá inexoravelmente com o passar dos séculos em todos as almas. Não há nenhuma outra doutrina filosófica ou religiosa que permita tamanha concordância entre afirmações nascidas em épocas tão diferentes, a de um evangelista (texto de Marcos, Cap. 5:48) e de um filósofo cético empirista do século 18... 

Como se pode então reconhecer o verdadeiro progresso? Ele é a própria recompensa da virtude, a libertação final de todo os males:
Que encantos encontramos na harmonia dos espíritos, e numa amizade baseada na mútua estima e gratidão! Que satisfação em socorrer os aflitos, em reconfortar os infelizes, em levantar os caídos, e em deter a carreira da cruel fortuna, ou do homem ainda mais cruel, em seus insultos aos bons e virtuosos! Mas que alegria mais sublime é possível, nas vitórias sobre o vício e sobre a miséria, do que quando pelo virtuoso exemplo ou a sábia exortação nossos semelhantes são ensinados a dominar suas paixões, a renunciar a seus vícios, a subjulgar seus piores inimigos, que habitam dentro de seu próprio peito? (3,I.XVI.16)

Embora separados por séculos e culturas diferentes, não é esse o quadro que melhor descreve a personalidade de um Francisco de Assis, Madre Teresa ou Chico Xavier no final de suas existências? A única vitória possível, a fonte da recompensa imperecível de toda e qualquer virtude é a vitória de si próprio. Hume não deixa de reconhecer em seu texto  que esse estágio também corresponde ao nível de uma nova beleza, a 'beleza moral':
No verdadeiro sábio e patriota se reúne tudo o que pode enobrecer a natureza humana, elevando o homem mortal a uma certa semelhança com a Divindade. A mais suave benevolência, a mais indômita resolução, os mais ternos sentimentos, o mais sublime amor da virtude, tudo isso vai sucessivamente animando seu arrebatado coração. Que satisfação, quando ele olha para dentro de si mesmo e vê as mais turbulentas paixões harmonizadas numa justa concórdia, banindo todo som discordante nessa música encantadora! Se a contemplação da beleza, mesmo inanimada, é tão deliciosa, se ela entusiasma os sentidos, mesmo quando a bela forma nos é estranha, quais não devem ser os efeitos da beleza moral? (4, I.XVI.18,grifos nossos)
 Já 'O homem de bem' ("Evangelho segundo o Espiritismo", 5)
Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. O egoísta, ao contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa.
o que está em perfeita harmonia com o texto de Hume de 'O Estóico'.  Utopias das utopias, esse estado de perene exaltação do bem na personalidade do virtuoso por excelência existe e é real, assim o provam as vidas de personalidades como as que citamos acima. O passar dos milênios se encarregará de consolidá-lo na vida de todos, pois essa é a lei.

Referências

(1) D. Hume, O Estóico em Ensaios morais, políticos e literários, Ed. Nova cultura, São Paulo (2000). O original em inglês está disponível online.

(2) A. Kardec. 'O Livro dos Espíritos'. Texto segundo www.ipeak.com.br.

(3) Ref. 1. Original em inglês: What charms are there in the harmony of minds, and in a friendship founded on mutual esteem and gratitude! What satisfaction in relieving the distressed, in comforting the afflicted, in raising the fallen, and in stopping the career of cruel fortune, or of more cruel man, in their insults over the good and virtuous! But what supreme joy in the victories over vice as well as misery, when, by virtuous example or wise exhortation, our fellow-creatures are taught to govern their passions, reform their vices, and subdue their worst enemies, which inhabit within their own bosoms?

(4) Ref. 1. Original em inglês: In the true sage and patriot are united whatever can distinguish human nature, or elevate mortal man to a resemblance with the divinity. The softest benevolence, the most undaunted resolution, the tenderest sentiments, the most sublime love of virtue, all these animate successively his transported bosom. What satisfaction, when he looks within, to find the most turbulent passions tuned to just harmony and concord, and every jarring sound banished from this enchanting music! If the contemplation, even of inanimate beauty, is so delightful; if it ravishes the senses, even when the fair form is foreign to us: What must be the effects of moral beauty? 

(5) A. Kardec. "O Evangelho Segundo o Espiritismo", Cap. 17, 'Sede Perfeitos'. Texto segundo www.ipeak.com.br .


10 de junho de 2012

Um médico descobre a mediunidade

Médiuns receitistas: têm a especialidade de servirem mais facilmente de intérpretes aos Espíritos para as prescrições médicas. (A. Kardec, "O Livro dos médiuns", Cap. 16, II Parte, Das manifestações espíritas, dos médiuns especiais).

O que aconteceria se os praticantes da medicina finalmente levassem em conta o conhecimento transcendente, o da Vida Maior no exercício de suas profissões? E se a mediunidade fosse incorporada de alguma forma e intensidade à prática médica? Podemos prever uma grande mudança nos tratamentos com perspectivas nunca antes imaginadas. Em particular, com aqueles profissionais que trabalham com as doenças mais diretamente ligadas à relação entre o Espírito e a matéria, certamente o impacto seria maior. 

O Dr. Ian Rubenstein é um exemplo desse tipo de mudança. Médico inglês que trabalha em Enfield no norte de Londres, ele passou a se interessar diretamente pela fenomenologia mediúnica. Em um recente artigo "A medium in the Doctor's Office" ("um médium no consultório") que foi publicado na edição de Junho deste ano da revista EdgeScience (1), ele descreve um pouco suas experiências com a mediunidade e o começo de seu interesse pelo assunto:
"...meu interesse no assunto começou quando uma paciente que visitei afirmou estar em contato com meu falecido bisavô. Ela me deu informações muito precisas dele. Isso chamou minha atenção e, depois de uma série de eventos extraordinários e de coincidências misteriosas, comecei a participar de reuniões com médiuns bem treinados e a iniciar o contato com o 'outro lado'."
Admite ele que isso foi uma mudança radical no seu ponto de vista, já que, como médico e na idade de 48 anos, ele não tinha a menor pretensão de começar a receber treinamento como médium. A partir de então ele "teve que aprender a entrar em contato com a parte mais sutil e intuitiva da mente, em um esforço de contato com uma forma de existência espiritual".

Do contato que teve com vários médiuns, ele pode perceber a vantagem prática que tinham com as fenômenos mediúnicos. Em um gesto de grande humildade, ao menos por certo tempo, decidiu suspender seu 'julgamento cético' a respeito do assunto, pelo menos durante as sessões. E, então, passou a receber, como diz, 'informações do nada'. De nomes nunca ouvidos que faziam sentido para membros do grupo até descrições precisas de alguém que havia falecido. Tais ocorrências fizeram com que ele suspendesse sua trégua contra os fenômenos, imaginando tratar-se de um mistura de 'leitura fria' (2) ou de memórias inconscientes proferidas por pacientes a ele durante os anos. Sua impressão final, porém, foi de que, embora isso pudesse fazer parte de uma explicação, não se encaixava absolutamente ao que ele havia experimentado. Havia fatos demais que não se explicavam de forma natural. Então, ele mesmo se surpreendeu ao começar a ter intuições sobre seus pacientes, fatos que ele jamais poderia saber de forma ordinária:
Por exemplo, quando Lucy me procurou em um estado terrível de depressão, não tinha ideia alguma que seu pai havia sido assassinado e que isso tinha sido há 38 anos atrás. Eu estava para prescrever a ela um antidepressivo quando senti um impacto na parte de trás de minha cabeça e ouvi uma voz que me pediu perguntasse a Lucy sobre seu pai, além de ver uma forma espectral de um homem que ditava uma resposta sobre os ombro esquerdo de Lucy. 
Isso pareceu muito espetacular, mas mais importante e útil foi saber de Lucy que ela sempre sentia a presença de seu pai ao redor dela. Depois que confirmei isso, ela me disse se sentir muito melhor e que, de fato, não mais precisaria do antidepressivo.
Dr. Rubenstein.
Portanto, o Dr. Rubenstein passou a ser auxiliado durante seu trabalho com informes que ele não sabia de onde estavam vindo, mas que eram resultado direto de seu interesse em se desenvolver como médium (3). Para ele o contato dá-se de forma totalmente inesperada: na maioria das vezes quando ele está com seus pacientes:
Começa frequentemente com uma imagem mental clara que eu prontamente reconheço como sendo algo que preciso dizer ao paciente. Essas imagens são bastante persistentes. A menos que esforço deliberado seja feito para apagá-las, elas não vão embora enquanto eu não comunico o paciente do que se trata.  

Classicamente isso é conhecido como 'fazendo o contato'. Parece que funciona desse jeito: uma vez que uma imagem ou mensagem inicial se mostra útil ao recipiente (paciente), fica mais fácil  que mais informações sejam conseguidas. Se o recipiente conseguir 'compreender' o que lhe passo, recebo então uma serie de outras imagens que preciso usar de forma a fazer sentido.
Dr. Rubenstein descreve então duas variedades de percepções mediúnicas das quais ele apenas tem a última:
Mensagens visuais e auditivas podem ser subdivididas em formas subjetivas e objetivas. As mensagens subjetivas são percebidas com os olhos da mente ou ouvidas como uma especie de voz interior. As mensagens objetivas são vistas ou ouvidas como que emanando do mundo físico. Algumas vezes é uma mistura estranha das duas formas. 
E, mais a frente:
Recebo na maioria das vezes imagens. Algumas vezes elas parecem óbvias. Em outros casos parecem vir na forma de símbolos para a situação que o paciente está passando. Algumas vezes essas imagens parecem embaralhadas como se fosse um pedaço de informação que tivesse sido depositado na minha mente. Então tenho que desembarçar camada a camada, imagem a imagem 
Ocasionalmente, sinto ou vejo pessoas que estão associadas aos pacientes que estão em consulta. Quando isso acontece, existe frequentemente informação quanto à posição associada ao comunicante.
Obviamente, ele também sente a pressão da censura por seu comportamento tão peculiar durante as consultas. Interessantemente, seus pacientes aceitam sua capacidade melhor do que ele próprio. E, dessa forma, ele se permite utilizar frequentemente dessa habilidade. Segundo ele, 'se a situação está difícil, seria bobagem recusar ajuda, mesmo dos desencarnados'. 

Notas e referências

(1) Rubenstein I. (2012). A medium in the doctor´s office, Seção 'The Observatory', EdgeScience, 11. Publicado pela Society for Scietific Exploration;

(2) 'Leitura fria', em inglês, 'cold reading' é uma hipótese cética usada para supostamente explicar a possibilidade de médiuns obterem informações. Por meio de grande habilidade, médiuns tirariam 'informação do nada' a partir da leitura cuidadosa da maneira como pessoas do 'círculo' se sentam, como mexem os olhos, as mãos etc.

(3) Rubenstein, I. (2011). Consulting Spirit: A Doctor’s Experience with Practical Mediumship (Anomalist Books)


3 de junho de 2012

O que se deve entender por 'fenômenos espirituais'.


Exemplo de 'música psicográfica' por Rosemary Brown atribuído ao Espírito de F. Chopin. Este é um exemplo genuíno de 'fenômeno espiritual' que demonstra a possibilidade de intercâmbio entre dois mundos.  

Em um post anterior (1), discutimos com algum detalhe as dificuldades que existem na compreensão de palavras relacionadas a Espírito, perispírito, aura e 'corpo bioplasmático'. Por razões didáticas, é interessante detalhar ainda mais as questões semânticas, a fim de que fique claro o que seria o objeto de estudo de interesse principal da ciência espírita.

Também vimos em (2), obstáculos comuns que se impõem à pesquisa da realidade da sobrevivência e da existência do Espírito. Dentre eles estão as tentativas de se 'detectar' ou 'medir' o Espírito. Em que pese a possibilidade de se encontrar rastros materiais para o terceiro corpo que forma a individualidade humana, há que se considerar que o Espírito, por definição, não pode ser observado diretamente pelos sentidos e, portanto, não está sujeito, para sua apreensão, às dificuldades inerentes do elemento material. Esse ponto crítico está na raiz do desenvolvimento das ciências psíquicas e no reconhecimento do Espírito como um princípio independente da matéria.

Por outro lado, como devemos interpretar isso diante de inúmeros 'efeitos físicos' que são apresentados como evidências de 'fenômenos espirituais'? Seria isso um erro? Aqui temos uma dificuldade inerentemente conceitual e ilustramos isso por meio de um exemplo.

Escrita direta e psicografia

As manifestações mediúnicas que se tornaram conhecidas desde o fenômeno de Hydesville em 1840 apresentaram-se sempre como processos de comunicação par excellence. Dentre elas, a escrita direta e a psicografia destacam-se como método através do qual mensagens de variado conteúdo são transmitidas por meio de médiuns sejam de efeitos físicos em um caso (escrita direta) ou de efeitos intelectuais (psicógrafos) em outro.  

Já apresentamos um exemplo de escrita direta feita por Tom Harrison (3) através da médium de materializações Minnie Harrison. Por meio desse fenômeno um lápis, caneta ou giz é movimentado no ar (seja no interior de uma caixa ou de forma livre) escrevendo mensagens. No início das manifestações, o fenômeno era obtido também quando o lápis era preso a uma cesta (4). A escrita direta também foi chamada de pneumatografia por A. Kardec (5)

Já o fenômeno de psicografia representa uma evolução do processo de comunicação (4) que se iniciou pela tiptologia simples ou a linguagem das pancadas ('raps'). Na psicografia, o médium escreve diretamente a mensagem sob influência de um Espírito. Embora as diferenças marcantes no processo de obtenção da mensagem, está claro que se trata de um processo de comunicação através do qual uma mensagem (então inexistente) é transmitida ao meio de sua recepção.

Exemplo

Diante da possibilidade de se obter mensagens tanto por meio da escrita direta como por meio da psicografia, podemos nos perguntar: qual a diferença do ponto de vista de quantidade de informação entre um processo e outro? Imaginemos dois médiuns, um de efeitos físicos e outro psicógrafo que transmitem sucessivamente frases em determinada ordem que, juntas formam um texto. O conteúdo 'espiritual' da mensagem estará no contexto da mensagem, nas suas várias características linguísticas: idioma em que é produzida (o que implica em uma sintaxe e numa semântica específica desse idioma), de sua pragmática (significados dependentes do contexto extralinguístico) e  intenção (muito mais que uma mensagem, mas a representação de um ato linguístico).






Porém, muitos se deixaram levar pelo caráter 'espetacular' (6) e desprezaram a espiritualidade também presente nas  manifestações puramente físicas (ver nossas conclusões abaixo). O que queremos dizer é que há que se separar os dois aspectos do fenômeno: i) o caráter espiritual ligado à proferência de um conteúdo semântico que revela sentimentos, intenções e informações de seu emissor (o Espírito) e ii) o fenômeno físico que ocorre por ação de forças que - embora 'invisíveis' tem origem física (e, portanto, na matéria). Podemos certamente afirmar a origem física dessas forças porque elas operam sobre a matéria (o lápis ou o giz).

A mensagem musical que apresentamos no início deste texto, Ballade in D-flat Major psicografada por Rosemary Brown (7) e atribuída a Frederic Chopin, também não teria seu conteúdo estético reduzido, a menos de  diferenças na performance do pianista - caso fosse executada diretamente por um piano que 'tocasse sozinho' (8) - ou por qualquer outro pianista minimamente capacitado. Seria um erro desprezar o conteúdo musical dessa peça para se interessar tão somente pelo aspecto físico do instrumento que toca aparentemente sozinho. Também aqui percebemos que podemos separar a aparência do fenômeno, o que impressiona a vista e os ouvidos do conteúdo musical e estético que tem sua origem na fonte de informação, o Espírito.

Conclusões

É fácil ver que a dificuldade em se separar esses dois aspectos é um dos obstáculos à pesquisa da sobrevivência e reconhecimento da realidade do Espírito. Os que confundiram efeitos físicos com manifestações espirituais falharam em perceber a diferença. Cientistas como W. Crookes e outros sábios da SPR de Londres (Society of Psychic Research), além de toda 'escola' da Metapsíquica, insistiram em  tratar eventos psíquicos como se fossem experimentos de bancada de Física ou Química (Fig. 1). A mesma tendência se viu nos desenvolvimentos da Parapsicologia. Com isso, o conteúdo de informação que esses fenômenos traziam foi desprezado em detrimento de aspectos puramente físicos. Por outro lado, a insistência de céticos em 'provar' que tais fenômenos são fraudulentos ou ilusórios é um ataque inapropriado ao aspecto espiritual deles, justamente porque desprezam o conteúdo de informação que transcende ao que é concebível nos círculos em que são produzidos.
Fig. 1 O médium D. D. Home e o experimento de Crookes do acordeon que toca sozinho, ref. (8). A supervalorização de aspectos físicos de fenômenos como esse tem sido feita pelas diversas 'ciências psíquicas' em detrimento do conteúdo de informação que traziam.
Assim, seriam os 'efeitos físicos' fenômenos espirituais? Se eles contribuem para transmitir uma mensagem e revelar uma intenção transcendente ao meio de sua produção, certamente o são. O lado espiritual está no caráter inteligente da mensagem que ele transmite, caráter que revela uma causa inteligente independente, como bem observou Kardec.

Notas e Referências

(1) Sobre fotos Kirlian e o corpo bioplasmático dos soviéticos.
(2) Doze obstáculos ao estudo científico da sobrevivência e à compreensão da realidade do Espírito.
(3) Vídeo III - 'Visitantes da outra margem' - Fenômenos de Materializações descritos por Tom Harrison (Inglaterra)
(4) A. Kardec.(1858) 'Instruções Práticas sobre as Manifestações Espíritas',  Capítulo 4, Diferentes modos de comunicação:Psicografia.
(5) A. Kardec. (1861) 'O Livro dos Médiums', 2a Parte, "Das manifetações espíritas, Capítulo 12: Da pneumatografia ou escrita direta". Referência: IPEAK. 146: "A pneumatografia é a escrita produzida diretamente pelo Espírito, sem intermediário algum; difere da psicografia, por ser esta a transmissão do pensamento do Espírito, mediante a escrita feita com a mão do médium".
(6) Não podemos deixar de concordar que, do ponto de vista físico, um lápis que escreve aparentemente 'sozinho' não deixa de ser um fenômeno não só anômalo, mas mais interessante que alguém que o segure e escreva a mensagem com a mão.
(8) Não são raras descrições desses casos na literatura psíquica. Um exemplo de teste conduzido por W. Crookes com o médium D. D. Home demonstrou a execução de uma música por um acordeon que tocava 'sozinho' (Fig. 1). Crookes não se interessou pelo tipo ou natureza da música produzida. Ver: Crookes W. (1874), Researches in the phenomena of spiritualism. London: Lowe and Brydone, 1953. Ver também: 
Estudando o Invisível (por Juliana M. Hidalgo Ferreira)



26 de maio de 2012

Deus e suas Causas II - Causas primárias e secundárias

Permite-se que satélites, planetas, sóis, em uma palavra, sistemas inteiros no Universo sejam governados por leis. Mas, com o menor dos insetos, pretende-se que ele tenha sido criado de uma vez só, por um ato especial único. Charles Darwin.

Nosso pequeno estudo aqui endereça especialmente a disputas entre 'Criacionistas' e 'Evolucionistas' em torno da origem das espécies e da própria vida. Esse suposto conflito Darwin X Deus é desprovido de argumentações justas, constituindo um conflito fabricado e oriundo de posturas cristãs fundamentalistas de ver o mundo e da maneira como a Ciência veio a se estabelecer, em antagonismo com noções arcaicas desse mesmo mundo. Hoje, os últimos resquícios da teologia dogmática se aquartelaram nas controvérsias em torno da evolução da vida, imaginando que, se os seres vivos, tal como se apresentam hoje, não puderam nascer de um ato único por um Criador feito à imagem e semelhança dos homens, ao menos poderia ter dado origem a eles em seus fundamentos de forma direta.

Vamos analisar algumas ideias que podem ajudar a formar uma imagem justa da questão e de como a ideia de Deus como 'causa primária' pode resolver satisfatoriamente a questão, eliminando esse suposto conflito com a autoridade científica.

Causas primárias e secundárias

1) A Ciência só existe através de uma 'teoria', do grego antigo teoria (θεωρία) que significa "visão, consideração", que é uma maneira de se generalizar ou sistematizar princípios de forma que seja possível explicar causas para determinados fenômenos. O problema com certas noções religiosas antigas é justamente o que se entende por 'explicação'. Para essas, Deus criou tudo: a água, a Terra, os animais, as plantas conforme está literalmente escrito em algum texto considerado sagrado. Muitos, sem nenhuma cerimônia, afirmam que isso é uma 'teoria' ou explicação que se contrapõe às teorias mais aceitas pela Ciência (ver artigos de Wernher Gitt);

2) Entretanto, a Ciência está em busca do que chamamos aqui de 'causas secundárias' para a maioria dos fenômenos. Essas são as causas fenomenologicamente ligadas à ocorrência de eventos naturais. Para entender essa noção consideremos a Fig. 1.

Fig. 01
Determinadas causas (1 e 2) resultam em um fenômeno (1). Esse fenômeno, por sua vez, serve de causa para outro fenômeno (2). Por sua vez, esse último é causa de outros dois fenômenos distintos,  3 e 4. Nesse exemplo, qual é a 'causa secundária' dos fenômenos 3 e 4? Embora os fenômenos 3 e 4 não possam ocorrer sem as Causas originais 1 e 2, de um ponto de vista 'suficiente' para explicá-los, apenas o fenômeno 2 - denominado Causa 3 - é necessário. A Causa 1 e Causa 2 (primárias) não são, assim, 'causas necessárias'  para explicar diretamente os fenômenos 3 e 4, embora sejam necessárias como 'causas que determinam as causas'. Assim, pode-se considerar uma boa explicação para os fenômenos 3 e 4 uma teoria que postule apenas o fenômeno 2 (causa 3) sem se referir às causas primárias 1 e 2. Uma nova teoria mais aprimorada deverá descobrir as causas 1 e 2. Há inúmeros exemplos - inclusive bem simples - na Natureza que demonstram a existência desse tipo de relações causais entre fenômenos. 

3) Exemplo da dinâmica entre causas e efeitos conforme a figura acima podem ser encontradas em diversas ciências, basta pensar em economia, biologia ou mesmo nos processos de patologia estudados pelas diversas ciências médicas.

4) Uma teoria não é mais 'verdadeira' por ser mais simples - de fato não há explicação mais simples do que admitir que Deus criou tudo - mas no sentido de se explicar ao máximo, de forma eficiente, o maior número de fenômenos possível; 

5) Para isso, podemos entender a questão da 'eficiência' pela possibilidade de 'falsificação' de uma determinada teoria. Façamos isso pela própria ideia dogmática que nos impõem: como é possível mostrar que a noção de Deus, como criador de todas as coisas, é falsa? Com isso queremos dizer, 'como é possível mostrar que essa ideia é falsa da mesma forma como poderíamos querer mostrar ser falso, por exemplo, que água e óleo se misturam?' Uma resposta simples é: realizando um experimento. Um experimento permite que se observem não só que determinado efeito resulta de uma causa, mas também as condições para que determinados efeitos ocorram, diante de determinadas causas (secundárias). 

6) A idéia de Deus como criador de tudo não pode ser refutada porque não é uma teoria, mas um princípio que pode ser admitido verdadeiro, mas que não se pode provar por estar fenomenologicamente distante de nossa capacidade de apreender o mundo (1). Faz parte dos atributos da divindade, da noção de Deus conforme entendida em "O Livro dos Espíritos" (2), que ele seja a causa primária de todas as coisas. Assim como é possível constatar que, na Natureza, muitos fenômenos ocorrem segundo leis específicas, não é razoável admitir que Ele, por mero capricho (que parece ser uma condição humana, sugerida por textos considerados sagrados por influência de ideias arcaicas), desrespeite essas leis e se ponha a realizar atos arbitrários? Tais atos implicam em aceitar muito facilmente que Deus atue sobre o mundo como uma causa secundária, coisa que ainda há que se demonstrar, ainda que isso seja totalmente desnecessário diante das Leis Universais. Sabemos que essas leis existem e que, na verdade, elas se constituem nos mecanismos de atuação da Divindade. Dessa forma, inexiste qualquer limitação a Deus, argumento que é frequentemente colocado, mas compreensão mais precisa da maneira como ele atua no mundo.   

7) Ainda que fosse possível admitir e mostrar na Natureza que Deus atua no mundo como causa secundária em algumas circunstâncias (temos que admitir que o movimento das menores partículas do Universo são regidos por leis bem determinadas e não demonstram nenhuma arbitrariedade de princípios), muito menos defensável é imaginar que toda a criação dos seres vivos (o que inclui não só animais e plantas desse nosso planeta, mas também de muitos outros que a ciência descobrirá eventualmente) pudesse ter ocorrido a partir de um ato arbitrário direto.

Fig. 2 Visão antiga do Universo: os povos antigos do oriente médio conceberam a Terra como circundada pelas 'águas  inferiores' (por causa da geografia circundada por águas onde habitavam). No alto estava o firmamento que suportava o Sol, a Lua e as estrelas a girar em torno da Terra. Acima do firmamento havia também águas (razão porque chovia), e, além das águas superiores, estava o 'Reino de Deus'. O 'submundo' - que iria dar origem ao conceito de 'inferno' - estava abaixo da Terra.

8) Olhando do ponto de vista histórico, é muito fácil ver que os povos antigos não distinguiam direito a diferença entre causas primárias e causas secundárias. Por isso, narrativas antigas sobre a criação, assim como sua cosmologia (Fig. 2), podem ser descartadas, não como uma 'alegoria da verdade', mas como uma visão particular de povos antigos em determinados momentos de sua história. Os que insistem em interpretar literalmente textos que propõem tais imagens, não se dão conta do ridículo a que se expõem, já que o processo de geração de conhecimento (ciência) continuará a desvendar a Natureza como algo muito diferente das concepções e ideias humanas, principalmente aquelas que hoje se nos figuram arcaicas e pueris.

9) Mas, da mesma forma como não é lógico descartar as causas secundárias, nos distanciamos da verdade ao querer descartar as causas primárias. De acordo com essa visão, um efeito é uma sucessão de várias causas, a se iniciar com as primárias e, depois, com as secundárias que são efeitos das primeiras. Desta forma, não se pode dizer que a teoria da evolução das espécies ou qualquer outra que se proponha para dar conta das causas secundárias levem à negação da ideia de Deus como causa primária. Simplesmente as duas causas existem, uma sendo consequência da outra, mas, para objetivo de explicação ou racionalização sobre eventos naturais, as causas secundárias são suficientes. Veja que é possível se conceber boas teorias a respeito do mundo tão só admitindo causas secundárias. Entretanto, isso não significa que, com a evolução do conhecimento e da integração de vários outros fenômenos, novas causas possam ser descobertas sustentando a existência de causas secundárias. É isso que ocorre com a ideia de Deus e seu papel na criação dos seres: não precisamos de Deus (como causa secundária) para explicar a evolução dos animais e, talvez, o surgimento da vida, mas isso não significa que Ele não exista (causa primária).

Conclusão

Do ponto de vista lógico, não há nenhum conflito entre a ideia de Deus (desde que admitido como causa primária) e a evolução das espécies, nem com quaisquer mecanismos que a Ciência venha postular para explicar e desenvolver nosso conhecimento a respeito dos seres vivos. O conflito é oriundo exclusivamente da maneira peculiar com que certas teologias dogmáticas veem o mundo. Ao se insistir nessa postura, o fosso entre o conhecimento científico e as religiões dogmáticas irá se tornar cada vez maior e irreversível. O resultado não pode ser senão um aprofundamento do materialismo e uma aumento na crença generalizada de que 'Deus está morto'. 

A Doutrina Espírita (tal como entendida pelos ensinos em 'O Livro dos Espíritos' de A. Kardec) endossa e apoia abertamente todas as descobertas e teorias científicas, entendendo-as como conhecimentos de causas suficientes (embora secundárias) para a correta explicação dos fenômenos naturais relativos à vida e a evolução dos seres. Forças adicionais, entretanto, podem ser necessárias para a compreensão desses fenômenos, principalmente no que diz respeito à criação da vida e ao aparecimento dos seres, forças que a Ciência revelará, pelos seus métodos, em tempo oportuno, através dos especialistas dessas ciências.

Notas e Referências

(1) É interessante considerar a resposta à questão do LE (2) #10:
10. Pode o homem compreender a natureza íntima de Deus?
"Não; falta-lhe para isso um sentido."
Por isso, a integração de Deus em explicações puramente racionalistas do mundo ainda é algo distante.  Para referências ao LE, ver IPEAKVer também: Deus e suas Causas I. (post anterior da série)

(2) A. Kardec (1857). 'O Livro dos Espíritos'. Ver questão #1. Obra fundamental de caráter profundamente racionalista que forma as bases da Doutrina Espírita.