"O sábio, respirando esse ar sereno, olha para baixo, com um prazer misturado de compaixão, para os erros dos mortais iludidos, que cegamente procuram o verdadeiro caminho da vida, e buscam a riqueza, a nobreza, a honra e o poder, em vez da verdadeira felicidade. Vê que a maioria é desapontada em suas mais caras aspirações. Alguns lamentam que, tendo uma vez possuído o objeto de seus desejos, ele lhes tenha sido arrebatado pela fortuna invejosa. E todos se queixam que mesmo a satisfação de suas próprias aspirações seria incapaz de dar-lhes a felicidade, ou de aliviar a ansiedade de seus espíritos confundidos". (D. Hume, 'O Estóico', I.XVI.12)
Este texto complementa o artigo "A recompensa da Virtude" publicado na revista Reformador, Abril de 2012. Editado pela Federação Espírita Brasileira.
Este texto complementa o artigo "A recompensa da Virtude" publicado na revista Reformador, Abril de 2012. Editado pela Federação Espírita Brasileira.
Qual seria a recompensa da Virtude?
Essa é a questão proposta por David Hume (1711-1776) em seu texto 'O Estóico' (1). No que segue, o que está em azul são transcrições desse texto de Hume. Questão de gigantesca importância em nossa época em que o ceticismo e o hedonismo nulificaram as virtudes humanas, nivelando as consequências dos atos do homem correto e bem aos de um corrupto ou criminoso. 'Não há recompensa alguma nos atos de virtude, portanto, que tenha livre curso a corrupção de todos os atos', tal é a regra do dia.
Hume é conhecido como um dos maiores filósofos do ocidente, sendo que é particularmente reverenciados pelos céticos. Entretanto, o ceticismo de Hume é de uma qualidade e caráter bem diferente do ceticismo vulgar de muitos que duvidam apenas pelo gosto de duvidar. Seus ensaios foram muito influentes, inclusive sobre a constituição dos Estados Unidos da América. Para começar, Hume não deixa de se surpreender em 'O Estóico' com as diferenças que existem entre os vários estágios da evolução humana que ele classifica em três:
- A do homem incivilizado, que usa de 'paus e pedras como defesa contra as rapaces feras do deserto';
- A do home civilizado 'que goza sob a proteção das leis todas as vantagens inventadas pelo trabalho';
- A do 'homem virtuoso', 'verdadeiro filósofo, que comanda seus apetites, subjuga suas paixões, e a quem a razão ensinou a atribuir um justo valor a todo objeto do desejo'. (grifos nossos)
Para Hume essa diferença demonstra que, se a humanidade hoje pode ser tomada como estagiando no segundo nível, não existem escusas para que cada um se esforce para alcançar o último:
Mas, ao mesmo tempo que ambiciosamente aspiras ao aperfeiçoamento de tuas faculdades e poderes corpóreos, serias capaz de mesquinhamente desprezar teu espírito, e com despropositada preguiça deixá-lo no mesmo estado rude e inculto com que veio das mãos da natureza? (1, XVI.4)
Há 2000 anos, diria Jesus: 'Sede pois vós outros, perfeitos como vosso Pai celestial' (Mateus, Cap. 5: 48). Qual seria a necessidade de perfeição diante de um paraíso fácil concedido pela imensa maioria das doutrinas cristãs que vieram depois que tais palavras foram proferidas? Pois a perfeição, assim como a ascensão ao último estágio do nível descrito por Hume não é imediata, não é no intervalo de uma única existência que se atinge a condição de 'verdadeiro filósofo' ou 'patriota desinteressado' nas palavras desse famoso filósofo empirista. Entretanto, Hume não deixa de ser profundamente otimista em relação à personalidade humana em geral, pois pondera que o homem pode aspirar a sentir o prazer que para ele seria o único verdadeiro, o de se perceber melhor a cada dia:
E que o mesmo esforço pode tornar o cultivo de nosso espírito, a moderação de nossas paixões e o esclarecimento da razão uma ocupação agradável, quando a cada dia tomamos consciência de nosso progresso e vemos nossos traços e atitudes interiores cada vez brilhando mais com novos encantos? (1, I.XVI.8)
Para Hume bastaria que o homem se 'curasse dessa letárgica indolência' (1, I.XVI.8) que o impede de ascender moralmente. Querer que o homem, de forma geral, se cure dos vícios morais (responsáveis por tantos crimes que enxameiam o noticiário da atualidade) no intervalo de apenas uma existência é o mesmo que querer vislumbrar toda a vida de um indivíduo tão só pela análise de algumas fotografias. Por outro lado, a ideia de uma única existência torna difícil esse esforço, assim como a falta de perspectiva de uma vida futura (como ocorre com as doutrinas materialistas) é suficiente para torná-lo inútil.
Resposta
A solução? Ela está sinteticamente representada pela resposta à questão #167 de 'O Livro dos Espíritos' (2):
167. Qual o fim objetivado com a reencarnação?
“Expiação, melhoria progressiva da Humanidade. Sem isto, onde a justiça?”
Portanto, a ascensão na escala de Hume ocorre em tempo muito mais dilatado através das vidas sucessivas. Por tal doutrina é que compreendemos como, operacionalmente, se dá esse progresso moral. Hume não seria assim 'otimista demais', nem estaria equivocado, o prazer que ele afirmar ser possível em se perceber melhor a cada dia virá inexoravelmente com o passar dos séculos em todos as almas. Não há nenhuma outra doutrina filosófica ou religiosa que permita tamanha concordância entre afirmações nascidas em épocas tão diferentes, a de um evangelista (texto de Marcos, Cap. 5:48) e de um filósofo cético empirista do século 18...
Como se pode então reconhecer o verdadeiro progresso? Ele é a própria recompensa da virtude, a libertação final de todo os males:
Que encantos encontramos na harmonia dos espíritos, e numa amizade baseada na mútua estima e gratidão! Que satisfação em socorrer os aflitos, em reconfortar os infelizes, em levantar os caídos, e em deter a carreira da cruel fortuna, ou do homem ainda mais cruel, em seus insultos aos bons e virtuosos! Mas que alegria mais sublime é possível, nas vitórias sobre o vício e sobre a miséria, do que quando pelo virtuoso exemplo ou a sábia exortação nossos semelhantes são ensinados a dominar suas paixões, a renunciar a seus vícios, a subjulgar seus piores inimigos, que habitam dentro de seu próprio peito? (3,I.XVI.16)
Embora separados por séculos e culturas diferentes, não é esse o quadro que melhor descreve a personalidade de um Francisco de Assis, Madre Teresa ou Chico Xavier no final de suas existências? A única vitória possível, a fonte da recompensa imperecível de toda e qualquer virtude é a vitória de si próprio. Hume não deixa de reconhecer em seu texto que esse estágio também corresponde ao nível de uma nova beleza, a 'beleza moral':
No verdadeiro sábio e patriota se reúne tudo o que pode enobrecer a natureza humana, elevando o homem mortal a uma certa semelhança com a Divindade. A mais suave benevolência, a mais indômita resolução, os mais ternos sentimentos, o mais sublime amor da virtude, tudo isso vai sucessivamente animando seu arrebatado coração. Que satisfação, quando ele olha para dentro de si mesmo e vê as mais turbulentas paixões harmonizadas numa justa concórdia, banindo todo som discordante nessa música encantadora! Se a contemplação da beleza, mesmo inanimada, é tão deliciosa, se ela entusiasma os sentidos, mesmo quando a bela forma nos é estranha, quais não devem ser os efeitos da beleza moral? (4, I.XVI.18,grifos nossos)
Já 'O homem de bem' ("Evangelho segundo o Espiritismo", 5)
Encontra satisfação nos benefícios que espalha, nos serviços que presta, no fazer ditosos os outros, nas lágrimas que enxuga, nas consolações que prodigaliza aos aflitos. Seu primeiro impulso é para pensar nos outros, antes de pensar em si, é para cuidar dos interesses dos outros antes do seu próprio interesse. O egoísta, ao contrário, calcula os proventos e as perdas decorrentes de toda ação generosa.
o que está em perfeita harmonia com o texto de Hume de 'O Estóico'. Utopias das utopias, esse estado de perene exaltação do bem na personalidade do virtuoso por excelência existe e é real, assim o provam as vidas de personalidades como as que citamos acima. O passar dos milênios se encarregará de consolidá-lo na vida de todos, pois essa é a lei.
Referências
(1) D. Hume, O Estóico em Ensaios morais, políticos e literários, Ed. Nova cultura, São Paulo (2000). O original em inglês está disponível online.
(2) A. Kardec. 'O Livro dos Espíritos'. Texto segundo www.ipeak.com.br.
(3) Ref. 1. Original em inglês: What charms are there in the harmony of minds, and in a friendship founded on mutual esteem and gratitude! What satisfaction in relieving the distressed, in comforting the afflicted, in raising the fallen, and in stopping the career of cruel fortune, or of more cruel man, in their insults over the good and virtuous! But what supreme joy in the victories over vice as well as misery, when, by virtuous example or wise exhortation, our fellow-creatures are taught to govern their passions, reform their vices, and subdue their worst enemies, which inhabit within their own bosoms?
(4) Ref. 1. Original em inglês: In the true sage and patriot are united whatever can distinguish human nature, or elevate mortal man to a resemblance with the divinity. The softest benevolence, the most undaunted resolution, the tenderest sentiments, the most sublime love of virtue, all these animate successively his transported bosom. What satisfaction, when he looks within, to find the most turbulent passions tuned to just harmony and concord, and every jarring sound banished from this enchanting music! If the contemplation, even of inanimate beauty, is so delightful; if it ravishes the senses, even when the fair form is foreign to us: What must be the effects of moral beauty?
(5) A. Kardec. "O Evangelho Segundo o Espiritismo", Cap. 17, 'Sede Perfeitos'. Texto segundo www.ipeak.com.br .
(2) A. Kardec. 'O Livro dos Espíritos'. Texto segundo www.ipeak.com.br.
(3) Ref. 1. Original em inglês: What charms are there in the harmony of minds, and in a friendship founded on mutual esteem and gratitude! What satisfaction in relieving the distressed, in comforting the afflicted, in raising the fallen, and in stopping the career of cruel fortune, or of more cruel man, in their insults over the good and virtuous! But what supreme joy in the victories over vice as well as misery, when, by virtuous example or wise exhortation, our fellow-creatures are taught to govern their passions, reform their vices, and subdue their worst enemies, which inhabit within their own bosoms?
(4) Ref. 1. Original em inglês: In the true sage and patriot are united whatever can distinguish human nature, or elevate mortal man to a resemblance with the divinity. The softest benevolence, the most undaunted resolution, the tenderest sentiments, the most sublime love of virtue, all these animate successively his transported bosom. What satisfaction, when he looks within, to find the most turbulent passions tuned to just harmony and concord, and every jarring sound banished from this enchanting music! If the contemplation, even of inanimate beauty, is so delightful; if it ravishes the senses, even when the fair form is foreign to us: What must be the effects of moral beauty?
(5) A. Kardec. "O Evangelho Segundo o Espiritismo", Cap. 17, 'Sede Perfeitos'. Texto segundo www.ipeak.com.br .