4 de novembro de 2014

Alguns pontos sobre a visão espírita do suicídio assistido.


"Sua alma, embora separada do corpo, ainda está completamente mergulhada no que se poderia chamar o turbilhão da matéria corpórea; as ideias terrestres ainda são vivazes; ele não acredita que está morto." (A. Kardec, "O Céu e o Inferno", Segunda Parte, Exemplos, Capítulo 5, Suicidas: O suicida de Samaritaine)

O suicídio assistido (eutanásia ativa, 1) é a liberdade dada a pacientes considerados terminais, sem cura, de planejarem  e executarem a própria morte. Vimos um caso  recente, o da americana Brittany Maynard de 29 anos (2) que, diante de um tumor de cérebro incurável, decidiu se suicidar. Nesse caso, cremos não haver diferença com qualquer outro ato de suicídio conscientemente decidido, já que a impossibilidade de cura não é justificativa para o ato como discutimos abaixo.

A questão da decisão pelo suicídio assistido ou eutanásia é considerada um tabu na sociedade pelas incertezas sobre a vida futura ("medo da morte"). Com a onda de liberalismos crescentes, grupos se fortalecerão propondo sua aplicação de forma sistemática. Há uma clara fronteira entre a vida e a morte em uma sociedade que tem muita dificuldade em lidar com a morte.

Discutimos aqui alguns pontos que devem ser considerados no esboço da visão espírita do suicídio assistido. Eles não pretendem ser definitivos, mas devem ser lembrados no contexto do avanço do conhecimento trazido pela Doutrina Espírita. Esses pontos também se aplicam ao suicídio de forma geral.

O "Livro dos Espíritos", questão 953.
Quando uma pessoa vê diante de si um fim inevitável e horrível, será culpada se abreviar de alguns instantes os seus sofrimentos, por uma morte voluntária? 
“É sempre culpado aquele que não aguarda o termo que Deus lhe marcou para a existência. E quem poderá estar certo de que, malgrado as aparências, esse termo tenha chegado; de que um socorro inesperado não venha no último momento?” 
a) – Concebe-se que, nas circunstâncias ordinárias, o suicídio seja repreensível; mas estamos figurando o caso em que a morte é inevitável, e em que a vida só é encurtada de alguns instantes. 
“É sempre uma falta de resignação e de submissão à vontade do Criador.”
Antes que o leitor cético conclua que a proibição do suicídio para o Espiritismo - mesmo no caso assistido - se baseia em um critério de autoridade, é preciso lembrar o suporte empírico que a Doutrina Espírita apresenta ao problema. De fato, seria um critério exclusivamente de autoridade, não dispusesse o Espiritismo de métodos e processos de demonstração com os quais ele ilustra seus princípios. Isso diferencia bastante o conhecimento espírita de outras tradições religiosas ou culturais. Basta ver o Capítulo 5 de "O Céu e o Inferno" de A. Kardec para colher informes sobre o estado futuro daqueles que cometem suicídio. Além do sofrimento, suas maior consequência, para quem o pratica, é uma profunda desilusão por se perceber vivo, por reconhecer a inutilidade do ato. 

Não há dúvidas de que o suicídio é uma opção. É a aplicação da "lei de liberdade" (Questão 843 em "O Livro dos Espíritos), não há razão para se duvidar desse direito. Mas, a decisão sobre a conveniência ou não de um ato obviamente não pode se basear exclusivamente na existência do direito de praticá-lo. Proponentes do suicídio assistido, eutanásia ou do aborto justamente reduzem a questão à discussão de direitos porque confundem progresso com liberdade irrestrita.

É fora de dúvida que temos o direito de praticar muitos atos dentro da liberdade que dispomos. Mas, nem todos esses atos são convenientes. Certamente, a liberdade de se atirar do vigésimo andar de um prédio deve ser ponderada pelos sofrimentos que colheremos como consequência da queda. Inúmeros outros exemplos são frequentemente adiantados por médicos e especialistas em saúde quanto ao sofrimento material do uso de drogas, de práticas ilícitas etc.

Ainda assim, vemos céticos que acusam os espíritas de usar o medo como arma de convencimento. É claramente irracional desprezar evidências, quaisquer que sejam elas, o que se aplica também às resultantes da mediunidade, que sinalizam que o suicídio leva ao sofrimento. Contra essas, o recurso final é "negar sistematicamente", por isso nos posicionamos tanto aqui contra o ceticismo.
Ora, se evidências de sofrimento certo não servem para convencer alguém da inconveniência de um ato, nenhum outro argumento será suficiente.
16. A incredulidade, a simples dúvida sobre o futuro, as idéias materialistas, numa palavra, são os maiores incitantes ao suicídio; ocasionam a covardia moral. Quando homens de ciência, apoiados na autoridade do seu saber, se esforçam por provar aos que os ouvem ou leem que estes nada têm a esperar depois da morte, não estão de fato levando-os a deduzir que, se são desgraçados, coisa melhor não lhes resta senão se matarem? Que lhes poderiam dizer para desviá-los dessa conseqüência? Que compensação lhes podem oferecer? Que esperança lhes podem dar? Nenhuma, a não ser o nada. Daí se deve concluir que, se o nada é o único remédio heroico, a única perspectiva, mais vale buscá-lo imediatamente e não mais tarde, para sofrer por menos tempo. 
A propagação das ideias materialistas é, pois, o veneno que inocula a ideia do suicídio na maioria dos que se suicidam, e os que se constituem apóstolos de semelhantes doutrinas assumem tremenda responsabilidade. Com o Espiritismo, tornada impossível a dúvida, muda o aspecto da vida. O crente sabe que a existência se prolonga indefinidamente para lá do túmulo, mas em condições muito diversas; donde a paciência e a resignação que o afastam muito naturalmente de pensar no suicídio; donde, em suma, a coragem moral. ("O Evangelho segundo o Espiritismo, Capítulo 5, O Suicídio e a Loucura).
Ao invés de se fixar no sofrimento, a crença na vida futura antevê o estado de felicidade em que se encontrará o ser depois de passar pelas dificuldades da existência Uma verdadeira revolução opera naquele que adquire a certeza da continuidade da vida. Ele sabe que o sofrimento é transitório e que, mesmo se sua vida material terminar, continuará a existir em outro estado, livre da matéria e das vicissitudes por ela impostas. Essa é a verdadeira visão espírita, aquela que deverá assinalar uma mudança completa na maneira como encaramos o sofrimento e a morte.

Conclusões

A dúvida sobre a vida futura é dissipada pelo conhecimento espírita, que traz informações, declaradas pelo próprio ser depois da morte, sobre seu estado. E as informações da via mediúnica mostram que a prática do suicídio leva ao sofrimento do Espírito no curto prazo, à ponderação quanto a sua inutilidade e à necessidade futura de reparação (3).   Se há sofrimento "do lado de cá", também há "do lado de lá", resultado do continuísmo da vida. Mas, os que confundem progresso com liberdade irrestrita, pensam o contrário e desprezam os relatórios mediúnicos como novas versões do inferno cristão.

O suicídio é, acima de tudo, consequência do materialismo, da incredulidade, da ignorância total da vida futura e da transitoriedade dos sofrimentos, da falta de resignação do indivíduo cujo orgulho o faz crer ser indigno da situação a ser vencida. Somente uma crença forte, escorada em evidências e em um método, é capaz de vencer esse estado de coisas. As milhares de mensagens e comunicações daqueles que partiram pedem que tenhamos mais paciência com nossas provas. Elas são passageiras e um futuro grandioso aguarda os que souberem suportá-las com coragem e resignação.

Referências

(1) http://pt.wikipedia.org/wiki/Eutan%C3%A1sia

(2) http://veja.abril.com.br/noticia/ciencia/podemos-decretar-a-propria-morte

(3) O suicídio leva não só ao aumento do sofrimento, mas exige o retorno as mesmas conjunturas que  resultaram ao ato. O Espírito praticamente se força a nova existência quando terá que vencer a prova onde falhou. Isso acontecerá tantas vezes quanto ele capitular na prova. 

4 comentários:

  1. Ainda que se apresente evidências da imortalidade, não se segue que a doutrina toda seja um corolario da imortalidade. tão pouco a lógica da reencarnação. O argumento de autoridade aí me parece diluído numa série de procedimentos tomados enquanto Lei moral na consciência e na organização social de um plano espiritual, que acolhe, dirige e doutrina o espírito para o seu retorno. É incrível como a diversidade de formas culturais humanas se esfacela no relato do plano espiritual do espiritismo parecendo mais uma forma de organização burocrática que faz a gestão das almas. qualquer discordância parece ser recusa da Lei divina, ignorância ou revolta. A imortalidade da alma, a meu ver, implica pensar a necessidade de reencarnar e justificar o esquecimento. .. a necessidade é apresentada pelos espíritas sempre a posteriori, como algum erro, falta ou aprendizado com o qual o sujeito encarnado tem que conviver sem saber, pq esqueceu. falar que alguém concordou com aquilo (a prova ou expiação) e que esqueceu parece uma justificativa adoc para a contingência da vida. Se não há morte e se não é certo que a evolução tenha um fim, isto é, que o espírito termine um dia de evoluir em algum estágio final dotado da totalidade do conhecimento possível, uma morte numa vida dentre milhares nada é se não um lapso, e se o fim é certo uma morte não muda nada , pois ao final não creio que entre os espiritos evoluídos existiria alguma disputa sobre o tempo de chegada ao fim ou sobre a quantidade de vezes que sofreu ou desistiu. Nenhuma lei detém a verdade da liberdade, e lá onde esa a liberdade é plena me parece não haver necessidade da lei que julgue o comportamento moral dos outros nem no presente nem eu seu passado...grato pelo seu post e desculpas adiantadas pela confusão do texto atravessado por um turbilhão de questionamentos. um leitor frequente de seus textos.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Pois é, Anonimo, eu tb gostaria de viver em um Universo onde tudo fosse permitido... Já pensou, vc imaginar algo e isso acontecer instantaneamente diante de si? É bastante evidente que vivemos atados a uma realidade, que nossa liberdade é limitada. Somos prisioneiros de leis rígidas que impedem façamos o que desejar. A começar das leis físicas (3a lei de Newton), no que atuamos mecanicamente, um efeito contrário decorrerá. E veja que essas leis são "automáticas" e não "burocráticas" como vc diz.

      Então, eu vejo que o Espiritismo apenas expandiu essa limitação física para o domínio das leis morais - que céticos em Deus e na vida futura dizem não existir. De forma que só há espaço para essa liberdade em uma imortalidade sem responsabilidade na cabeça mesmo de quem rejeita evidências das consequências adversas das leis morais. Quando falo em "evidências" posso nem mesmo me referir às de via mediúnica. O Dr. Jim Tucker (pesquisador de memórias de crianças de vidas anteriores) tem em seus arquivos o caso de um menino que nasceu com mão e braço deformado. Ele se lembra vivamente de ter assassinado seu conjuge em vida anterior. Se isso é consequência de uma burocracia divina eu não sei, mas não dá para se rejeitar tais evidências.

      Excluir
  2. Caro Ademir, eu não fiz o comentário por ironia ou qualquer outro motivo espúrio, me espanta que o anonimato pareça ser um problema sob o viés espírita, já que uma premissa da pesquisa é justamente não considerar como determinante a identidade do interlocutor. É claro que essa premissa é aplicada somente à comunicações mediúnicas, mas enfim, há inúmeras razões para o anonimato e nem todas elas são ruins.
    Penso que em se tratando de leis naturais o melhor seria pensarmos em termos de possibilidade ou impossibilidade e não em termos de autoridade "é permitido ou não". A rigor a permissão teria que ser dada por algo ou alguém e isto não está em questão por ora. Isto posto, no que se refere ao suicídio, poderíamos pensar nos termos de que é possível retirar a própria vida embora nos seja impossível extinguí-la, pois a vida encarnada não é se não uma forma de vida.
    Por outro lado, poderíamos dizer que não é recomendável que se busque o suicídio, pois de um ponto de vista amplo, ele é impossível já que o espírito é imortal. No entanto teríamos que nos perguntar se as justificativas para o suicídio adviriam sempre da convicção de que o ato nos deixaria de fazer existir e caso a resposta fosse negativa e a justificativa se assentasse na recusa de um problema, uma dificuldade, um desgosto, a convicção da imortalidade poderia simplesmente facilitar a escolha. Do mesmo modo que nos demitimos de um emprego desgastante ou desistimos de uma carreira ou projeto, por inúmeras razões que não nos prejudique senão momentaneamente. Mas é claro que situações de suicídio são situações limite e a comparação como casos corriqueiros não levam em consideração a intensidade do sofrimento que pode levar ao ato. No entanto penso que a decisão do ato é incomensurável com quaisquer tentativas de restrição moral ou sanção, já que ele é inevitavelmente a transgressão, pela negação, do limite moral, da lei, da regra de convivência. A culpa posterior ao feito e a sanção sofrida pela lei divina é completamente compreensível e no entanto ela apenas se poderia colocar como diferença de grau quando contrastada com a culpa e com determinadas formas de sanção que nesta vida sofrem aqueles que se suicidam. Enfim, acho que investigar o suicídio enquanto experiência humana encarnada, deva ser mais complexo do que a busca de uma espécie de restrição moral que gerencia a morte como se a evolução fosse uma corrida com um fim último muito bem estabelecido.
    E ainda, se suicídio fosse considerado enquanto busca de cessação da existência – da nossa identidade – e do ponto de vista espiritualista a morte fosse apenas uma variação da forma de existir e não um fim absoluto, a experiência que nos seria mais próxima a esta vontade de não existir seria o esquecimento. E por isso, talvez pudéssemos considerar a reencarnação como uma forma de suicídio inverso. E talvez investigar as justificativas e a necessidade da reencarnação pudesse nos fazer pensar de uma forma mais ampla o tema sem recair numa perspectiva utilitarista e redutora da experiência do suicida.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Não entendi porque vc acha que o "anonimato é um problema sobre o viés espírita". É direito seu permanecer oculto e não vejo problema algum nem relação com o Espiritismo mais do que teria em qualquer outro fórum de discussão. Entendi parcialmente seu último comentário, mas, como tenho formação em ciência exatas, estou mais acostumado às regras rígidas das leis naturais. Como disse, não é "algo" ou "alguém" que impõe a lei, ela se auto realiza, é automática. Talvez a linguagem humana ainda precise da imagem de um tribunal impondo uma pena, de alguém "superior" julgando, mas não é assim que entendo. Pelo que entendi, vc está preocupado em entender o suicídio em diferentes pontos de vista. Sei que a "lei" deve levar em consideração o contexto, de forma que apenas podemos colher informações "a posteri" dos casos, sem possibilidade de pré-julgamento. Assim, pelo que sei, alguém que cometa suicídio levado por circunstâncias acima de suas forças (por exemplo, alguém que, com uma doença mental grave acabe atentando contra a própria vida) tem sua "pena" abrandada (há casos na literatura mediúnica que trazem evidência disso). Enfim, o assunto é complexo e o que vai acima se aplica aos casos de suicídio em "situações normais" quando o suicida tem consciência de seu ato, como foi o caso de Brittany Maynard. Grato por seu comentário.

      Excluir