12 de maio de 2012

Sobre fotos Kirlian e o corpo bioplasmático dos soviéticos.

Cortesia: www.o8ode.ru
Tenho sido questionado por diversos colegas sobre a relevância empírica das chamadas "fotos Kirlian" no campo da pesquisa psíquica. Descobre-se facilmente que são inúmeras as referências e citações espíritas a esse tipo de fotografia elétrica que fez muito sucesso na década de 80. Diz-se, por exemplo, que esse tipo de fotografia revela a contraparte não física dos seres vivos e, até mesmo, que seria uma maneira de se observar o 'perispírito' (vejam, por exemplo, J. Herculano Pires ou Hernani G. Andrade [1]).

Essas fotos são popularmente conhecidas como sendo da 'aura' (do latim "brisa, sopro, hálito, brilho") do objeto fotografado. É comum associar esse nome à 'manifestação energética' [2] de algo relacionado aos seres vivos. Já discutimos antes o conceito de energia e seu significado no contexto da Física. Isso demonstra a existência de uma ampla variedade de significados associados à palavra 'energia' na literatura espiritualista recente que não corresponde ao seu significado original. 

Entretanto, o conceito de 'aura' não existe nos princípios espíritas. Também podemos nos perguntar se a ligação de princípios tais como 'perispírito' a algo como 'aura' pode ser sustentado. Talvez seja possível, por algum processo de associação, vinculá-la a ideia de 'fluido' ou emanações de natureza mais sutil, inobserváveis ordinariamente. Tais emanações podem operar nos processos mediúnicos na forma de subprodutos de processos de metabolismo alterado. Mas, certamente, isso é uma associação indevida, já que o Espiritismo não trata diretamente de questões relacionadas a processo metabólicos,  doenças ou bem estar físico que são popularmente creditados aos chamados 'padrões de aura', supostamente observados por meio das fotos Kirlian. A base empírica do Espiritismo concentra-se na questão da mediunidade e reencarnação é ao redor desses conceitos que a maior parte das explicações e previsões são formuladas. 

Por isso,  fazemos aqui alguns comentários sobre esses conceitos e noções frequentemente mal compreendidas por conta, principalmente, de falhas na definição dos conceitos, falta de clareza na linguagem e dificuldades de compreensão dos diversos objetos de estudo envolvidos.

O que é uma foto Kirlian

O casal Valentina e Semyon Kirlian.
Foi Semyon D. Kirlian (1898-1978), um técnico de eletrônica na extinta União Soviética, quem teve, pela primeira vez em 1939, a ideia de fotografar o efeito corona  presente em corpos condutores sujeitos a elevadas tensões elétricas. Para entender o efeito corona, é preciso entender primeiro o que é uma 'descarga elétrica' [3]. 

Uma descarga elétrica é um caminho luminoso formado pela abertura, no meio transparente (no caso, o ar) de uma via de condução para íons (partículas carregadas). Tais íons são formados e conduzidos pelo campo elétrico presente no ar e imposto por algum gerador (pode ser por separação de cargas na atmosfera durante as tempestades). Esse campo elétrico provoca dissociação de átomos (ou seja, átomos do ar perdem elétrons) e formam, além dos elétrons arrancados, os íons responsáveis pelo transporte da corrente elétrica. O fenômeno é luminoso, pois ocorre recombinação dos íons, o que gera luz. Tanto que, da análise espectral da luz, é possível conhecer a constituição química do ar onde a descarga ocorre. O fenômeno é complexo, pois depende das propriedades do ar ou gás onde ocorre a descarga: assim, há forte dependência com a pressão do ar, por exemplo, além de outros fatores.

Fig. 1 Diagrama esquemático do arranjo para fotos Kirlian.

Campos elétricos podem existir não somente como tensões estáticas, mas também na forma alternada (chamado campos de corrente alternada), com uma frequência característica (período de oscilação). Portanto, é possível obter o efeito corona tanto com campos estáticos como alternados que se comportam de forma diferente (por conta da oscilação da corrente elétrica) dos campos estáticos. Kirlian trabalhava com geradores de alta tensão com frequências entre 75Khz e 200KHz (tais geradores podem, por exemplo, serem usados na transmissão de rádio). Ao se interpor um objeto 'vivo' entre uma placa condutora energizada e um filme fotográfico, os campos elétricos produzidos pelas descargas na 'interface' entre o objeto e a placa irão produzir o efeito corona que poderá ser registrado em filme. Acontece que os mesmos efeitos (principalmente de cores) também podem ser obtidos com objetos inanimados, contanto que eles sejam condutores. Também aqui há dependência com vários fatores: com a pressão exercida pelo objeto, com a constituição do gás (de que espécie química ele é feita), se for ar, se há presença de oxigênio ou não, se há presença de umidade etc.

A utilização de um vidro transparente condutor (em substituição à placa na Fig. 1) permite a filmagem do efeito corona produzido pela descarga (uma técnica já usada por Kirlian), dispensando o uso de filmes químicos. Esse arranjo é suficiente para demonstrar o desaparecimento das cores, indicando que a obtenção dessas, além da dependência com os gases e pressão exercida pelos dedos, está ligada à presença do filme. 

O 'corpo bioplasmático'

Foi Kirlian quem afirmou, pela primeira vez, que os padrões de forma e cor obtidos estavam relacionados com o estado do indivíduo que se submeteu à fotografia. Ele chamou esse de 'efeito psicogalvânico' [4]. Entretanto, ele também forneceu uma explicação bem física para o fenômeno: trata-se de uma manifestação da mudança de condutividade da pele com o estado psicológico.  Como dissemos, o resultado dos padrões depende de um conjunto grande de fatores (além do próprio ar e da presença do filme), em especial a condutividade elétrica da pele e, talvez, a emissão de gases na cercanias do corpo - fenômenos relacionados com o estados fisiológicos e psicológicos (todos conhecemos o umedecimento das mãos com o nervosismo).

Entretanto, as imagens foram frequentemente exploradas para revelar aspectos muito sutis da personalidade em um processo suspeito de extrapolação da ideia original de Kirlian. Aspectos comerciais motivaram também a exploração. Assim, estamos diante de um fenômeno que apresenta duas faces: o de realidade e o de extrapolação. É realidade que os padrões de efeito corona, em tese, podem estar fortemente correlacionados com o estado fisiológico dos indivíduos submetidos ao processo da fotografia Kirlian. Entretanto, o 'quão forte' essa correlação pode ser afirmada, ainda está sujeita a exploração teórica e experimental, constituindo um genuíno campo de pesquisa.


Mas é uma extrapolação incorreta assumir qualquer ligação do efeito Kirlian como uma evidência fotográfica de conceitos espíritas tais como o perispírito, mesmo na sua interpretação de 'corpo bioplasmático' [1]. O que seria esse corpo? O 'corpo bioplasmático' pode ser entendido no sentido original dado pelos então soviéticos: como conjunto de propriedades elétricas associadas ao organismo humano e que é alterado por estados psicológicos. Quanto ao perispírito, ele é o corpo que reveste o Espírito e é composto de um tipo de substância muito mais sutil, não evidenciada de forma simples por nenhum tipo de equipamento, por enquanto. São conceitos expressos em doutrinas e linguagens totalmente diferentes, o que torna difícil a absorção apropriada de um no outro.

A que se deve este estado de coisas?

Em um posto anterior, discutimos brevemente doze obstáculos ao estudo científico da sobrevivência e a existência do espírito. Esses obstáculos devem ser entendidos como problemas na compreensão do objeto de estudo dessa nova ciência, que já se batizou de 'ciência espírita'. O obstáculo que numeramos 5 e 6:
  • (5) Tentar "detectar" o espírito por meios diretos: há uma quantidade enorme de pessoas que acreditam que manifestações físicas (efeitos físicos) são 'manifestações espirituais'. Outros dizem que, se o Espírito existe, ele necessariamente deve deixar rastros mensuráveis. Aqui, a falha é na compreensão do objeto de estudo:  a matéria se deixa apreender por determinados tipos de sinais (cores, sons, formas, gostos etc). O Espírito tem pensamento, vontade e sentimentos, todos atributos inacessíveis do ponto de vista sensorial (ver novamente a referência [5]). Não é difícil perceber que a questão não pode também ser decidida apelando-se para uma amplificação no nível de acuidade ou 'precisão' do equipamento.  
  • (6) Tentar "mensurar" o espírito: uma variante do erro anterior;
A tentativa de se usar a fotografia Kirlian insere-se nesse problema. Torna-se um obstáculo, pois gera mais uma falsa impressão de que, caso não puder ser resolvido por esses meios de observação 'direta', então as propostas espíritas necessariamente encontrarão dificuldades em se afirmar como verdades. A insistência em querer manter o 'corpo bioplasmático' como um interpretação do perispírito, longe de ajudar, torna menos clara a proposta espírita, inserindo variáveis e dependências que o problema real (do espírito) não tem. Além disso, gera outra falsa impressão em céticos que compreendem bem o significado puramente físico desse 'corpo' proposto pelos então soviéticos.

Assim, os espíritas devem avaliar de forma cuidadosa - o que envolve o contexto dos princípios espíritas - propostas experimentais de se 'medir' coisas que, em tese, não estão sujeitas à apreensão direta, mesmo usando-se aparelhos. 

Referências e notas

[1] Para tanto, basta consultar: "Parapsicologia Hoje e Amanhã", Capítulo 9, de J. Herculano Pires (8a Edição, Edicel), onde encontramos a seguinte frase:

"É evidente que a designação de corpo bioplasmático, geralmente simplificada para corpo bioplástico, resultou precisamente das séries de experiências realizadas pelos cientistas para verificar as funções específicas do corpo energético. Essas funções fundamentais correspondem exatamente às do perispírito na teoria espírita."
[5] S. S. Chibeni (2010), A Pesquisa Científica do Espírito.


15 comentários:

  1. A visão apresentada aqui parece desconhecer que os espíritos não são entidades imateriais, mas apresentam organismo de uma natureza material diferenciada. Toda a ciência espírita empírica baseia-se nesta corporalidade. Embora concorde, em parte, com as colocações sobre o efeito corona, derivar estas observações para a totalidade da fenomenologia espírita é o que se pode denominar em filosofia da ciência como uma generalização apressada.

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  2. Ola Jorge

    Grato por seu comentário e crítica. Mas o meu ponto foi mostrar que, as propostas de se associar o efeito Kirlian com 'corpo bioplasmático' e esse com 'perispírito' são, no mínimo, apressadas. Elas são justamente problemáticas pois levam a se projetar dificuldades conceituais e empíricas de um objeto no outro.

    Quanto à questão do Espírito e sua 'corporeidade', é óbvio que o Espírito é alguma coisa, ele existe. Dito isso, podemos nos perguntar sobre quais seriam seus efeitos. Parece-me que, tentar buscar antes rastros materiais do Espírito com quase exclusão de seu efeitos 'não físicos' (a saber as manifestações intelectuais) é inverter a situação e dificultar ainda mais a aceitação do problema.

    Veja: estamos numa época de redobrado ceticismo e é preciso uma nova metodologia, uma nova maneira de se ver os fenômenos da Natureza que inclua o Espírito como 'uma das forças da Natureza'. Agora, considero um equívoco querer tratar essas questões como se fossem efeitos de natureza material. Isso acontece porque precisamos 'materializar' o Espírito, torná-lo palpável para que seja crível!

    No texto, não disse que o 'corpo perispiritual' é inobservável, apenas que, por enquanto, ele não se deixa apreender por processos normais de observação (com ou não ajuda de equipamentos). Vamos então estudar as manifestações intelectuais e propagar a ideia de que elas provém de forças que, não obstante inobserváveis, existem por si próprias. E isso basta para garantir sua existência, ou não?

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  3. Com o corpo bioplasmático, os cientistas quiseram determinar as funções próprias do corpo energético. E essas funções correspondem às que, na metodologia espírita, são do perispírito. E Herculano apoiou o corpo bioplasmático dos cientistas russos como sendo outro nome para o perispírito, embora possa haver algumas diferenças entre eles. Seriam, pois, semelhantes. Cabe às pesquisas determinar os pormenores, no que o Ademir está envolvido.
    José Reis Chaves, Belo Horizonte, 14 de maio de 2012.

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  4. Olá Ademir,

    Primeiramente, eu concordo completamente com o texto sobre o efeito Kirlian. Soube de um amigo (físico e experimentalista) que tentou reproduzir um fenômeno conhecido como "a folha fantasma", sem sucesso, mesmo sob diversas condições.

    Sobre a questão de investigar o Espírito através de fenômenos físicos, eu confesso que, como físico e espírita, eu já acreditei e me sinto tentado a ainda crer que seria um caminho viável tentar detectar a existência do Espírito via fenômenos materiais, mesmo que sutis. Afinal, o Espírito interage com a matéria já que, para os encarnados, ele(a) comanda o próprio corpo. Porém, eu concordo contigo que tentar encontrar o Espírito via fenômenos puramente físicos é um caminho, no mínimo, muito difícil já que a Física já demonstrou que os sistemas físicos que formam os seres vivos são complexos demais para conseguirmos separar, de modo fácil, o que é efeito puramente material (como o efeito corona) do que possa ser efeito real devido a ação do Espírito sobre a matéria. Daí, concordo contigo na conclusão de que o caminho mais curto para um dia demonstrarmos de modo científico a existência e sobrevivência da alma, ser através de metodologia que priorize o aspecto inteligente dos fenômenos espíritas. Acho que só depois que a humanidade reconhecer a verdade da existência e sobrevivência da alma, é que novas pesquisas surgirão dentro do aspecto material ou físico que irão, então, apenas corroborar o reconhecimento da verdade espírita.

    Um forte abraço,
    Alexandre F. Fonseca

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  6. Ola Alexandre,

    Realmente, é essa a mensagem que queremos passar. Longe de nós querer desanimar os que pensam estarem 'detectando a alma', mas é que as evidências da existência do Espírito são de outra natureza. E são tamanhas e tão abundantes que sentimos como necessário organizar nossa pesquisa e priorizar primeiro esses aspectos não físicos mas, nem por isso, menos reais.

    Abração!

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  7. Oi, Ademir!

    E quanto às materializações, como a de Irmã Josefa? Elas não seriam uma forma direta de observar a natureza espiritual?

    Abraço!

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    1. Na minha opinião não.

      O problema é a ontologia da palavra 'Espírito', precisamos nos entender quanto ao significado das raízes das palavras antes de poder usar os adjetivos 'espiritual' e outras derivadas. Veja a excelente apresentação do Silvio:

      http://www.geeu.net.br/artigos/espirito-fcm2010.pdf

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    2. Vital,

      Melhor explicando: enquanto manifestações de natureza puramente física, as materializações demonstram a operação de forças físicas desconhecidas.

      Enquanto manifestações de inteligências incorpóreas, elas valem como evidências indiretas de manifestação do Espírito. Mas, certamente, elas não são evidências diretas de manifestação espiritual.

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    3. Este comentário foi removido pelo autor.

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    4. As materializações constituem-se, sim, em exemplos de *manifestação* espiritual (cf. terminologia de Chibeni). Outra coisa é dizer que elas sejam evidências diretas da *existência* do espírito, algo que simplesmente não é possível (ver slide 11 da apresentação mencionada).

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  8. Oi de novo, Ademir!

    Posso estar enganado, mas o doutor Hernani, estudioso do assunto, não associava o efeito kirlian a nada espiritual.

    Veja um pequeno diálogo extraído do livro "Diálogos com Hernani Guimarães Andrade" (pag 341):

    Frei: Moeda?! Então, não precisa estar vivo para sair colorido na foto Kirlian?
    Andrade: Você pode colocar o que você quiser, até um pedaço de pau úmido.
    Frei: Gente! Então, esse negócio de Kirlian é totalmente furado...

    Há outros trechos deste livro no link abaixo:

    http://analisando-livro-espirita.blogspot.com.br/2011/11/dialogos-com-hernani-guimaraes-andrade.html

    Abraço!

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    1. Vital,

      Grato por seu comentário. Na série de entrevista no 'Pinga fogo' ele chega a associar o efeito Kirlian ao corpo bioplasmático que é uma associação contestável. Quanto à associação com o perispírito, ela foi feita por Herculano Pires na citação que postei.

      O ponto é que o conceito de 'corpo bioplasmático' só existe hoje na história da parapsicologia, pois ninguém no ocidente (e acho que na Rússia, exceto pelo Dr. Korotkov que é suspeito para falar) aceita a existência desse corpo.

      Abração.

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  9. Concordo com o teor do artigo.

    Se estamos fotografando o efeito corona (ar ionizado em presença de umidade), certamente não estamos fotografando nenhuma aura ou energia vital se expandindo além do corpo e muito menos elementos do perispírito que é ainda menos material que a energia vital ou animal. Se a energia vital ou animal pudesse ser fotografada, já o teria sido por outros equipamentos, muito mais sofisticados e sensíveis do que a câmera Kirlian, que nos dias de hoje pode ser classificada como sendo extremamente rudimentar, mesmo porque se encontra à venda para qualquer pessoa praticar e obter belas fotografias de corpos animados ou inanimados.

    Respeito muitíssimo o Professor Herculano, principalmente pela sua cruzada de ter impedido que a pureza do Espiritismo tivesse sido violentada por traduções grotescas, feitas por gente pretensiosa que desejou enxertar "inovações" àquilo que Kardec havia compilado. Por outro lado, temos que reconhecer que, apesar da biografia do Professor ser extremamente vasta, ela não inclui conhecimentos científicos. Tudo indica que neste caso da fotografia Kirlian ele se deixou levar pelo seu inesgotável entusiasmo pela doutrina. Discípulo fidelíssimo de Kardec, ele certamente concorda de que seja feito o devido reparo às suas afirmações. Como Kardec dizia, ante a Ciência, é necessário se curvar.

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