9 de janeiro de 2011

Crenças Céticas X - Positivismo lógico e indutivismo: as duas bases do ceticismo dogmático.


"Acho que o mais importante defeito dele... era que quase tudo nele era falso." (A. J. Ayer, principal defensor do Positivismo lógico na Inglaterra, sobre o Positivismo lógico).

Muita gente acha que filosofia é perda de tempo, um conhecimento que serve a 'gente metida' ou intelectuais com pouco senso prático. Na verdade, todas as nossas ações e decisões se baseiam em motivações interiores que, muitas vezes, são derivadas de crenças e suposições que são objeto de estudo da filosofia.  Uma vez que tomamos contato com as várias doutrinas filosóficas que existem, podemos compreender melhor porque as pessoas agem de determinada maneira, e até mesmo, prever seu comportamento.

Esse é o caso do pseudoceticismo ou ceticismo dogmático que tem sido objeto de nossas análises aqui.  Podemos nos perguntar: quais são os seus fundamentos filosóficos? A resposta não pode ser outra: o positivismo lógico e o indutivismo ingênuo.

Os positivistas lógicos descrevem o mundo como derivado dos sentidos. Para eles só há sentido em estudar aquilo que esteja diretamente acessível aos sentidos humanos, fornecendo uma visão de mundo essencialmente fundamentada no 'empirismo'. Acreditamos que o positivismo lógico foi uma resposta ao excesso de cuidados com conceitos e ideias que não tem suporte empírico, mais particularmente contra aqueles objetos da teologia dogmática. Historicamente, sabemos que o positivismo lógico (nascido no assim denominado 'círculo de Viena' na década de 1920) foi uma resposta à filosofia de Hegel. 

Um positivista lógico acredita que evidência observacional é indispensável para uma descrição correta do mundo. Na verdade, ele vai mais além e só acredita naquilo em que se possa fornecer uma evidência empírica. Portanto, a descrição positivista do mundo é uma descrição necessariamente pública que despreza entidades que não sejam publicamente acessíveis.

Essa visão positivista tem reflexo imediato nas decisões de investimentos de pesquisa. Uma vez que recursos são escassos, é razoável que o modo 'positivista' de ver o mundo tenha maior influência, já que ele acaba por significar risco menor ao investimento. Parece ser muito menos arriscado investir dinheiro em pesquisas sobre objetos que sejam diretamente acessíveis aos sentidos (que se pode ver, tocar, ouvir ou perceber) do que com aqueles que não são. 

Hoje em dia, o positivismo lógico originalmente criado no círculo de Viena não é mais defensável. A física moderna, a genética e outros ramos da Ciência demonstraram que, para que teorias científicas tenham sucesso, é preciso postular a existência de entidades que não são diretamente acessíveis aos sentidos. Se tais entidades existem ou não é outro problema, bem mais complexo, que o leitor pode aprender buscando por  textos sobre o 'realismo científico'. Por isso, o positivismo se transformou, e antes o que era tomado como 'necessidade de evidência dos sentidos' é hoje substituído por 'evidências empíricas' dentro do chamado 'método científico'. 


No desenvolvimento e justificação desse método, os neopositivista são guiados pelo indutivismo, que se tornou outro fundamento para o ceticismo dogmático. Por 'indutivismo' queremos dizer uma postura filosófica que aceita que o conhecimento pode ser gerado a partir do amontoado de evidências ou observações de fatos singulares. Acredita-se que conhecimento científico genuíno e altamente confiável possa ser criado a partir da observação de um número finito de fatos, desprezando-se o papel que teorias têm na orientação e condução de experimentos ou proposição de observação de fatos. Para o indutivista, as teorias são, na verdade, o resultado do processo de fazer ciência e não tem outro papel a desempenhar. Embora tal postura já tenha sido conclusivamente rejeitada, ela tem grande influência na maneira como o processo de se fazer ciência é defendido popularmente, embora seja duvidoso que tenha qualquer influencia na maneira como Ciência de qualidade é gerada. 

Analisemos, por exemplo, a frase abaixo, traduzida de seu original em inglês. Essa frase foi tirada da 'rationalwiki' um site semelhante à enciclopédia wiki mas que se auto intitula 'racional':

Em geral, fenômenos paranormais colocam-se fora do que seria normalmente esperado ocorrer no mundo real. Além disso, tais fenômenos não podem ser reproduzidos sob condições controladas e, portanto, não podem ser investigados pelo método científico. Por essa razão, eles são classificados como pseudociência. (em http://rationalwiki.org/wiki/Paranormal)

Por que a ênfase na reprodutibilidade e controle? Porque o indutivista acredita que o processo de indução só funciona sob determinadas condições, a mais importante delas é a necessidade de um grande número de observações


Vejamos um exemplo:

Bares noturnos são lugares ideais para se comprovar a tese de que muitos brasileiros são bêbados.

Suponhamos que alguém todas as sextas-feiras, em determinado horário à noite visitasse grande quantidade de bares ou casas noturnas em uma grande metrópole no Brasil e verificasse a presença de pessoas embriagadas. Ele então visitaria outras capitais, sempre à noite, aos sábados e verificaria ainda mais pessoas embriagadas. De acordo com o processo indutivista de fazer ciência, seria autorizado a esse pesquisador enunciar a lei:

"Os brasileiros são bêbados em geral".

Note que, para que a afirmação tenha valor, não é suficiente observar um grupo pequeno de brasileiros se embriagando, mas muitos, talvez milhares, o que é facilmente atingido ampliando a 'base de dados' ou pesquisa de campo. 

Além disso, faz parte da crença indutivista pensar que os dados ou os fatos contem em si tudo o que é necessário para se chegar ao enunciado final ou teoria. Assim, de acordo com tal princípio de 'objetivação dos fatos', o pesquisador não pode fazer qualquer consideração adicional (como, por exemplo, sobre as razões para pessoas beberem em bares à noite) sob pena de ser acusado de parcialidade ou de ser 'tendencioso' em sua pesquisa.

Por que essas considerações são importantes? Porque na defesa de explicações para a fenomenologia dos chamados 'eventos paranormais' (quer dizer, fenômenos espíritas), somos constantemente bombardeados com acusações pseudocéticas da necessidade de 'reprodutibilidade' de experimentos. Isso acontece justamente por influência da crença indutivista que, não tendo papel a desempenhar no desenvolvimento da Ciência (como mostram estudos em História) é invocada para invalidar os fatos ou negar o status de ciência a qualquer teoria ou explicação para esses fatos (que transcendam às explicações populares de embuste ou fraude).

Os fenômenos espíritas (a maioria girando em torno das faculdades mediúnicas) são eventos que exigem condições especiais para ocorrência. Tais condições singulares são apreendidas quando a teoria desses fenômenos é compreendida. Somente assim é possível 'desenhar' experimentos que possam ser repetidos até certo ponto. A confirmação de resultados no campo da pesquisa dos fenômenos espíritas é possível, sem a necessidade de um número arbitrário de repetições. Tais confirmações foram feitas no passado e apontam para a excelência das explicações que sustentam a continuidade da existência para além do corpo físico, e postulam a existência de entidades não observáveis de forma muito mais direta que muitas teorias da física ou da biologia o fazem para determinados fenômenos raros e inacessíveis ao laboratório. 

Quanto mais próximos estivermos da verdade com relação às origens e causas desses fenômenos, tanto mais aptos estaremos para reproduzí-los e aproveitá-los de forma coerente e responsável. Isso explica porque, em um ambiente onde prevaleça o ceticismo, a descrença e o deboche dessas ocorrências, elas dificilmente poderão ser observadas e, muito menos, explicadas.

Para saber mais

Sobre o Positivismo Lógico:
Sobre o Indutivismo ingênuo:

Referências
  • Suppe, Frederick, The Positivist Model of Scientific Theories, in: Scientific Inquiry, Robert Klee editor, New York, USA: Oxford University Press, (1999), pp. 16-24.
  • Chalmers, A. F. O que é Ciência, afinal? ed. Brasiliense, 1a edição (1983).

30 de dezembro de 2010

Crenças Céticas IX - Como refutar qualquer coisa que você não gostar.


Uma das melhores lições que se pode ter da literatura cética é sobre como tratar a evidência, fatos ou dados que estejam em conflito com suas próprias crenças, de forma tal que apenas o seu ponto de vista seja válido.

Uma estratégia comum de desmascaramento é apresentar conjecturas 'ad hoc' para descartar qualquer evidência de uma afirmação X. Essa estratégia funciona como método retórico para se ganhar uma argumentação (especialmente se os leitores estiverem inclinados a pensar como você), mas está longe de ser um argumento científico, porque, em ciência, hipóteses alternativas devem ser testadas, não meramente assumidas como possíveis.

Por exemplo, se cientistas estiverem buscando a causa do mal de Parkinson e a evidência confirmar a hipótese de que níveis de dopamina tem um papel fundamental nessa causa, não cai bem para um 'cético da Dopamina' dizer "Bem, é possível que outras causas desconhecidas existam, você não pode concluir que a dopamina seja importante, porque há outras explicações. Você está apenas manipulando as estatísticas."

Com certeza outras explicações são possíveis, mas nosso cético aqui não pode esperar que cientistas levem a sério o que diz, a menos que ele forneça evidências a favor de sua alternativa (antidopamina), isto é, a menos que ele forneça evidência de que 'outras explicações' podem dar conta da doença de Parkinson e tornar a hipótese da dopamina desnecessária ou implausível.

Uma opinião gerada no conforto do sofá sobre cenários imaginários ou possibilidades 'ad hoc' não é nem hipótese científica nem mesmo uma alternativa de hipótese. Somente se deve tomar tais alternativas seriamente se forem testadas ou confirmadas, ou, ao menos, se existir evidências independentes que façam a hipótese alternativa algo plausível ou relevante para aquele caso específico.

Por exemplo, para confirmar a 'hipótese psi' (sobre a existência de capacidades paranormais), você não precisa excluir qualquer outra possibilidade lógica ou cenário imaginário, porque possibilidades lógicas são, por definição, sempre possíveis e a imaginação é livre e ilimitada.

Hipóteses são confirmadas por suas consequências e predições. Se a 'hipótese psi' prediz, por exemplo, que certos cães irão manifestar determinados comportamentos (como no caso da pesquisa de R. Sheldrake), então a hipótese fica confirmada se tais cães manifestarem aquele comportamento por ela previsto. (Confirmado não significa que seja verdade absoluta, mas simplesmente que os dados empíricos a confirmam, pedem por mais pesquisa e que ela seja aceita de forma provisória).

Será que isso exclui outras alternativas ou outras possibilidades imaginárias? Não, mas possibilidades alternativas tem que ser confirmadas e testadas (ou demonstradas como plausíveis naquele caso específico) para que sejam aceitas como reais e pertinentes, não simplesmente assumidas com verdade porque um crítico de sofá não quer aceitar - por quaisquer razões ideológicas - o que a hipótese diz. Caso contrário, seria possível então rejeitar de forma arbitrária um resultado empírico a favor de qualquer hipótese usando de trucagem retórica com base em qualquer outra possibilidade ad hoc imaginável.

Para deixar esses pontos ainda mais claros, vamos supor que estamos examinando a afirmação "Jader Sampaio é o autor do blog espiritismocomentado.blogspot.com".

Uma foto e evidências facilmente refutáveis: será mesmo que Jader Sampaio é o autor de espiritismocomentado ?

Mas suponha que, dado minha filosofia pessoal, ideologia ou visão do mundo, eu queira desacreditar tal afirmação porque, para mim, é simplesmente impossível (isto é., estou certo que Jader Sampaio não existe, ou porque eu acho que ele não sabe usar um computador e, portanto, jamais poderia ter um blog).

Evidências são fornecidas a favor da ideia de que Jader Sampaio é na verdade o autor de tal blog:
  • O blog tem uma foto dele e um logo que ele criou;
  • Em uma determinada entrevista, um sujeito chamado 'Jader Sampaio' diz que aquele blog é dele mesmo;
  • O endereço IP (e outras informações técnicas) mostram que o blog pertence a alguém chamado 'Jader Sampaio';
  • Outros sites têm links para esse blog com a frase 'Blog de Jader Sampaio';
Se eu quiser refutar a tese de que espiritismocomentado é de Jader Sampaio, posso usar o truque da 'possibilidade lógica/explicação ad hoc/cenário imaginário de sofá' e descartar ou rejeitar as evidências acima:
  • Com relação ao nome e ao logo, posso dizer que isso nada prova porque qualquer pessoa pode fazer um blog e colocar como autor 'Jader Sampaio' e ainda fazer um logo parecido;
  • Com relação à entrevista, posso dizer que se trata de uma evidência anedótica e, portanto, inválida. Além disso, é possível que o sujeito em questão esteja simplesmente mentindo que seu nome seja Jader Sampaio. E, ainda que eu aceite que seu nome seja este, isso nada prova que o blog é dele. De qualquer forma, é apenas 'um testemunho' e, portanto, sem muito valor do ponto de vista científico;
  • Com relação ao endereço IP, posso afirmar que isso nada prova, porque é possível falsificar um endereço IP ou qualquer outra informação técnica como aquelas relativas a computadores ou um servidor específico;
  • Com relação aos links de outros sites para o tal blog e a referência como um 'blog de Jader Sampaio', posso mais uma vez dizer que isso nada prova, porque isso pode ser forjado também. De qualquer forma, é uma evidência anedótica (para um cético empedernido e racional como eu, isso nunca prova nada).
Note que os argumentos acima podem muito provavelmente ser motivados pelo meu desejo de desacreditar (especialmente, se eu sou alguém que mantém uma ideologia ou filosofia que pregue a inexistência de um tal Jader Sampaio). Mas, também, esses são argumentos baseados em especulações de sofá não provadas relativas a outras 'possibilidades' ou cenários imaginários que eu uso para invalidar qualquer evidência ou fato que me é apresentado. 

Note também que todas as possibilidades apresentada por mim são perfeitamente possíveis. Mas isso não as faz verdadeiras em nenhum caso específico. Para saber se tais especulações são verdadeiras, evidências que as suportem devem ser apresentadas (por exemplo, que um hacker tenha forjado um endereço IP em um servidor específico para falsificar também um nome como 'Jader Sampaio').

Se eu afirmar que um fator X causa um 'habilidade psi' em laboratório, então estou fazendo uma afirmação empírica positiva e, se eu sou um cientista, tenho que testar minha afirmação a respeito desse tal fator X para saber se isso é certo ou não (se não estiver correta, minha afirmação é cientificamente inútil contra objeções válidas de cientistas que obtenham evidências positivas para a hipótese psi); não basta simplesmente assumir isso sem evidência empírica. Obviamente, se eu quiser desacreditar a existência de uma habilidade psi, então estarei bastante motivado a aceitar qualquer alternativa ad hoc, mesmo que ela não tenha sido testada  ou confirmada. Mas, nesse caso, não estou mais a fazer ciência, estou simplesmente protegendo minhas crenças com especulações ad hoc e post hoc. Basicamente, estou racionalizando minha fé contra a existência de uma determinada coisa que eu não goste. Isso é, em essência, chamado de wishful thinking disfarçado como retórica científica.

Finalmente, como um exercício intelectual, imagine que você não acredite em uma determinada afirmação (você é livre para escolher qual afirmação será). Você descobrirá, então, se usar especulações ad hoc criativas, que sempre será capaz de se livrar de evidências que sejam contrárias as suas crenças. Quanto mais inteligente e esperto você for, tanto mais criativas e persuasivas serão suas 'especulações ad hoc'. Mas isso não muda o fato de que você está se enganando a si mesmo com um método sofisticado de racionalização de dados, fatos e evidências que desafiem suas crenças.

Em outras palavras, você está usando sua própria inteligência e razão para se enganar. Ao invés de usar isso para encontrar a verdade, você está usando sua capacidade para racionalizar ou proteger suas tendências, preconceitos ou preferências pessoais contra qualquer possibilidade de refutação. É um processo sofisticado de auto ilusão (que também impede que você perceba que esta se enganando).

Ninguém pode estar 100% livre de ser tendencioso ou de truques mentais para evitar essa 'dissonância cognitiva'. Mas, se você ama realmente a verdade, você certamente fará um esforço para controlar sua mente e manter seus preconceitos sob controle consciente. Aprenderá então bastante sobre sua própria mente, e também sobre a mente dos outros.

Este é um texto traduzido  e adaptado do original 'How to debunk any claim that you want to disbelieve', acessível em http://subversivethinking.blogspot.com/2009/04/how-to-debunk-any-claim-that-you-want.html

21 de dezembro de 2010

Crenças Céticas VIII - Alfred Wegener e a fraude dos continentes flutuantes.

Alfred Wegener.
O "impossível" é geralmente fixado por nossas teorias, não definido pela Natureza. Teorias revolucionárias habitam no inesperado.

(...) À medida que a ortodoxia Darwinista varria a Europa, seu mais brilhante oponente, o embriologista já velhinho Karl Ernst von Baer disse com amarga ironia que toda teoria triunfante passa por três estágios: primeiro ela é descartada como uma inverdade, então é rejeitada como contrária à Religião e, finalmente, é aceita como dogma e todos os cientistas dizem que sempre lhe apreciaram a verdade. Stephen J. Gould ("Ever since Darwin", Penguin books, 1991)

Continentes que flutuam como barcos no oceano? Então, o solo que pisamos não se mostra firme, robusto, desde a criação da Terra? Talvez a imensa maioria das pessoas não saiba, mas o chão que nós pisamos todos os dias, sobre o qual dirigimos nossos carros ou praticamos esportes está em movimento. Quando criança, me divertia ao constatar, olhando os mapas das aulas de geografia, que a costa oriental da América do Sul encaixava-se, como se fosse um quebra-cabeças, com a costa ocidental da África. Na minha falta de compreensão, não achava que isso seria mera coincidência, mas ignorava totalmente como aquilo poderia ter acontecido.

Essa observação infantil talvez não tenha passado em vão aos primeiros cartógrafos que, da mesma forma que eu, não conseguiram imaginar uma causa simples para semelhante “coincidência”.

De qualquer maneira, a ideia de que os continentes flutuam sempre foi considerada uma heresia científica ou, usando termo mais modernos dos céticos, uma "pseudociência". Evidências alinhadas por seu grande proponente, Alfred Wegener (1880-1930), foram completamente desprezadas e ridicularizadas como erros, incongruências de alguém que, não sendo geólogo, jamais poderia se aventurar em tal campo. Avaliar e estudar a saga de Wegener na defesa da teoria dos continentes flutuantes oferece ao estudioso uma oportunidade para compreender a maneira como a ciência é fabricada e as consequências do ceticismo no seu desenvolvimento.

Diz-se que o ceticismo é importante nas ciências. Ele teve um impacto relativamente profundo na história desse herói que foi Wegener. Ninguém melhor que o paleontólogo e biólogo evolucionista S. J. Gould (1941-2002) para nos contar essa estória, que fala tanto das certezas como das dúvidas no processo de fabricação do conhecimento. O texto abaixo (em azul) é uma tradução nossa de trechos do Cap. 10, Continental Drift, de 'Even Since Darwin' (Penguin books, 1991):

Por que tal profunda mudança (no pensamento científico) teria ocorrido em tão curto espaço de tempo, como em uma década? (Referindo-se à mudança na opinião dos cientistas sobre a teoria de Wegener) 
Muitos cientistas sustentam - ou ao menos argumentam opinião para o público - que sua profissão marcha para a verdade sob a orientação de um procedimento infalível chamado 'método científico'. Se isso fosse verdade, minha questão teria fácil resposta. Os fatos, tais como se apresentavam 10 anos atrás, falavam contra o deslocamento dos continentes; desde então, aprendemos mais e revisamos nossa opinião de acordo com tal aprendizado. Argumentarei que tal cenário não pode ser aplicado de forma geral e é profundamente impreciso nesse caso. (...)

Considero essa estória como típica do progresso científico. Novos fatos, colecionados de forma antiga sob a orientação de velhas teorias raramente resultam em qualquer revisão substancial do pensamento. Fatos "não falam por si mesmos"; são interpretados à luz da teoria. O pensamento criativo, tanto nas ciências como nas artes, é o motor da mudança de opinião. A Ciência é uma atividade quintessencialmente humana, não é algo mecânico, uma acumulação robótica de informação objetiva, guiada por leis de lógica para uma interpretação inescapável. 
Duas são as fortes evidências a respeito da deriva dos continentes, que eram 'varridas para baixo do tapete' quando a teoria de Wegener era herética:

1. A glaciação no Paleozóico tardio. Cerca de 240 milhões de anos atrás, geleiras cobriam partes do que é agora a América do Sul, Antártida, Índia, África e Austrália. Se os continentes fossem fixos, tal ocorrência torna difícil explicar certos fatos. (...). Todas essas dificuldades evaporavam se os continentes austrais (incluindo a Índia) estivessem unidos durante o grande período de glaciação, e localizados mais abaixo, cobrindo o polo sul; as geleiras sul americanas moveram-se da África, não de um oceano aberto; a África 'tropical' e a Índia 'Semitropical' estavam próximas do polo sul; o pólo Norte localizava-se no meio de um grande oceano, de forma que geleiras não poderiam ter se produzido no polo norte; 

2. A distribuição de trilobitas cambrianos (artrópodes fósseis que viviam entre 500 a 600 milhões de anos atrás). Os trilobitas cambrianos da Europa e da América do Norte dividiam-se em duas faunas diferentes com uma distribuição bem peculiar nos mapas modernos. Trilobitas da província 'Atlântica' viviam por toda a Europa e em algumas áreas da costa mais oriental da América do Norte - (oriental e não ocidental). Newfoundland e o sudoeste de Massachusetts, por exemplo. Trilobitas da província 'Pacífica' viviam por toda a América e em alguns locais da costa ocidental da Europa - norte da Escócia e o noroeste da Noruega, por exemplo. É muito difícil dar conta dessa distribuição se os dois continentes estivessem distantes 3000 milhas um do outro.  
Mas a deriva dos continentes sugere uma estranha solução. Em épocas Cambrianas, a Europa e a América do Norte estavam separadas: trilobitas atlânticos viviam em águas pela Europa; trilobitas pacíficos em águas na América. Os continentes (agora incluindo sedimentos com trilobitas encrustados) moveram-se um na direção do outro até se juntarem. Mais tarde, se separaram novamente, mas não exatamente ao longo da linha de onde haviam se juntado. Restos espalhados da Europa antiga, contendo trilobitas atlânticos permaneceram na parte mais oriental da América do Norte, enquanto que algumas restos da velha América do Norte ficaram grudados na parte mais ocidental da Europa.


Em apenas alguns segundos, assista milhões 
de anos de deslocamentos nunca antes imaginados pelas gerações anteriores.
Tais exemplos são citados como "provas" da deriva hoje, mas eram sumariamente rejeitados nos anos anteriores, não porque os dados fossem menos completos do que hoje, mas porque ninguém imaginava um mecanismo que fizesse mover os continentes.

(...) Na verdade, a superfície da Terra parece estar dividida em menos de uma dezena de "placas" maiores, limitadas em ambos os lados por zonas de criação e destruição. Os continentes estão congelados entre tais placas movendo-se com elas à medida que o solo oceânico se afasta de zonas de criação. A deriva dos continentes não é mais orgulhosa de si, ela se tornou conseqüência passiva de nossa nova ortodoxia - a tectônica de placas.
Entretanto, até ganhar o status de ortodoxia, a teoria de Wegener sofreu o escárnio e a desconsideração. Ela hoje nos apresenta como um exemplo vivo que se contrapõe  a qualquer tentativa de estabelecer métodos rígidos na pesquisa científica e de que a Natureza não revela tão facilmente seus mais profundos segredos. Considerado como uma fraude, seu proponente não viu em vida sua aceitação pela comunidade científica, mas morreu acreditando nela e que, dentro em breve, todos haveriam de considerá-la seriamente.




11 de dezembro de 2010

Crenças Céticas VII - A vida além da vida e a necessidade de uma nova Ciência.


Vimos anteriormente que, para que haja Ciência, são necessárias ao menos três coisas: um objeto de estudo, uma linguagem e um método. O pseudoceticismo, em geral, invoca a autoridade da Ciência para si para desqualificar determinadas afirmações sobre o mundo, justamente aquelas que não se alinham com as crenças pseudocéticas.

Vejamos uma afirmação clássica do pseudoceticismo:
A Ciência não comprova a existência de vida depois da morte. A Ciência não comprova a existência de Espíritos.
Qual o significado aqui da palavra 'Ciência'? Em quase todas as discussões que vemos sobre o assunto, parece que podemos interpretar 'Ciência' como o corpo de pesquisadores, o conjunto de cientistas, a opinião de técnicos ou especialistas em assuntos considerados científicos. Se este for o caso, já vimos anteriormente que a opinião dos cientistas não pode ser tomada como autoridade, principalmente no que diz respeito àquilo que foge à especialidade deles. Se não, vejamos:

Qual pode ser o 'objeto de estudo' dessa ciência que desaprova a vida além da vida? Será que a ciência contemporânea, entendida como opinião dos cientistas, tem se debruçado sobre essa questão específica que é negada pelos céticos? A resposta é claramente um não, uma vez que a comunidade científica tem coisas muito bem definidas - objetos de estudo específico - com que se ocupar.

Mas não podemos interpretar como 'comunidade de cientistas' a palavra 'Ciência' na afirmação em análise, mas sim esta como o corpo de conhecimento, sem apelo algum à autoridade de seus principais executores e responsáveis.

Nesse caso, somos obrigados a apontar o objeto de estudo, o método e a linguagem que seriam responsáveis por tal negação... Onde, na ciência contemporânea poderemos encontrar isso? Que ramo da Física, Astronomia, Biologia, Química poderia ser invocado para afirmar que, de fato, inexiste vida após a morte?

Muitos céticos dizem que é isso que vemos ocorrer todos os dias quando animais são mortos ou pessoas deixam a vida em hospitais. Não há evidências - repetem eles - diante de um corpo inanimado, que nunca mais demonstrará nenhum sinal de vida após os momentos derradeiros, de qualquer coisa além. Fisiologistas e bioquímicos de renome poderiam ser invocados para descrever os processos celulares internos que ocorrem após a morte de tecidos biológicos, neurofisiologistas poderiam enfileirar imagens de tomográficas mostrando o apagar das luzes na massa encefálica e chegaríamos realmente a formar uma imagem completa da morte?

Sobre as consequências dela para o corpo: sim, o corpo, eis aqui o objeto de estudo que procurávamos. Aqui há ciência positiva, há uma linguagem descritiva e há um método de pesquisa muito bom. Mas será que isso nos autoriza a dar o passo que permite negar a afirmação que analisamos? Será que não estão fazendo como o Cardeal Bellarmino - do caso Galileu - que afirmou não existir evidências diante de uma Terra que parecia bem fixa, imóvel, e do movimento do Sol, todos os dias a se levantar a leste e se por a oeste?

Ao se tentar ir além, afirmarão: isso é metafísica...Mesmo sem saber o significado dessa palavra, aprenderam sua conotação negativa. O problema aqui é simples: trata-se de uma deficiência na compreensão da existência de uma multiplicidade de objetos de estudos no mundo em que vivemos. Se não se reconhece a existência de um determinado objeto de estudo, não pode haver Ciência. Mas o que fazer para que a questão não se prenda às fronteiras da mera especulação metafísica? O fato de eles, os céticos (veja que não estou me referindo aos pseudocéticos, mas aos céticos bem intencionados), não se darem ao trabalho de buscar, pesquisar e procurar.  Muitos céticos não sabem que a Natureza oculta muito bem os seus segredos. Mas uma das coisas que a nova visão do mundo revela pela Ciência é que existem muitos objetos de estudo que não sensibilizam diretamente nossos sentidos.

Tomemos o exemplo do vírus (figura abaixo) e façamos o exercício mental de nos colocar em uma época onde microscópios eletrônicos não estavam disponíveis. Hoje é  fácil acreditar na existência desses seres. Eles foram 'revelados' pela Ciência e são a causa de muitas patologias. Mas, ao dizer isso, estamos numa posição privilegiada. Há razões para acreditarmos que, no que diz respeito à continuidade da vida além da vida, não detemos tantos privilégios.

Imagem do vírus da gripe espanhola. Se microscópios eletrônicos não estivessem disponíveis, como poderíamos ter 'evidências' sobre a existência desses seres microscópicos? Hoje, estamos numa situação privilegiada em relação ao conhecimento da existência desses seres,  mas o mesmo não é verdade com muitas outras proposições a respeito do Universo.
Se não conseguem 'encontrar' o Espírito, sede da consciência, é porque dele formaram uma ideia errada. Usam concepção arcaica, antiga, de uma época quando nosso conhecimento do mundo era muito pequeno, tão pequeno que ainda nos julgávamos no centro dele. Como se recusam a postular a existência de um novo objeto de estudo, não podem aceitar novos fatos, não podem ir além.

Entretanto... ela se move! afirmaria Galileu. Precisamos de uma nova ciência para nos revelar nosso futuro. Novos Galileus, novos Newtons e novos Laplaces deverão se debruçar sobre esse novo tema, a fim de descobrir suas leis, desenvolver uma nova linguagem e um novo método. Essa será o principal tema da Ciência do futuro.