18 de setembro de 2013

Livro VI - Os vivos e os mortos na sociedade medieval (de J.-C. Schmitt)

Sem indagarem se tais contos, despojados dos acessórios ridículos, encerram algum fundo de verdade, essas pessoas unicamente se impressionam com o lado absurdo que eles revelam. Sem se darem ao trabalho de tirar a casca amarga, para achar a amêndoa, rejeitam o todo, como fazem, relativamente à religião, os que, chocados por certos abusos, tudo englobam numa só condenação. (A. Kardec, 'O Livro dos Médiuns', Primeira Parte, Capítulo 1, 'Há Espíritos?')

Eis a criança investida da função de médiume seus vaticínios, de início reservados ao círculo dos vizinhos, logo são recolhidos e explorados pelos clérigos. Um desses últimos chega mesmo a substituí-la  para traduzir, sob forma adequada, as verdades de além-túmulo. (J.-C. Schmitt, ref. 1, p. 112)

Todas as épocas da humanidade testemunharam a existência de fenômenos invulgares, ocorrências incomuns ou insólitas que participaram e foram incorporadas ao imaginário e à cultura de povos. Frequentemente, cientistas humanos analisam narrativas antigas onde vestígios alterados segundo a ótica de uma determinada época aparecem. Esse é o caso da obra de Jean-Claude Schmitt (1999) "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" com tradução de Maria Lúcia Machado e editado pela Companhia das Letras (Ref. 1).

Há que se distinguir dois aspectos após a leitura dessa obra de Schmitt:
  1. Aspecto sociológico ou relativo às ciências sociais (historiografia) que cuidam de interpretar as narrativas culturais que formam as crenças e que embasam uma 'teoria' ou explicação sociológica para as narrativas (Ref. 2);
  2. Aspecto fenomenológico: ao leitor que conhece a fenomenologia espírita não deixa de ser no mínimo curioso observar as várias ocorrência descritas por Schmitt e correlacionar a fontes que atestes sua origem mediúnica (e, portanto, fenomenologicamente real).
O mais interessante de uma leitura espírita da obra de Schmitt é que muitos detalhes passam desapercebidos do historiador, que está interessado na sua teoria histórica para os fatos. Sabemos que a história não é uma ciência exata e suas afirmativas dependem bastante das interpretações e das 'escolas de pensamento' que a influenciam. Portanto, analisar a obra de Schmitt (mesmo que muito brevemente como fazemos aqui) é um exercício interessante de aplicação do conhecimento espírita.

Ao apontar a origem fenomenológica das narrativas, nossos comentários reforçam o aspecto historiográfico, mostrando como elas foram interpretadas e recontadas ao longo do tempo, que é objetivo da obra de Schmitt. O fenômeno de interpretação social e cultural é, assim, tão real como aquele que lhe dá origem. Mas, é preciso separar cada componente, cada contribuição do fenômeno psíquico, segundo ele nos parece hoje, para que se possa conhecer aquele, histórico, que lhe deu origem. Isso possibilita compreender desdobramentos históricos que não são aparentes na narrativa e que jamais poderiam ser descobertos pelo historiador desprovido do conhecimento relativo à fenomenologia das ocorrências espíritas.

Estamos diante assim de futuras aplicações do conhecimento espírita que apenas vislumbramos a partir de uma análise muito limitada como a que aqui fazemos. A obra em apreço é composta de nove capítulos:

1) A rejeição dos fantasmas;
2) Sonhar com os mortos;
3) A invasão dos fantasmas;
4) Os mortos maravilhosos;
5) O bando Hellequin;
6) O imaginário domesticado?
7) Os mortos e o poder;
8) Tempo, espaço e sociedade;
9) Figurar os fantasmas.

Por ser relativamente densa, escolhemos alguns trechos da narrativa que denunciam a origem psíquica (mediúnica) das narrativas analisadas por Schmitt.

Castelo do imperador Carlos IV em Praga do século XIV. Esta construção foi palco de um curioso incidente de efeitos físicos. Com o tempo, a narrativa de Carlos se transformou no 'sonho do imperador', não obstante todos os cuidados que ele teve em certificar a veracidade do ocorrido.
Alguns exemplos

Manifestações físicas

Um exemplo interessante, que demonstra também como relatos são modificados ao longo do tempo, foi o 'sonho' do Imperador Carlos IV (p. 56):
Esse tipo de relato autobiográfico de fantasma parece muito raro. No entanto, pode-se relacionar com ele o relato bem mais tardio que o próprio imperador Carlos IV (1348-1378) fez, em latim, de uma agitada noite passada em seu castelo de Praga. Seu quarto encontra-se na parte antiga do castelo. Seu companheiro Buchko ocupava um outro leito  no mesmo quarto que, apesar da noite, está muito claro pelo fogo que arde na lareira e pelas numerosas velas acesas. Todas as portas e janelas estão fechadas. Mas, mal os dois homens adormecem, um rumor de passos no quarto os desperta. O imperador ordena que seu companheiro se levante, mas este não vê nada de anormal; antes de deitar-se novamente, ela atiça o fogo, reacende os círios e bebe uma taça de vinho que recoloca perto de uma grande vela. Contudo, mais uma vez o imperador ouve alguém que vai e vem, embora ninguém esteja visível. Depois, de súbito, a taça recolocada por Buchko é projetada como por uma mão invisível por cima do leito deste contra a parede, antes de voltar a cair no meio do aposento. (3)
O próprio imperador tomou todas as precauções para atestar a veracidade do ocorrido, que tem todos as características de uma manifestação de efeitos físicos e que foi descrita de forma semelhante em inúmeros outros relatos. Mas, o que aconteceu muito tempo depois? A narrativa de Carlos IV foi contada e recontada inúmeras vezes, até que atingiu uma versão em que o demônio apareceu para o imperador em um sonho. O processo de transformação de uma história real, baseada em fenômenos que hoje são conhecidos, foi paulatinamente apropriado pela Igreja e satanizado para servir a outros propósitos. Em várias outras passagens de documentos da época, essa história é conhecida como o 'sonho do imperador' e teria sido assim narrada hoje não fosse os documentos oficiais do monarca Carlos IV.

Manifestações de Espíritos em Beaucaire, França, em 1211: uma "pequena codificação" em pleno século XI?
A cidade de Beaucaire no sul da França (Languedoc-Roussillon) é o ambiente dos relatos de Gervais de Tilbury. Trata-se de comunicações do Espírito de um rapaz, Guillaume, a sua prima depois de sua morte em uma briga em 1211. O clero local instaurou um verdadeiro tribunal com perguntas e respostas ao Espírito de Guillaume que, auxiliado por seu Espírito protetor, fornece respostas. A narrativa foi adaptada para servir às concepções da época e reforçar a ideia do purgatório na Doutrina Católica.

O episódio conhecido como 'o fantasma de Beaucaire' foi compilado por um contista medieval, Gervais de Tilbury (p. 106 do livro de Schmitt), e narra a história de Guillaume, natural de Apt, morto em uma briga e que aparece a sua prima adolescente em 1211. A narrativa apresenta Guillaume em aparições no quarto da menina, vestido em andrajos e clamando por orações por sua alma. Pode-se identificar a natureza da manifestação através da jovem médium, mas a maneira como é contado e, principalmente, interpretado os ditados do morto, segue rigidamente a crença da época, que via nele uma alma em busca de orações por sua salvação. Entretanto, algumas características do relato são interessantes do ponto de vista espírita: as aparições começam três ou cinco dias após a morte de Guillaume que foi violenta; a jovem sente medo ao entrar em contato com o seu primo e sua conversa é acompanhada pelos pais, que ouvem apenas a voz da menina; várias pessoas aparecem desejosas de 'conversar com o morto' por intermédio da médium;o clero local toma posse do fenômeno e instaura o que Schmitt chama de inquisitio para testar o morto; muito interessante: o morto é acompanhado pela figura de São Miguel que, no simbolismo da época, representa seu Espírito protetor (uma entidade de caráter mais elevado); ao ser instaurado um tribunal para questionar o fantasma, São Miguel é quem, na verdade, dita ao Espírito de Guillaume as mensagens. Vemos então a figura de um Espírito de natureza inferior (Guillaume) que serve de intermediário entre a médium e um Espírito mais elevado. Segundo Schmitt (todos os itálicos são meus, 3):
O defunto confirma em primeiro lugar o horror da morte. A própria palavra lhe é insuportável e o espírito conjura a jovem a falar dela apenas por eufemismos, empregando o termo "trespasse"....O morto recorda as angústias de seu trespasse: viu os anjos bons e os anjos maus disputar sua alma até que os primeiros vencessem. Esse combate faz as vezes, então, de julgamento particular da alma, sem que seja mencionado uma intervenção do Cristo nem mesmo da Virgem... (p. 109)
Ao fim de alguns dias, as almas dos que não são nem santos nem condenados vão para o purgatório, designado, assim, desde o começo do século XIII, por um substantivo. Esse purgatório é aéreo, o que pode corresponder a uma das localizações por vezes alegada do purgatório, mas que o designa sobretudo, na lógica desse relato particular, como um lugar provisório...(p. 109) 
Falando de suas próprias experiências, ele descreve sobretudo a condição das almas no purgatório aéreo. Esse 'lugar' está sujeito a um tempo análogo ao tempo terrestre, com uma alternância de dias e de noites (mas ali as noites são menos escuras do que na terra) e, para as almas penadas, um repouso sabático, entre a noite do sábado e a noite do domingo... O nome de São Miguel não designa um anjo particular, mas uma função de proteção das almas penadas: a cada uma, seu "São Miguel". O do defundo Guillaume sopra-lhe as respostas que ele deve dar à prima ou ao padre. (p. 109) 
No purgatório as almas experimentam um alívio progressivo, apressado pelas preces, esmolas, missas dos vivos e também pela aspersão de água benta. (p.110)
O fantasma insiste muito em suas faculdades sobre-humanas de visão, ou mesmo de previsão. As almas vêem tudo o que se faz na terra. (p. 110)
O fantasma mantêm-se muito perto dos vivos, no mais das vezes à revelia deles. Mas, com a força da autorização divina, ele pode aparecer em dois lugares e de modos diferentes. (p. 110) 
Eis a criança investida da função de médium, e seus vaticínios, de início reservados ao círculo dos vizinhos, logo são recolhidos e explorados pelos clérigos. Um desses últimos chega mesmo a substituí-la  para traduzir, sob forma adequada, as verdades de além-túmulo. (p. 112)
Conforme explicado por Schmitt em sua obra, o relato do fantasma foi sistematicamente modificado para se adaptar às teses medievais católicas de um fantasma como a imagem de um morto, de sua adequação doutrinária à Igreja (o morto Guillaume afirma que é favorável à matança dos Albingenses) etc. As sementes de instruções de além-túmulo foram lançadas, mas caíram em solo infértil e foram adaptadas para seguir ao imaginário e o interesse religioso da época.

abadia de Cluny na França. Segundo Schmitt,  o modelo de sufrágio pelos mortos, a comemoração do 2 de novembro, foi uma 'inovação clunisiana'. As práticas se instauraram depois da constatação das evidências de comunicação e intercâmbio oriundas de diversos relatos medievais, muitos deles no interior de mosteiros como o de Cluny.

Conclusões

Jean-Claude
Schmitt.
Além dos exemplos acima, outros muito interessantes, falam da existência de manifestações mediúnicas extensivas em mosteiros medievais (ver o exemplo de Gertude do mosteiro de Hefta, p. 58, uma abadessa cisterniense que teve visões extáticas com presença de entidades desencarnadas em 1261), da diferença entre os relatos de aparição e o 'sonhar com os mortos', a coleção de relatos de aparição de mortos na abadia beneditina de Marmoutier em 1137 (p. 86), e muitos outros. A narrativa de Schmitt está de acordo com suas teses históricas, mas, como dissemos, é interessante uma leitura espírita, que permite adicionar outras informações quanto à origem fenomenológica de tais relatos medievais. Esses relatos são hoje interpretados livremente por historiadores, que tentam adaptar suas teorias para explicá-los como produtos do imaginário humano. De fato, os desdobramentos, com certeza, estão vinculados às crenças da época, mas a gênese dos relatos não é (4), gênese que ficou impregnada por essas mesmas crenças. 

Fica patente que inúmeros fenômenos psíquicos durante toda a idade média foram registrados, e incorporados à cultura local na França (que é a região de estudo de Schmitt) através do clero. Os relatos lidos nos documentos preservados demonstram as distorções (como no caso do 'sonho do imperador' Carlos IV), os exageros e sua total aderência à crença católica, embora não de uma maneira uniforme, quando muitos dos relatos serviram para desenvolver teses que até então não existiam. A ideia do purgatório, sem dúvida, é a mais notória delas. Essa foi uma ideia que amadureceu aos poucos, com base na observação de fatos mediúnicos em abadias como Cluny, Marmoutier, através das chamadas 'visões monásticas' e outros relatos seculares de visão dos 'mortos', o que atesta a sua contínua comunicação com o mundo dos vivos desde tempos imemoriais. 

Referências
  1. Schmitt, Jean-Claude (1999). Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo, Companhia das Letras. O original tem o título: Les Revenants: les vivants et les morts dans la société médiévale (Gallimard, 1994); 
  2. Sobre esse aspecto, nossos leitores poderão consultar a crítica de Eduardo H. Aubert do FFLCH da USP. (Aubert, Eduardo H. (2001), Rev. hist. n.145, São Paulo, dezembro 2001, (versão impressa ISSN 0034-8309)); 
  3. Consultar o livro de Schmitt (1) sobre todas as referências.
  4. Isto é, a gênese dos relatos está ligada à fenomenologia mediúnica.

7 de setembro de 2013

Carta aos espíritas de alguns séculos no futuro.


Caros espíritas de alguns séculos à frente ou depois disso:

Aqui em 2013, mais ou menos perdidos entre a avalanche de informações de todos os lados na rede ou fora dela, estamos a braços com notícias empolgadas por parte dos que acham que a física quântica, a cosmologia e as ciências em geral irão revolucionar completamente a maneira como encaramos verdades simples como a vida após a morte, as vidas sucessivas e a nossa necessidade de progresso em todos os sentidos.

Muitos insistem que essa mesma ciência, embora inexistindo nela qualquer princípio que afirme a imortalidade do ser e muito menos a sua existência, está destinada a revolucionar o conhecimento das realidades transcendentes, atualizando o Espiritismo, por meio de não sei qual mecanismo quântico que ainda será descoberto, se não o foi, pelos cientistas entrincheirados em seus gabinetes e laboratórios. 

Ninguém aqui está preocupado em desenvolver o objeto de pesquisa dessa nova ciência do espírito tal como ele deveria ser desenvolvido. Não se vêem estudos sistemáticos sobre mediunidade ou reencarnação, como faria Kardec. Aguarda-se apenas o dia em que esses fatos básicos serão todos decompostos pela física quântica aliada a alguma novidade em gravitação derivada de outra teoria cosmológica. Um verdadeiro salto quântico na nossa compreensão da realidade do espírito haverá de sair das mãos dos cientistas materialistas e sem nenhum compromisso com as realidades desse mesmo espírito.

Entre os espíritas de nosso tempo, ninguém conhece os métodos da física quântica, sua linguagem altamente matemática e específica para lidar com a realidade material que se apresenta na forma de uma outra ordem de fenômeno da natureza, que, por isso mesmo, confundem com os novos fenômenos do espírito. Por um efeito de ilusão mental, o vácuo quântico, as especulações em torno de medida quântica ou as teorias altamente especulativas de multi-universo são ainda vistos como "comprovações" de que a ciência de 2013 "está chegando lá"... 

A difícil realidade é que, por enquanto em nossa época, não há nada de novo no front da ciência que a faça menos ligada à matéria e considere o espírito. Em nossa época, mesmo todos os teoremas e corolários quânticos ainda não conseguiram fazer que nossos cientistas se dobrassem à realidade do espírito e se tornassem espiritualistas convictos. Nossas academias permanecem fechadas para a aceitação da sobrevivência, considerada como um desejo humano pueril de continuidade e nada mais

Saudo a todos vocês, irmãos em crença, a partilhar a esperança de uma sociedade feliz e mais avançada em compreensão, caridade e discernimento.

Editor do "Era do Espírito".

22 de agosto de 2013

Sobre cartas psicografadas: artigo na Revue Spirite 2013 (Tradução Leandro S. Pimenta)


O amigo e pesquisador Leandro S. Pimenta traduziu para o francês um artigo de nossa autoria com o título original: "Estatística de Cartas Psicografadas" que será publicado na edição mais recente da Revue Spirite. Esse artigo é um resumo de um trabalho apresentado durante o 8o. ENLIHPE que ocorreu em 2012

O título do trabalho presente na revista é "À Propos de Lettres Psychographiées' e está na página 13 da Edição do Segundo Trimestre de 2013, na seção "Dossier: La recherche Spirite".

Esta edição também traz o trabalho "Las chercheurs du Spiritisme Réunis!" por Leandro Pimenta que é um resumo sobre a LIHPE e sua história.  

Quem conhece a língua francesa e quiser conhecer o trabalho, pode seguir as direções para pedidos de aquisição de exemplares da "Revue Spirite" aqui

Agradecemos aqui ao Leandro o trabalho excelente de tradução.

Outras referências



14 de agosto de 2013

Reflexões sobre uma pseudociência espírita (crítica a um texto CEPA 2012)

Muitos indivíduos, entretanto, mantêm uma visão ingênua da ciência baseado nas seguintes assunções: i) Fatos estão disponíveis diretamente a observadores sem preconceito por meio dos sentidos; ii) Fatos vem antes e não dependem de uma teoria; iii) Fatos constituem uma base sólida e confiável para o conhecimento. Essas assunções tentam explicar a certeza na ciência. Se analisadas com cuidado, entretanto, elas não não têm sentido. (The theory laden observation, super fun...?. Mikesphilosophyblog)

O texto "Reflexões sobre uma ciência espírita" (1), que foi publicado na última reunião da CEPA em 2012, é uma tentativa de se construir uma crítica à ciência espírita, conforme definida por Kardec. Mas, essa crítica parte de uma noção de ciência ultrapassada, que não pode ser aplicada à ciência tal como a conhecemos hoje em dia.

É importante ressaltar que este post é sobre teorias da ciência, sobre teorias do conhecimento, a chamada 'epistemologia da ciência', que pode ser aplicada tanto ao estudo do que está bem estabelecido (as chamadas 'ciências ordinárias') como aquelas que ainda não tiveram tanta sorte, como no caso das ciências psíquicas. Essa aplicação exige considerável tempo de estudo e meditação, conhecimento abrangente do assunto, que é inerentemente complexo. Em suma, é necessário, muitas vezes, formação em uma ciência em particular (2) para que o candidato a epistemólogo 'sinta na pele' o que é verdadeiramente fazer ciência.

O autor de (1) pede que não se cite Kardec em qualquer réplica ao trabalho dele. Ele, certamente, tem razão, uma vez que isso realmente não é necessário. Iremos nos concentrar exclusivamente nos conceitos epistemológicos aventados nesse texto, que podem ser comparados ao que é modernamente conhecido sobre eles.

Uma visão indutivista ingênua

Destacamos algumas frases colhidas de (1) que demonstra um ponto de vista indutivista ingênuo (naïve inductivism):
...a ciência possui características que a distinguem das demais instâncias do conhecimento e a posicionam de forma clara como um saber essencialmente objetivo, experimental e metódico. (p. 2) 
Uma ciência deve pautar-se pelo exame dos fenômenos observados, seu objeto, por meio de experimentos orientados por métodos rigorosos que sustentem alguma garantia demonstrativa das hipóteses formuladas. (p. 4) 
Enfim, para uma proposta científica, que não prescinde de observações que garantam a adequada aplicação da indução, não parece que o tamanho da amostra seja significativo para a consecução de qualquer conclusão acerca do objeto estudado. (grifos meus, p. 8)
A ênfase na 'objetividade', no caráter metódico e experimental caracteriza e define o preconceito indutivista e sua visão de ciência. O indutivista realmente acredita que conhecimento científico genuíno e verdadeiro pode ser gerado a partir de suas 'induções' que requerem um grande número de observações e induções, se possível feitas da maneira mais 'isenta' e 'controlada' possível. Isso é patente no texto (1), onde a palavra 'teoria' ou 'paradigma' não é utilizada pelo autor em suas concepções de ciência. Um indutivista jamais concederá a uma teoria qualquer valor, porque ele acha que abordagem dos fenômenos deve ser feita 'sem preconceito' e uma teoria é uma visão preconceituosa da natureza para ele.

É importante que nossos leitores prestem atenção para essa visão de ciência, pois ela é a base que será usada em (1) para acusar Kardec de ter criado um 'imbróglio epistemológico'. Um verdadeiro imbróglio realmente surge ao se adotar a visão indutivista e ultrapassada de ciência, que não concede às teorias a importância que têm na gênese do conhecimento científico.

Continuando nesse caminho, lemos em (1):
A experiência é a pedra angular do conhecimento científico. Todas as hipóteses jamais passarão disso se não forem corroboradas por experimentos que demonstrem sua pertinência. (p.2)
Toda e qualquer ciência começa com uma teoria e não uma
observação experimental. Em física, por exemplo, é impossível
montar experimentos sem uma teoria que diga como fazer isso.
Como dissemos, a palavra 'teoria' não tem nenhum papel a desempenhar em (1). Ela é substituída por 'hipóteses' que devem ser rigorosamente 'corroboradas por experimentos'. Acontece que qualquer estudante de epistemologia sabe que 'experimentos' só podem ser feitos na linguagem de uma teoria (3). Por causa disso, aprendizes de uma ciência passam anos sendo 'doutrinados' no domínio de várias teorias em particular (um curso de física, por exemplo, dura, no mínimo quatro anos)  Apenas depois que eles demonstrarem domínio da teoria, é que conseguem propor e executar experimentos.
Destarte, é necessário que o objeto a ser perscrutado pelo pesquisador seja passível de verificação empírica, caso contrário não se poderá falar em ciência. (p.2)
O que é passível de verificação empírica é dependente demais da teoria e do estágio de desenvolvimento tecnológico para que seja erguido a 'objeto' de uma ciência. O autor de (1) não percebe que esse empiricismo extremado já se demonstrou em desacordo (3) com o desenvolvimento das ciências. Felizmente, epistemólogos modernos já conseguiram desatar esse 'nó empiricista' que limita severamente o que pode ser estudado cientificamente, além de algemar o processo de pesquisa a uma noção idealizada de rigor e objetividade. Porém, entusiastas do cientificismo ainda acreditam piamente nele.
O método é o que faz um conjunto de fatos observados tornar-se conhecimento científico, pois é o método científico que estipula um conjunto de regras e técnicas com base nas quais devem ser feitos os estudos que se proponham científicos. (p. 3)
Não é o 'método' que torna fatos em ciência, mas uma teoria. Conforme já aventamos (4):
...é a teoria ou paradigma que confere status de ciência a um conjunto de fatos observados, é o paradigma que estipula as regras e procedimentos que devem ser seguidos para se montar experimentos, propor instâncias de observação etc. E, conforme a teoria, tal é a visão que se tem dos fatos. Na grande maioria dos empreendimentos científicos, foi a assunção preliminar de hipóteses e a tentativa de elaboração de teorias que permitiram a construção de novos equipamentos e métodos de investigação. Um exemplo clássico foi o desenvolvimento da teoria atômica na química, não obstante os blocos constituintes da matéria – os átomos – (que são hoje os ingredientes fundamentais de qualquer descrição química da Natureza), não tivessem sido “observados” experimentalmente até a década de 1930.  A doutrina do atomismo, desenvolvida a partir de noções elementares de antigos filósofos gregos, tornou-se crença científica nos séculos que se seguiram ao renascimento na Europa. Reações químicas eram vistas como evidência indireta da natureza fragmentada da matéria a partir de elementos que se combinavam microscopicamente , embora provas diretas dos átomos jamais existissem. (p. 3) 
Ainda sobre a questão de objeto de estudo, encontramos em (1):
É interessante notar que em todas essas ciências particulares o objeto é empírico, ou seja, passível de verificações factuais a partir de metodologias específicas adequadas a cada objeto. As especialidades científicas conseguem “fazer falar” seus respectivos objetos." (p. 4)
Claramente confunde-se o 'objeto' de uma ciência em particular com os fenômenos que ele gera. É objetivo da física estudar 'átomos' ou 'moléculas', desvendar as leis que regulam a interação entre esses constituintes não observáveis do universo (5). Isso é feito através do estudo de fenômenos. Não é objetivo da física simplesmente 'estudar fenômenos' (isso é apenas uma maneira polissêmica de se usar a palavra 'estudo'), mas sim as suas causas. Repetimos: o objeto de estudo da física é, na verdade, os átomos ou suas leis de interação, através dos fenômenos. O leitor deve se atentar para essa importante distinção de escopo, porque ela é a base para a confusão que analisamos a seguir.

Consequências para a ciência espírita.

É com essa visão de ciência que o autor de (1) passa a criticar a proposta de Kardec:
Afinal, não há demonstrações objetivas da existência de espíritos, pois, em verdade, os espíritos seriam uma hipótese a ser verificada, se possível, do fenômeno observado por Kardec e por tantos outros, jamais um “ponto de partida”.(p. 5) 
No caso espírita, o fenômeno observado não é o espírito, que se enquadraria então não como objeto, mas como hipótese daquilo que se pesquisa. (p. 6)
Que objeto poderia, então, fundamentar uma ciência espírita? Aquilo que Kardec chama de fenômeno mediúnico. E apenas isso. (p. 15)
A crítica nesses moldes feita a Kardec, poderia se aplicar plenamente à existência de átomos, conforme discutimos anteriormente. Afinal, quais são as 'demonstrações objetivas' para a existência de átomos e moléculas? Imagens modernas de microscópio de força atômica? Mas, esses microscópios, eles mesmos jamais teriam sido construídos se a 'hipótese' (na terminologia do artigo (1)) da existência átomos não tivesse sido admitida à principio. Essas entidades foram assumidos como existindo na criação de partes e componentes dos microscópios, o que, ou torna a existência delas suspeita, ou invalida a ideia de que o objeto de estudo de uma ciência corresponde apenas aos fenômenos. Portanto, espíritos não tem demonstração sensorial, assim como várias outras entidades não têm: não apenas em átomos, mas campos magnéticos, elétricos, partículas elementares, forças escuras, campos gravitacionais, energias, genes etc. Mas, isso não é problema algum para a ciência ao contrário do que pensa o autor de (1).
Manifestações “inteligentes” podem e são estudadas por outras especialidades científicas, que propõem hipóteses mais coerentes com o fenômeno observado, haja vista não lançarem mão de proposições imateriais para a explicação desses fatos, que caracteriza o princípio lógico da navalha de Ockham. (p. 6)
Não se detalha quais seriam as 'outras especialidades científicas' que estudariam as manifestações inteligentes, mas, diante do quadro apresentado em (1), as causas dessas manifestações podem todas ser reduzidas aos átomos e suas interações que seriam as 'hipóteses mais coerentes', afinal, se não são espíritos ou forças inteligentes independentes, só podem ser os próprios átomos (igualmente invisíveis, mas materiais) nas diversas teorias materialistas da mente em moda na atualidade. É interessante ver o conceito 'navalha de Ockham' (6) na frase acima. Ela parece corroborar a noção simplória de que teorias não são necessárias em ciência, mas que experimentos devem ser feitos para se decidir sobre 'hipóteses' e de que, quando mais de uma hipótese está no páreo, deve-se escolher a mais simples, sem se especificar o que é 'simplicidade' nesse caso (6).

Conclusões

A visão exposta em (1) condena não só a ciência espírita de Kardec, mas toda a ciência moderna ao obscurantismo, a uma época onde apenas aquilo que se podia olhar, ouvir, cheirar ou degustar seria chamado de 'objeto digno de pesquisa'. Julgamos que essa proposta descaracteriza o conhecimento científico tal como o conhecemos, o que explica o título deste post.

Um microscópio de força atômica para 'ver' átomos .
 Esses dispositivos só puderam ser concebidos, 
montados e testados porque uma teoria
que assumia a existência de átomos foi aceita por princípio. 

O erro de se considerar como escopo de uma ciência somente seus fenômenos está na base de várias tentativas fracassadas de se tratar fenômenos psíquicos, dentre elas a metapsíquica de Richet (4) e a parapsicologia (7). O horror a hipóteses e teorias nesse último caso é a causa principal da estagnação desse campo de pesquisa (8).

Para se apreciar corretamente a fenomenologia mediúnica é preciso aceitar integralmente a teoria espírita criada por Kardec, da mesma forma que, para se apreciar corretamente fenômenos físicos é preciso conhecer e aceitar a teoria física que os explique. Infelizmente, no caso das ciências da matéria, estudantes passam anos se dedicando a absorver conceitos e princípios teóricos antes de vislumbrarem qualquer contribuição que possam fazer, muito menos ainda ousar contestar a teoria. Não nos parece fazer sentido rejeitar todo um paradigma científico e querer contribuir, de fato, na explicação de seus fenômenos particulares sem apoio de uma teoria. Repetimos, não existe ciência sem aceitação tácita de uma teoria.

O espírito ou princípio espiritual tem propriedades que não se confundem com a matéria ordinária. Por isso, uma ciência especial deve ser desenvolvida para lidar com ele e com sua interação com a matéria. Os princípios dessa ciência estão contidos na teoria espírita (queiram ou não, é o melhor que temos, por enquanto). Por causa dessa diferença de objeto, é um absurdo querer julgar o caráter científico dessa nova teoria simplesmente invocando-se um empiricismo a partir dos sentidos ordinários que servem exclusivamente à matéria.

Invocar a navalha de Ockham para decidir questões em ciência sem antes conhecer a fundo suas consequências e diversas interpretações pode ser altamente enganoso. Deve-se levar em conta a complexidade das teorias científicas modernas, onde o 'mais simples' parece ser uma questão de estética,  gosto pessoal, preconceito ou falta de conhecimento de um assunto. Graças a Deus, a natureza é o que é e não nos pede permissão para decidir sobre o que deve existir ou não no universo.

Notas e referências

(1) S. Maurício Pinto (2012). Reflexões sobre uma ciência espírita, XXI Congresso Espírita Pan-Americano, Santos, São Paulo.

(2) Por causa da natureza peculiar e independente de seu objeto de estudo, recomenda-se formação em uma "ciência da Natureza" (física, química, biologia etc) e não qualquer outra disciplina que receba essa denominação independente desse objeto.

(3) Chalmers, A. (1999). What is this thing called Science, 3rd Edition. Cambridge: Hackett Publishing Company, Inc.

(4) Xaver A. (2013, Reflexões sobre a ciência espírita, J. Est. Esp. 1, 010202.

(5) Da mesma forma, diríamos que é papel da genética estudar os 'genes' e suas leis (entidades invisíveis responsáveis pelas características de seres vivos) e não apenas os seres que carregam esses genes. Na química, é objeto de estudo estudar as leis que regulam a interação entre moléculas em diversos meios, soluções etc através de reações químicas etc.

(6) O que é conhecido como 'navalha de Ockam' parece ter sido criado como mito no Século 17 e atribuído ao filósofo medieval Guilherme de Ockham (1287-1347), e pode ser expressada pelo aforismo "Entia non sunt multiplicanda praeter necessitatem". Em outras  palavras, que se deve manter a simplicidade e não se multiplicar desnecessariamente o número de causas numa explicação. Ao longo do tempo, esse princípio foi estudado na filosofia por vários pesquisadores. Fora dos círculos acadêmicos e, mais especificadamente nos debates que ocorrem na web entre céticos e os proponentes da fenomenologia psíquica, a 'navalha de Ockam' é usada como arma retórica para defender determinados pontos de vista. Um materialista, por exemplo, pode invocar esse princípio para negar a existência da alma ou princípio espiritual, porque assim não se estaria 'multiplicando as causas'. Entretanto, há vários contra exemplos que desqualificam o argumento ou que o modificam para invocar um ideal de 'simplicidade' de outra maneira. Por exemplo, um espiritualista, por outro lado, poderia invocar a navalha de Ockham e postular a existência da alma ou espírito para salvar qualquer teoria da mente que se tornaria extremamente complexa sem o princípio espiritual. Quem tiver interesse em estudar seriamente a navalha de Ockham deve consultar:
(7) Esse assunto foi tema de vários posts aqui: