20 de maio de 2011

Fim da Religião ou do irracionalismo religioso?

Se a religião, apropriada em começo aos conhecimentos limitados do homem, tivesse acompanhado sempre o movimento progressivo do espírito humano, não haveria incrédulos, porque está na própria natureza do homem a necessidade de crer, e ele crerá desde que se lhe dê o pábulo espiritual de harmonia com as suas necessidades intelectuais.  A. Kardec (4) ('O Céu e o Inferno', Parte I, Capítulo, 1: 'O Porvir e o Nada', parágrafo 13).

Recentemente uma reportagem publicada na 'Folha de S. Paulo' (Maio de 2011) (1) trouxe afirmação de líderes da Igreja Católica de que a ascensão social reduzirá a quantidade de pessoas nas fileiras do protestantismo ou outras denominações religiosas que surgiram como religiões reformadas. Deixando a polêmica de lado, o mais correto seria dizer que a ascensão social, que resulta em maior acesso ao conhecimento, não só reduz o número  de adeptos das igrejas reformadas, mas de todas as religiões que fundamentam sua teologia ou crença em tradições difíceis de serem defendidas, diante da nova imagem do mundo revelada pelo conhecimento científico. Tal observação tem consequências particulares. Para o Ocidente (onde se encontram a maior quantidade de pessoas consideradas cristãs - lê-se - que fundamentam sua crença em interpretações tradicionais da Bíblia) haveria um aumento no número de não cristãos. Essa previsão, em verdade, foi plenamente confirmada por pesquisas de opinião.
Fig. 1. Gráfico do percentual de pessoas na população que se dizem cristãs (azul), agnósticas (verde) e não cristãs (laranja) em uma pesquisa britânica. Há uma clara tendência para o 'desaparecimento' das religiões cristãs. 
Avaliações recentes feitas em pesquisas de atitudes sociais britânicas  (2) demonstraram que, na Inglaterra, o número dos que se dizem 'cristãos' está se reduzindo a uma taxa bastante grande, que se pode considerar 'alarmante' para os líderes das religiões tradicionais (Fig. 1). A época que vivemos é, assim, uma época muito especial, pois parece representar o fim de uma era. Não acreditamos que seja o fim das religiões, mas certamente o fim do dogmatismo religioso, da intransigência e do irracionalismo implicado por determinadas crenças. Para que tenha alguma utilidade, as religiões tradicionais deverão aprender a conviver juntas, de certa forma relativizando as implicações de seus dogmas que, de outra forma, já demonstraram levar a sua recíproca destruição.
A pesquisa britânica demonstra uma tendência em países mais 'desenvolvidos' ou em lugares onde as pessoas tem acesso à educação de qualidade - principalmente científica para o desaparecimento das religiões cristãs. Se nada for feito (e não parece que o será), a curva cinza da Fig. 1 encontrará a origem em duas vezes o intervalo amostrado da pesquisa, que é de 26 anos. Ou seja, em meio século, grupos cristãos serão minoria semelhante aos 'não cristãos' em países mais desenvolvidos.
Fig. 2 Mapa da Europa na pesquisa da Eurobarômetro (2005), Ref. 3, do percentual de pessoas que responderam 'sim'  à questão: 'você acredita em Deus?'
Isso claramente ocorre por conta do efeito 'anti-religão' provocado pelo ensino (Fig. 2). Ao se educar as crianças a compreender que a imagem moderna do Universo não corresponde àquela ensinada pelas antigas crenças, deixa-se de justificar outras crenças como o juízo final, céu, inferno, julgamentos terminais ou a existência de Deus feito à imagem e semelhança dos homens. Isso certamente está na origem para o declínio das religiões tradicionais. Basta que analisemos também, o que recente pesquisa demonstrou na Suécia, reconhecidamente o país o terceiro mais ateu país da Europa. Segundo a Wikipedia: Demographics of Atheism:
'Vários estudos mostraram que a Suécia é um dos países mais ateus do mundo. 23% dos cidadãos Suecos responderam que 'acreditam em um Deus', enquanto que 53% responderam que 'acreditam que existe algum tipo de espírito ou força vital'. Os outros 23% restantes não acreditam nem em Deus ou na existência de um tipo de espírito ou força superior.
Portanto, a conclusão da autoridade católica que analisamos no começo deste texto e que afirmou ser a ascensão social motor para a redução de protestantes, também vale para outros tipos de crenças, inclusive a católica. E, não é o enriquecimento que causa o esmorecimento da fé nas antigas crenças, mas o acesso à educação (de qualidade). Não obstante o enfraquecimento da crença na existência de Deus (conforme a imagem ensinada pelas religiões tradicionais), a maior parte da população ainda crê na existência de algo superior. A pesquisa 'Eurobarômetro' (3) de 2005 resultou no gráfico da Fig. 3. 

Fig. 3 Percentual da população que responderam 'sim' à questão: 'você acredita na existência de um Espírito ou força superior?'  Fonte: Pesquisa Eurobarômetro 2005, Ref. 3.
A Fig. 3 traz o percentual dos que responderam positivamente à questão sobre a crença em um Espírito ou força superior. Curiosamente, os países onde mais se acredita em Deus (Fig. 2), tem o menor percentual de crença no Espírito ou 'força superior'. Tais resultados demonstram positivamente a influência de fatores culturais (através da educação) sobre a crença e demonstram que, por trás dessa 'geografia do ateísmo' o que se vê é o desaparecimento de antigos modelos de crença religiosa. Conforme o parágrafo de Kardec que citamos na introdução deste artigo, a educação científica não fará desaparecer a religião - entendida como movimento que nasce a partir da necessidade de se crer inata no ser humano - como pretenderiam alguns ateus mais duros. O que se está a observar é uma ampla validação do que foi previsto por Kardec  em várias de suas obras (4):
A crença na eternidade das penas perde terreno dia a dia, de modo que, sem ser profeta, pode prever-se-lhe o fim próximo. ('O Céu e o Inferno', Cap. 6, parágrafo 1); 
É isso que se dá hoje com a Humanidade, saindo da infância e abandonando, por assim dizer, os cueiros. O homem não é mais passivo instrumento vergado à força material, nem o ente crédulo de outrora que tudo aceitava de olhos fechados. ('O Céu e o Inferno, Cap.6, parágrafo 22); 
Por muito tempo essa fórmulas lhes satisfizeram a razão; porém, mais tarde, porque se fizesse a luz em seu espírito, sentindo o vácuo dessas fórmulas, uma vez que a religião não o preenchia, abandonaram-na e tornaram-se filósofos.('O Céu e o Inferno, Cap.1, parágrafo 12)
Nenhuma crença religiosa, por lhes ser contrária, pode infirmar os fatos que a Ciência comprova de modo peremptório. Não pode a religião deixar de ganhar em autoridade acompanhando o progresso dos conhecimentos científicos, como não pode deixar de perder, se se conservar retardatária, ou a protestar contra esses mesmos conhecimentos em nome de seus dogmas, visto que nenhum dogma poderá prevalecer contra as leis da Natureza, ou anulá-las. Um dogma que se funde na negação de uma Lei da Natureza não pode exprimir a verdade. ('Obras Póstumas', Manifestação dos Espíritos, parágrafo 7). 
Assim, longe de estarmos vivendo o 'final dos tempos', amanhece um novo dia para a Humanidade.

Referências

(1) http://www1.folha.uol.com.br/poder/915670-ascensao-social-reduz-evangelicos-diz-lider-da-cnbb.shtml
(2) http://en.wikipedia.org/wiki/Demographics_of_atheism
(3) http://ec.europa.eu/public_opinion/archives/ebs/ebs_225_report_en.pdf
(4) A. Kardec: 'O Céu e o Inferno', 23a. Ed. FEB,  'Obras Póstumas', 15a Ed. FEB.

8 de maio de 2011

Crenças Céticas XV - Máquinas que pensam ?

Certa vez, observava com atenção a reação de uma platéia de crianças (com idade entre 4 a 6 anos) em numa apresentação de fantoches em um lugar público. Admirei-me ao ver como uma reforçava a reação da outra ao seu lado, ao ver o comportamento dos bonecos no teatrinho. Dava para se ver, no brilho dos olhos, que realmente acreditavam que aqueles bonequinhos estavam ali, vindos de algum lugar encantado, para contar histórias divertidas. Eles tinham reações engraçadas, alegria, tristeza, raiva, contentamento. Elas se identificavam com eles, percebendo o quanto a maneira de ser dos bonecos não diferenciava muito da mãe ou do pai ao seu lado.

Nossa sociedade aprendeu cada vez mais a depender de dispositivos tecnológicos por uma variedade de razões, tanto comerciais como pragmáticas. Desde da prensa de Gütemberg até os modernos sistemas de inteligência artificial (IA), sistemas automáticos auxiliam a realização de uma variedade grande de tarefas. Mais recentemente, porém, sistemas eletrônicos incorporaram funções interativas com os humanos, além da  descomunal expansão de capacidade de informação por que passaram, o que fez reacender o debate sobre o quão inteligente tais sistemas poderiam ser (ver filme abaixo que mostra um robô tocando violino). O nome 'inteligência artificial' tornou-se assim um símbolo para possibilidades ainda mais futurísticas como a de sistemas artificiais exibirem consciência do mesmo grau de tipo dos humanos.

Mecanismo robótico da TOYOTA tocando violino (2007). A legenda diz que o sistema é parte de um esforço demonstrativo de como tais sistemas poderiam ser usados em casas, hospitais e lugares públicos. Embora a similaridade espantosa observada com humanos, trata-se de um sistema que apenas executa instruções pré-programadas, não diferindo, assim, de um marionetes sem cordas.

Recentemente um dos pais fundadores da idéia de inteligência artificial, Marvin Minsky, foi entrevistado e o resultado pode ser visto no artigo com título sugestivo:  'As máquinas já PENSAM' (1). O assunto é complexo o suficiente para exaltar ânimos entre os proponentes da chamada 'strong AI' (IA forte), ou hipótese que afirmar ser possível a sistemas artificiais pensarem e terem uma mente (com uma consciência junto), e os que não pensam assim, advogando uma forma branda de 'computacionalismo' ou 'weak AI' (IA fraca) que afirmar ser possível programar sistemas que apenas parecem executar atividades inteligentes.

Embora seja possível achar que os proponentes da IA forte teriam algum interesse não apenas 'científico' na continuação das pesquisas nessa direção, pesquisas em IA se sustentarão comercialmente por muito tempo ainda, diante da capacidade de se utilizar tais sistemas para resolver problemas práticos. Logo, o assunto 'IA' tem um grande futuro comercial ainda que não se acredite em IA forte.

Obviamente o debate entre as duas formas de se abordar IA tem implicações com as concepções atuais sobre o que é a consciência e o que é o ser humano. Para nós, as esperanças da IA forte são uma aplicação prática da maneira materialista de se ver o mundo e os seres humanos. Como tal crença demonstra desprezo pelas noções espiritualistas, trata-se assim de mais uma crença cética. Cabe a nós, assim, estudar e compreender quais são os fundamentos que suportam a IA forte.

Comentamos abaixo a entrevista citada acima feita por um repórter da revista EXAME. As questões feitas pelo repórter são excelentes e estão grafadas em itálico.
1) Algum dia computadores serão capazes de pensar? 
Eles já pensam de um certo modo, mas não de outros. Um dia, quando entendermos como funcionam outros tipos de pensamento no homem, então poderemos construí-los nas máquinas.
Todas as esperanças de IA forte repousam no futuro. É como se acreditássemos que o futuro fosse uma espécie de 'caixa mágica' de onde se pode tirar qualquer coisa. Como não sabemos como uma coisa funciona hoje, então, quando soubermos amanhã  isso será possível. Esse tipo de argumentação é muito fraca pois estabelece o desconhecido como fundamento para o que não se sabe.
2) Muita gente diz que os computadores não fazem mais que seguir instruções mais rápido que qualquer ser humano. O que pode compensar essa má reputação da inteligência artificial?   
Errado. Computadores podem seguir outros tipos de processos. Quando programadores não sabem resolver um problema, eles podem programar o computador para realizar uma "pesquisa evolutiva". Ele tenta muitas possibilidades para ver qual funciona melhor. Isto é, claramente, o que fazem as pessoas: resolvem problemas por "tentativa e erro".
O repórter da Exame aqui se esqueceu de dar alguns nomes para 'muita gente' em sua questão. Na verdade, os maiores especialistas em assuntos de consciência e cognição pertence a esse grupo. A resposta de Minsky não poderia ter sido mais evasiva. Obviamente que para se fazer uma máquina realizar 'pesquisa evolutiva', ela tem que ser programada, e isso é feito a partir de instruções simples que computadores sabem realizar rapidamente. Aqui começa a transparecer um argumento que é frequentemente usado por proponentes de IA forte: o de que basta um sistema executar algo que se pareça com o que um humano faça para que ele seja classificado como consciente. Além disso, pessoas não se escoram em 'tentativa e erro' para resolver problemas. Essa é uma noção muito limitada do aprendizado humano.
3) Mas algum dia as máquinas desenvolverão algo comparável à consciência? 
Acho que, se consciência quer dizer a capacidade de um cérebro pensar sobre suas próprias atividades, sim. Muitos programas de computador já fazem algo parecido, portanto já são conscientes em um certo grau.
O conceito de consciência - embora tenha sido usado marginalmente no desenvolvimento tecnológico de sistemas de IA (2) - é relevante para se dar uma resposta convincente à questão colocada. A resposta dada, como se baseia em ideia errônea do que é algo consciente, naturalmente levou à conclusão (igualmente errada) de que computadores já pensam. Mas serviu para dar um título sensasionalista à entrevista.
4) Qual será o impacto disso nos negócios?

Em primeiro lugar, teremos maior produtividade em todos os setores. No entanto, quando computadores começarem a pensar tão bem quanto pessoas - e melhor que as pessoas -, as coisas mudarão de formas que não podemos imaginar.
O aumento de produtividade através do uso de sistemas automáticos já é realidade, independente de terem consciência ou não. Como as esperanças são colocadas sobre algo que não se sabe, tudo é realmente possível. 
5) O senhor diz que não há muita diferença entre o pensamento comum e o pensamento criativo. As empresas estão erradas ao procurar executivos criativos? 
Não há muita diferença entre as pessoas mais criativas e as mais comuns, exceto por aquelas serem capazes de descobrir novos modos de pensar. Claro que pequenas diferenças ao pensar podem fazer muita diferença em quantos problemas a pessoa pode resolver. Um engenheiro muito bom vale por uma centena de engenheiros medíocres, por isso às vezes ele ganha o dobro.
A única diferença entre os que são criativos e os que não são, é que os primeiros criam mais coisas novas. Além da obviedade na primeira frase, é necessário explicar porque o ser humano exibe capacidades tão diferentes e discordantes entre indivíduos. Embora sejamos todos geneticamente idênticos, as diferença de comportamento e de capacidade criativa são muito grandes. "Mas isso pode muito bem ser apenas uma maneira equivocada de se ver as coisas", diria um defensor de IA forte. Para Minsky, 'pequenas diferenças no pensar' criam grandes diferenças na hora de se resolver problemas. Por causa disso, um 'bom engenheiro que vale por 100 engenheiros medíocres' ganha apenas o dobro e não  100 vezes o salário de um engenheiro medíocre...
6) Os defensores da inteligência artificial não cometem um erro ao descartar o livre arbítrio como ilusão? 

Quando você diz "usei meu livre arbítrio para tomar uma decisão", isso só quer dizer "não sei o bastante sobre minha mente para entender como tomei esta decisão".
Essa foi a melhor questão da entrevista. Com a resposta podemos ler o que se passou na mente de Minsky: 'E por acaso você sabe o que é livre-arbítrio?' Mesmo assim, temos que reconhecer, Minsky deu uma resposta educada, embora 'tangencial' à questão proposta. 
7) Quais as implicações éticas de produzir cérebros em linha de montagem? O senhor não teme algo como o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley? 
Diria que podemos antecipar o oposto. As primeiras máquinas industriais eram usadas para repetir processos idênticos em linha de montagem. Mas um robô moderno programado pode fazer coisas diferentes a cada trabalho. Poderíamos ter robôs que projetam terno e sapatos perfeitos para cada indivíduo. Quando pudermos fabricar máquinas que pensam, poderemos fazer cada uma delas de modo diferente. Não seria muito difícil fazê-las muito mais diferentes umas das outras do que as pessoas são.
Mais uma vez o entrevistado dá uma resposta pouco satisfatória. A questão proposta era sobre as implicações éticas e bem ponderáveis - no sentido de se criar 'Franksteins', que se voltem contra seus criadores, uma possilidade perfeitamente cabível diante das apostas de IA forte. As respostas comuns são do tipo: 'toda tecnologia pode ser usada para o bem ou para o mal'.  Assim, se novos Fransksteins conscientes aparecerem, isso já era previsto. Por isso, Minsky preferiu focar o lado bom.

Mas, como tudo é possível, Minsky poderia ter respondido muito bem: 'podemos programá-los para serem sempre escravos e bonzinhos para com seus criadores' . Ah, mas ele não poderia mesmo dizer isso, pois, de acordo com a crença de IA forte sobre a possibilidade de consciências artificiais, elas seriam em todos os aspectos iguais as nossas e, portanto, não poderiam ser programadas para obedecer determinadas instruções. Crendo-se ou não na existência de livre arbítrio, ter consciência implica em certas liberdades que sistemas autônomos artificiais devem ter para serem considerados verdadeiramente conscientes. Em algum momento da história do desenvolvimento da IA, a noção de livre arbítrio terá que surgir... 

Conclusão

Vou terminar como comecei: para a maioria dos crentes em IA forte - apoiados por concepções materialistas do ser humano - a consciência artificial é possível. Analisando a maioria dos argumentos, temos a impressão que eles são como as crianças que se impressionam e fantasiam com o comportamento aparentemente humano de bonecos ou fantoches em um teatrinho.

Crêem eles que a consciência pode ser definida pelos seus efeitos, por se recusarem a analisar, ou sequer acreditar, em suas causas. Na verdade, para o paradigma materialista, o cérebro, como fonte de consciência, não exige que se busque nada além: está tudo lá, grafado entre códigos neurais que aguardam um pouco mais para serem desvendados.  

Referências

(1) http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/0662/noticias/as-maquinas-ja-pensam-m0046093
(2) Ver artigo: Drew McDermott (2007), Artificial Intelligence and Consciousness, The Cambridge Handbook of Consciousness. Cambridge University Press.






30 de abril de 2011

Livro I - Introdução à Ciência Espírita de Aécio P. Chagas


No centenário de nascimento de Allan Kardec (2004), muitas obras foram publicadas em sua homenagem. Dentre elas, destaca-se a 'Introdução à Ciência Espírita' de Aécio Pereira Chagas. Com um estilo simples, o autor consegue abordar uma ampla gama de tópicos que fazem parte dos fundamentos da Doutrina Espírita, suas consequências morais e filosóficas. Um livro com 156 páginas - pouco se considerarmos a vastidão da temática espírita - é bem uma introdução ao assunto.

Para se ter uma ideia dos temas abordados por esta obra, basta que consideremos seu índice: 1 Introdução, 2 - Concepção espírita do ser humano, 3 - Fluidos - I (há dois capítulos separados para o tema 'fluidos'), 4 - Perispírito, 5 - Animismo, 6 - Mediunidade, 7 - Fluidos II, 8 - Efeitos Físicos, 9 - Fluidoterapia, 10 - Evolução e Tempo (que discorre sobre o importante princípio da reencarnação), 11 - Conclusão.  Há ainda 2 apêndices: um sobre o conceito de religião e outro que trata de um resumo histórico do Espiritismo.

Antes do 1o Capítulo, no 'Prólogo', o autor, que é pesquisador acadêmico conceituado, discorre sobre a noção de 'ciência espírita'. Essa noção certamente tem consequências para a noção de universidade e centro de pesquisa acadêmico. De forma bem direta, o autor considera:
As universidades são importantes instituições de ensino e pesquisa, cujas atuais caracteristicas têm cerca de duzentos anos. Formaram-se após a Revolução Francesa (ou Burguesa) sobre as ruínas das universidades medievais. Estas eram centradas na teologia e as novas universidades centram-se nas ciências da matéria: física, química, biologia. Sua ideologia, ou seja, o conjunto de idéias que definem sua estrutura, objetivos, funcionamento etc, é praticamente positivista. Ela é, em sua essência, materialista. Creio que, dentro desta concepção de universidade, nela não cabe o espiritismo.
Essas considerações certamente têm consequências sobre a opinião particular dos que pensam ser possível acomodar a pesquisa espírita dentro dos modelos atuais de centro de pesquisa e universidades. Sendo, pois, a pesquisa acadêmica essencialmente centrada na busca e explicação de fenômenos materiais, é bastante lógico compreender porque existe grande resistência em meios acadêmicos a estudos de outras naturezas. O de uma determinada universidade estar vinculada  a uma religião (como ocorre com as universidades católicas, por exemplo) em nada modifica esse quadro:
Existem universidades vinculadas a algumas religiões: universidades católicas, protestantes, judaicas, entre outras. Pergunto ao leitor, como são elas? No que diferem das universidades não confessionais?
Finalmente, ancorado nessa lógica o autor afirma: A ciência espírita foi feita e está sendo feita nos centros espíritas. O autor explica:
Acho que a pesquisa espírita não foi feita e não está sendo feita nos centros de metapsíquica ou de parapsicologia, que não satisfazem os requisitos da atividade científica, pois elas não contêm uma teoria. Muitos dos notáveis pesquisadores do passado, que trabalharam no estudo da fenomenologia mediúnica, não fizeram ciência espírita, ou melhor, não fizeram ciência nenhuma, pois não possuiam uma teoria. É interessante que alguns até se tornaram espíritas no fim de seus trabalhos.
Do ponto de vista das modernas teorias do conhecimento, a existência de uma teoria - que desenvolve e orienta a pesquisa - é um quesito fundamental para que haja verdadeira ciência. Em um ambiente cercado de ceticismo com relação ao objeto de estudo (que é o Espírito) como haverá de se desenvolver nosso conhecimento sobre o assunto? Este é um ponto fundamental que não pode ser desconsiderado.
  
Ao longo do livro, o autor discorre sobre vários conceitos espíritas - essencialmente fundamentados em 'O Livro dos Espíritos' e 'O Livro dos Médiuns' de A. Kardec por meio de muitas figuras (ou 'esquemas') que, embora não sofisticadas, conseguem explicar os conceitos e que dificilmente encontramos em outros obras. Além disso, o livro apresenta diversos 'exercícios' que orientam o leitor no estudo de obras complementares. Por exemplo, ao final do capítulo 6 (sobre mediunidade) são propostas várias questões. Destacamos uma delas: 6.3 - Um médium sonambúlico 'que vê' é vidente ou clarividente? Tal proposta faz de 'Introdução à Ciência Espírita' um livro diferente de muitos outros, um livro que tem uma proposta pedagógica. 

Interessante e elucidativa é a proposta do autor de explicar os fenômenos físicos através de um capítulo dedicado. Por serem ocorrências que se distanciam dos fatos ordinários, esses são os mais considerados pelos adeptos da teoria do 'embuste'. Em particular, o autor esclarece os fatos da década de 60 em Uberaba, MG, em torno da mediunidade de efeitos físicos de Otília Diogo. Ele faz isso não como alguém que 'ouviu falar do assunto', mas como quem teve contato direto com testemunhas dos fatos: 
Em uma  dessas reuniões, esteve presente também uma equipe de repórteres da revista O Cruzeiro, na época, era o semanário de maior circulação no país. A primeira reportagem publicada pela revista foi fiel aos fatos observados. A segunda, uma semana depois, procurou apresentar tudo como se fosse uma fraude. 
Mesmo assim, em determinados  assuntos, sentimos que o autor foi algo resumido demais. Um exemplo, é o tema 'prece' do capítulo 9 'Fluidoterapia'. O assunto, em nossa opinião, é de certa importância e muito se beneficiaria de maior aprofundamento com o estilo didático do autor.

No último capítulo (11 - Conclusão), o autor trata da noção de prova científica de outras questões ligadas ao assunto e sua relação com os fatos espíritas. Basta considerarmos as perguntas feitas pelo autor no capítulo citado: 'Átomos e moléculas existem? Você já os viu ou os tocou? Como provar que eles existem?, para que tenhamos uma idéia de que a noção de prova na ciência e, principalmente, na ciência espírita, não tem o mesmo status das 'evidências' das ciências forenses ou criminais. O assunto requer muito estudo e uma visão dilatada que inclua a ideia de que muitas coisas no mundo existem apesar de não sensibilizam diretamente nossos sentidos ordinários. 

'Introdução à Ciência Espírita' traduz em seu título, de uma maneira fiel, o que o autor desejou transmitir com ele: uma introdução didática a um tema que tem um grande futuro.
  
Detalhes bibliográficos:
Introdução à Ciência Espírita
Aécio P. Chagas
156 páginas
Biblioteca de Ciência e Espiritismo
Editora Lachâtre (http://www.editora3deoutubro.com.br)
1a Edição (2004)

24 de abril de 2011

Crenças Céticas XIV - "Afirmações extraordinárias requerem evidências extraordinárias."


"Pessoalmente, ficaria muito satisfeito se houvesse vida após a morte, especialmente se ela me permitisse continuar a aprender sobre este e outros mundos, se ela me desse a chance de descobrir como a história aconteceu". C. Sagan

Embora a sua aparência lógica, inexiste frase mais incongruente do que esta que serve de título deste post, atribuída ao astrônomo Carl Sagan Carl Sagan (1934-1996), membro fundador de uma importante seita de céticos. Por isso mesmo, ela veio a se constituir em um dos pilares da crença cética. (1)

C. Sagan foi bem meu herói de juventude: quem não se lembra da série 'Cosmos' no começo da década de 1980, com suas primeiras simulações computacionais, mostrando um viajante em suas viagens pelo Universo, de uma maneira acessível ao grande público? A série era primorosa e, mesmo hoje em dia, a maneira com que ele explica cada tópico em Astronomia deixa saudades. Mais  tarde, descobri que Sagan errava em alguns pontos com relação à história da ciência, o que é de pouca importância comparada a sua postura de defensor infatigável da ciência (lê-se academia) utilizando, entretanto, argumentação algo equivocada, que o levaria a tirar conclusões em contradição com sua visão materialista de ver o mundo. 

Sagan pretendia fazer algo muito importante: livrar a sociedade das trevas da ignorância medieval, do irracionalismo cristão que condenou tantos mártires considerados hereges à fogueira. Nisso talvez ele estivesse certo. Por isso, Sagan chega à conclusões belíssimas com relação a nossa verdadeira posição no Cosmos: no auge da gerra fria fez uso de uma foto tirada por uma das Voyager mostrando tudo aquilo que somos. Nada mais que um grão de areia perdido na imensidão do Cosmos.

'Pale Blue dot': foto da Terra de um ponto muito distante no espaço.
Para C. Sagan, o uso dessas imagens poderia demonstrar ao público
a verdadeira dimensão das disputas e pontos de vista humanos.

Sobre tal foto escreveu ('Pálido Ponto Azul'):
Olhem de novo para aquele ponto. É ali. É a nossa casa. Somos nós. Nesse ponto, todos aqueles que amamos, todos os que conhecemos de quem ouvimos falar, todos os seres humanos que já existiram, vivem ou viveram as suas vidas.
Toda a nossa mistura de alegria e sofrimento, todas as inúmeras religiões, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e saqueadores, heróis e covardes, criadores e destruidores de civilizações, reis e camponeses, jovens casais apaixonados, pais e mães, todas as crianças, todos os inventores e exploradores, professores de moral, políticos corruptos, “superastros”, “líderes supremos”, todos os santos e pecadores da história de nossa espécie, ali - num grão de poeira suspenso num raio de sol.
A Terra é um palco muito pequeno em uma imensa arena cósmica. Pensem nos rios de sangue derramados por todos os generais e imperadores para que, na glória do triunfo, pudessem ser os senhores momentâneos de uma fração deste ponto. Pensem nas crueldades infinitas cometidas pelos habitantes mal distinguíveis de algum outro canto em seus freqüentes conflitos, em sua ânsia de recíproca destruição, em seus ódios ardentes.
Nossas atitudes, nossa pretensa importância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, tudo é posto em dúvida por este ponto de luz pálida. O nosso planeta é um pontinho solitário na grande escuridão cósmica circundante. Em nossa obscuridade, no meio de toda essa imensidão, não há nenhum indício de que, de algum outro mundo, virá socorro que nos salve de nós mesmos. 
Carl Sagan - (de “Um pálido ponto azul”, 1994)
Entretanto, Sagan frequentemente afirmava que a sociedade, que passou a depender da Ciência e da tecnologia, sem saber o que isso significava de fato, deveria arraigar-se ao cientificismo que, segundo ele, era a única coisa que poderia salvar a Terra e a sociedade, tanto de uma hecatombe nuclear como num retorno à Idade Média e de suas fogueiras. Desta forma, Sagan fazia da ciência uma plataforma de pregação de suas crenças céticas e se voltava contra qualquer coisa que não se adequasse à visão corrente resultante de interpretações das teorias científicas, algo que é estranho à atividade científica em si.

Não é papel da Ciência fazer pregações sobre como a sociedade deva se comportar.  A Ciência deve ser sempre neutra em sua visão do mundo porque, da humildade resultante de quão pouco sabemos, apesar de termos progredido tanto em conhecimento, vem a conclusão que inexiste limites para o que podemos aprender com o Cosmos. Encontra-se assim uma contradição no pensamento de Sagan: enquanto afirmava categoricamente que o Universo era infinito em muitas possibilidades, ele negava veementemente a possibilidade de muitos outros fatos que ele considerava crenças pseudocientíficas. Para Sagan, o Cosmos era tudo o que existia e era ilimitado, mas não tanto assim a ponto de validar determinadas crenças que entravam em conflito com as suas próprias. 

Isso fica bem claro na sua visão sobre a Astrologia: dizia que 'os jornais do mundo trazem todas as semanas horóscopos, mas dificilmente notícias sobre o Universo' (isso era uma verdade na década de 1980, mas hoje, com a internet, jornais dedicam muitas reportagens à pesquisa científica). Pretendia que as pessoas comuns, que não escolhem carreiras científicas em suas vidas, tivessem pela Ciência o mesmo interesse que tem por Astrologia. Acontece que essa é uma expectativa ingênua: a Ciência nada tem a dizer sobre o sentimento ou temores das pessoas, enquanto que as colunas astrológicas aparentemente tem (mesmo que sejam na forma de frases auto evidentes). A Ciência jamais será tão popular quanto novelas ou histórias românticas, porque o ser humano tem sentimentos, expectativas, temores e esperanças para as quais a Ciência - principalmente aquela de C. Sagan -  jamais conseguirá dar respostas atraentes.

Em algum ponto de sua pregação cética nasceu o slogan sobre as 'afirmações extraordinárias e das evidências extraordinárias' (Ver nota (1)). Embora pareça uma frase lógica, tão lógica quanto: 'pessoas felizes tem vidas felizes' ou 'planetas rochosos tem densidades elevadas' (para usar um exemplo mais ao gosto de C. Sagan), trata-se de uma falácia lógica (non sequitur) que não tem base alguma na história da ciência. Basta que analisemos alguns exemplos para percebermos sua precariedade, o que ajuda a esclarecer um pouco como se dá o processo das descobertas científicas.

Primeiro há o problema com a definição de 'evidência extraordinária'. O que é uma 'evidência extraordinária'? Uma pessoa comum, tropeçando com uma pedra no chão, dificilmente reconhecerá nela qualquer sinal de um fóssil antigo, fato que um bom paleontólogo será capaz de fazer. Ou seja, uma 'evidência extraordinária' só é realmente em relação a um 'referencial de conhecimento'. Não há evidências extraordinárias de qualquer tipo para quem não acredita em nada ou não sabe nada. No âmbito da Ciência, uma evidência desse tipo só é verdadeiramente 'extraordinária' desde um ponto de vista muito especial e privilegiado, o ponto de vista de uma teoria particular. Na ausência desta, inexiste evidência alguma - ainda que a Natureza nos bombardeie diariamente com vários fenômenos.

Um exemplo interessante (embora distante de nossa realidade diária) foi a 'descoberta' das partículas elementares chamadas neutrinos. Elas foram 'postuladas', ou seja, imaginadas como existentes para explicar certas anomalias em  processos de desintegração radioativa, em particular o decaimento beta. Entretanto, nenhuma 'evidência extraordinária' foi encontrada na condições exigidas por muitos crentes céticos, pois os neutrinos não interagem com absolutamente nada, assim não podem ser detectados diretamente. A menos que tenhamos muitos bilhões de dólares para construir um detector de neutrinos (que consegue isso por métodos indiretos e de forma estatística), jamais teremos qualquer evidência de sua existência.
Pelo menos em física de altas energias,  'evidências extraordinárias
exigem orçamentos extraordinários'. A foto mostra um detector
de neutrinos (interior do LSND ou detector de neutrinos por
cintilação líquida em Los Alamos, USA).
O mais certo é dizer que, no estágio atual de desenvolvimento das Ciências da matéria, 'evidências extraordinárias exigem orçamentos extraordinários', tal é a quantidade de dinheiro necessária para que determinadas 'afirmações extraordinárias' tenham qualquer chance de serem consideradas. Céticos dogmáticos não se dão conta disso e pretendem generalizar a regra para todos os fenômenos da Natureza. E, mais importante ainda, não podemos deixar de reconhecer o papel fundamental das teorias que devem ser aceitas e trabalhadas. Sem elas é impossível desenhar ou projetar qualquer equipamento para tornar visíveis determinadas evidências. Assim, a Ciência verdadeira está longe de ser uma atividade imparcial, pelo menos no que diz respeito à crença que se deve depositar na validade de certas conjecturas a respeito do Cosmos.

Portanto, a frase de Sagan é retórica elegante mas sem fundamento. As contradições com diversas descobertas científicas são tão grandes que deixamos ao leitor a tarefa de encontrar outros exemplos na história da ciência.

Mesmo com essas constatações, não podemos deixar de admirar o brilhantismo e o esclarecimento que Carl Sagan prestou em seu papel de divulgador e como astrônomo. A maioria dos que pretendem seguir seus passos hoje, o fazem exagerando ainda mais no ceticismo e são quase todos desprovidos de sua elegante retórica. Sem a reverência que Sagan tinha pelo imensidade do Cosmos, pretendem ditar normas sobre o que é 'científico' ou não na visão deles, e seu argumento é usado para refutar o que céticos chamam de 'claims' de muitos fenômenos, que devem ser 'provados rigorosamente', o que inclui: exigências de farta repetibilidade (como se na Natureza não houvessem fenômenos estocásticos e raros), 'objetividade' e outros quesitos. 

Notas

(1) Segundo o site 'The Anomalist', a frase teria sido criada por Marcelo Truzzi (1935-2003). Junto com P. Kurtz, Truzzi fundou o "Committee for the Scientific Investigation of Claims of the Paranormal" (CSICOP), tendo se arrependido disso posteriormente:
"I might note here that it was Marcello, not Carl Sagan, who coined the often-misattributed maxim "Extraordinary claims demand extraordinary evidence." In recent years Marcello had come to conclude that the phrase was a non sequitur, meaningless and question-begging, and he intended to write a debunking of his own words. Sad to say, he never got around to it."