13 de março de 2013

I - Como a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência. (P. Churchland)


Numa série de posts, apresentaremos uma tradução comentada do artigo "How Parapsychology could become a science" (Inquiry: An Interdisciplinary Journal of Philosophy, Volume 30, Issue 3, 1987) do filósofo Paul Churchland. Este artigo é uma crítica epistemológica bem embasada à parapsicologia, crítica que deveria ser seriamente considerada pelos praticantes dessa disciplina, se eles pretendem, de fato, fazê-la avançar. Alem disso, Churchland lança dúvidas bem fundamentadas sobre o paradigma materialista presente. Vale a pena estudar com atenção este trabalho. Todas as referências dele serão apresentadas no último post. O texto em azul é o do artigo.

Resumo
Um argumento metodológico importante é desenvolvido em apoio a um desafio teórico geral ao paradigma materialista dominante. A ideia é que as inadequações empíricas da teoria dominante podem estar ocultas da  vista por vários fatores e emergirão das sombras somente quando vistas da perspectiva de uma alternativa conceitual sistemática. A questão que se coloca, então, é se a parapsicologia fornece essa alternativa conceitual adequada à tarefa. Nossa conclusão provisória é que ela não fornece. Algumas outras consequências são tiradas disso, no que diz respeito à face experimental da tradição parapsicológica.
O título do trabalho corre o risco de me desmascarar, mas nem tanto. A parapsicologia, como praticada presentemente, não parece a mim ser uma ciência genuína  Ou, mais precisamente, desde que essas coisas são uma questão de grau, ela parece demonstrar um teor excessivamente baixo de atividade científica, o que justifica a indiferença e o ceticismo que ela encontra no resto da comunidade científica. Por outro lado, acho também que ela poderia se tornar uma ciência respeitável. Pretendo explorar aqui como isso seria possível. 

1. O argumento da tolerância

Minha abordagem inicial a essa questão vem do ponto de vista de um materialista. Quer dizer, sou profundamente tocado pela sucesso empírico extraordinário de várias ciências físicas, da física subatômica a bioquímica, biologia evolucionista, neurociências, astronomia, cosmologia e história natural. O sucesso sistemático e inter relacionado dessas ciências nos incita a levar muito seriamente a hipótese de que todos os fenômenos no Universo, sem exceção, se devem à articulação intricada de um a grande quantidade de elementos físicos e relativamente pequenos que agem de acordo com um conjunto limitado de leis puramente físicas (1)

Em particular, parece me bem provável que todos os fenômenos decorrentes de criaturas que têm sentimentos são outro exemplo de articulação de propriedades da matéria governada por leis físicas. Somos evidentemente feitos de matéria. Evoluímos por uma processo puramente físico, embora complexo, de organismos primitivos e simples, também feitos de matéria, organismos cuja linhagem nos leva a uma sopa primordial puramente química. Nossas atividades sensoriais, cognitivas e motoras, tanto quanto as compreendemos, são outra mistura de acontecimentos químicos, elétricos e mecânicos. A força desse arcabouço conceitual é uma das razões principais porque a grande maioria dos cientistas consideram impossíveis as afirmações sobre os 'fenômenos psíquicos', pois tais ocorrências são incompatíveis com o ponto de vista materialista bem estabelecido do Universo e do nosso lugar nele (2).

Por outro lado, parece provável também que esse ponto de vista pode estar errado. Seu sucesso explicativo até o presente, não importa o quão generalizado ele seja, não garante sua verdade. Outros paradigmas, em outros momentos históricos, também gozaram de domínio semelhante sobre grande parte da experiência humana e, mesmo assim, se mostraram falsos (3). A hegemonia organísmica de Aristóteles vem a minha mente aqui. Nesse caso, foi bem essa compreensão de visão de mundo abrangente que nos cegou para muitas particularidades que surgiram depois, sob inspeção mais detalhada. Talvez o materialismo moderno nos cegue de igual forma. E, quem sabe, a pesquisa  que é conduzida sob a bandeira da parapsicologia seja bem o tipo de coisa que nos irá libertar dele.

O quão possível isso é nós discutiremos oportunamente. Teremos que ponderar o sucesso sistemático das ciências físicas contra as afirmações de parapsicologistas que insistem que existe uma variedade de resultados experimentais que não podem ser explicados em termos dessas ciências. Evitarei essas questões empíricas em algumas páginas à frente, uma vez que existe um argumento puramente metodológico que pode ser levantado em apoio à pesquisa parapsicológica, não importa o quão forte sejam as evidências que sustentem, por sua vez, o materialismo.
Paul Feyerabend (1924-1994)

O argumento vem de Paul Feyerabend (1963b) e não tem nada a ver com as virtudes ou vícios da parapsicologia. Feyerabend chama a atenção ao fato de que, muitas vezes, a única forma de descobrir as inadequações verdadeiramente empíricas de uma teoria bem estabelecida é construir teorias alternativas que forneçam novas interpretações para dados experimentais familiares e velhos conhecidos (4). Qualquer teoria de sucesso sempre ignora ou suprime uma grande quantidade de evidências empíricas problemáticas e fracas, que são consideradas irrelevantes ou ‘ruído’ inevitável. Nenhuma teoria jamais ajustará todos os dados experimentais perfeitamente, uma vez que as situações experimentais que a testam sempre trazem consigo um horizonte de detalhes sutis além do qual não temos nem conhecimento e nem controle (5). Além desse horizonte, estão os elementos inevitáveis que são ou muito pequenos, ou muito complexos ou por demais inacessíveis para que se exerça domínio ou controle. Pequenas discrepâncias entre a teoria favorita e os resultados experimentais são, portanto, frequentemente considerados como atividade ruidosa produzida por fatores além do horizonte do que é controlável.

Não existe erro nisso. A alternativa é tentar controlar a posição e o aspecto de cada partícula no Universo. Ao invés disso, tentamos controlar o quanto acreditamos ser necessário e prudente controlar, e deixamos todo o resto ser como é. E, aquelas áreas experimentais onde não temos esperanças de exercer controle nos detalhes que acreditamos como relevantes, simplesmente as ignoramos como intratáveis ou desinteressantes. A teoria favorita pode não explicá-los, mas essa deficiência não é considerada um problema sério (6). 

Pode ser possível, porém, que os fatos empíricos importantes que refletem a falsidade da teoria favorita e 'de sucesso' seja encontrado justamente nas áreas experimentais que se imaginou serem intratáveis ou além do horizonte dos detalhes controláveis da área considerada tratável. Nesses casos, a teoria favorita goza de uma segurança por exercício de refutação imerecida. Os fatos refutantes estão lá, mas por razões complexas, eles são difíceis ou impossíveis de serem percebidas (7), pelo menos enquanto continuarmos a interpretar a situação em ternos da teoria predileta. Pois, essa é a teoria que nos ajuda a decidir que detalhes são relevantes e quais são irrelevantes, além de separar as situações que são tratáveis daquelas que não não.

A melhor maneira de sair dessa situação, sugere Feyerabend, é construir uma teoria alternativa comparativamente geral com a qual produziríamos novas interpretações para os dados experimentais, ou que nos diria quais são os detalhes relevantes e quais não são, ou quais situações são tratáveis diante de outras consideradas intratáveis (8).  Isso tem o efeito de destacar certos detalhes que, até então, tinham sido desprezados, de revelar novos sinais a partir do que se considerava  ruído ordinário, de se descobrir  ordem onde antes só se via o caos. Em particular, essa visão reconfigurada pode revelar falhas dramáticas na velha teoria, falhas que eram invisíveis com falhas desde a perspectiva anterior.

Feyerabend fornece um exemplo interessante desse fenômeno, que vale a pena sumarizar aqui. O leitor deve me perdoar se simplifico demais a física a fim de destacar esse ponto metodológico.

Continua no próximo post (todas as referências serão apresentadas no último post).

Comentários

(1) O argumento colocado por Churchland é irretocável. O materialismo ainda é a 'teoria predileta' por causa de uma grande variedades de fenômenos que podem ser explicados de forma muito satisfatória com ele. Isso sanciona seus princípios e permite que a ciência avance na explicação de outros fenômenos;

(2) Churchland aponta aqui a principal razão para o ceticismo com relação aos fenômenos anômalos, que não são completamente explicados pela teoria dominante.

(3) Novamente a argumentação é bastante lógica. Ainda que esse paradigma dominante tenha experimentado um sucesso impressionante, não segue disso que ele seja verdadeiro. Além da teoria aristotélica citada pelo autor, há outros exemplos históricos interessantes de teorias que foram altamente consideradas no passado e que se mostraram errôneas.

(4) Isso acontece porque é a teoria que orienta o processo de pesquisa científica. Se a teoria não crê nessa ou naquela possibilidade, ela não será procurada em lugar algum - o que implica que os métodos de pesquisa não poderão ser orientados na direção de sua demonstração.

(5) Essa afirmação extremamente forte de Churchland reflete a realidade de que não podemos saber  tudo no mundo: há um limite para o conhecimento humano que vai até o 'horizonte' além do qual estão as aproximações e os fatores incontroláveis ou desconhecidos.

(6) Ainda que estejamos cientes de que nossa teoria predileta tem limitações, não iremos jogá-la fora por causa de qualquer detalhe menor, que deve ser desprezado, para que possamos 'salvar' a grande imagem que nossa teoria é capaz de demonstrar com sucesso.

(7) As ciências dos fenômenos psíquicos estão repletas de 'razões complexas' que tornam difícil ou impossível que se percebam os novos fatos. De certa forma, a fonte dessa dificuldade está na própria influência do paradigma predileto que separa claramente quais os fenômenos que merecem atenção daqueles que são apenas 'ruído'.

(8) Trata-se do princípio da 'contra-indução' proposto por Feyerabend. Esse filósofo buscou demonstrar que a melhor forma de fazer avançar a ciência não seria por 'indução', mas por 'contra-indução' que, grosseiramente, implica em se construir teorias alternativas para fenômenos conhecidos (sem abandonar a teoria predileta), e ver se, de fato, há outra maneira de se explicar os mesmos fenômenos com o ganho adicional de tratamento de outros aspectos desprezados pela teoria principal. 

2 comentários:

  1. Este post me parece interessante apenas do ponto de vista histórico. A controvérsia sobre se a Parapsicologia é ou não ciência se arrefeceu bastante desde que ela foi reconhecida como ciência legítima em 1969 pela AAAS, a maior associação científica do mundo e a mesma editora da revista Science. Aqui e ali ainda vemos debates sobre o assunto, mas apenas vindo de pessoas com pouquíssima bagagem filosófica.

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    1. É justamente isso que queremos discutir aqui. O prof. Churchland é uma dos maiores filósofos da atualidade. Não me parece que os argumentos que ele levantou em 1987 tenham sido resolvidos hoje em dia. Alias, pouco importa que uma disciplina receba um 'carimbo' de uma associação, qualquer que ela seja. Como se sabe se essa associação tem ou não mérito para decretar que uma disciplina é ou não ciência? Aguarde o próximo post que trará o núcleo principal dos argumentos de Paul Churchland que seria bom fosse todos respondidos.

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