2 de julho de 2011

Usos e maus usos da palavra 'energia' entre espiritualistas


"É uma perda de energia enervar-se com alguém que se comporte mal, assim como com um carro que não ande." Bertrand Russel.

Se a física é a ciência que trata da estrutura íntima da matéria, a energia (do grego antigo ἐνέργειαenergeia ou "atividade", "operação") é a quantidade física de menor semelhança com qualquer coisa sólida ou material que se possa imaginar. Por isso mesmo, ela tem sido utilizada - de forma inapropriada - por grandes grupos de espiritualistas (de várias vertentes, cultos, crenças e nacionalidades) em suas narrativas de fenômenos ou eventos de natureza 'espiritual', ou mesmo fatos corriqueiros sem qualquer significado transcendente. Fala-se em 'energias espirituais', 'energias curativas' ou 'curas energéticas'. Existe ainda as 'energias positivas e negativas' e por ai vai. 

Nosso objetivo aqui não é criticar o uso desta palavra nesses contextos, mas esclarecer o significado de 'energia' que é utilizado em muitas disciplinas acadêmicas como a física, química e biologia. De fato, não somente entre espiritualistas (veja a frase de B. Russel acima), a palavra 'energia' recebe acepções muito diferentes para muitos grupos, sendo talvez o exemplo mais contundente de polissemia que se pode dar. Nosso objetivo aqui é resgatar o sentido original dessa palavra.

O que é energia? Todos temos algum contato com algum tipo de processo ou sistema que faz uso de energia. Na vida moderna, televisores, computadores, telefones celulares, carros etc são exemplos de equipamentos que, para funcionarem, precisam de energia. Sabemos que, se não forem supridos com ela, seu funcionamento é paralisado. Também nossos corpos precisam de energia. A privação do alimento leva à inanição e mesmo à morte. Mas, todos sabemos que, para funcionar, tais equipamentos e mesmo nossos corpos não são 'alimentados' com nada 'sutil', 'invisível' ou imponderável. Sabemos que, para funcionar, um carro precisa de combustível que se apresenta na forma líquida, na maior parte das condições climáticas que habitamos. Para continuarmos vivendo ingerimos alimentos, na forma sólida ou líquida, nada aparentemente sutil - pelo menos no que diz respeito ao quanto tais coisas podem sensibilizar nossos sentidos. 

Energia em física, química e biologia, é um termo essencialmente técnico que se refere a algo imponderável (não podemos 'captar' ou perceber a energia com nossos 5 sentidos), mas que pode ser medido. Trata-se de uma medida de capacidade ou propensidade de um sistema ou processo em realizar trabalho. Energia e trabalho são termos irmãos. O termo 'trabalho' ordinariamente é utilizada com significado totalmente diferente. Falamos em 'hoje não vou trabalhar' para se referir à atividade ou meio de produção a que me dedico diariamente. Entretanto 'trabalho' no sentido dado pela física é uma medida de variação de energia de um sistema. 

Energia pode-se apresentar nas formas mais variadas: fala-se em energia nuclear (quando trabalho é extraído do interior do núcleo atômico), energia química (quando trabalho é extraído da eletrosfera dos átomos), energia luminosa (quando luz pode ser usada para produzir trabalho), energia elétrica (quando cargas em movimento realizam trabalho), energia hidroelétrica (quando trabalho pode ser extraído da vazão e queda de grandes volumes de água através de geradores elétricos), energia potencial (quando a capacidade de um sistema em produzir trabalho está armazenada de forma potencial, isto é, não 'cinética'), energia térmica (quando trabalho pode ser extraído do movimento de moléculas) etc. Mais importante do que compreender que existem diversos tipos de energia é saber que a ela está associada um valor que as fazem todas equivalerem entre si quantitativamente.
Exemplos de transformações energéticas entre sistemas físicos.
Por causa disso, fala-se em transformar 'energia elétrica' em 'energia cinética' (em motores elétricos) ou vice-versa (em geradores elétricos), em transformar energia química em eletricidade (em baterias elétricas) ou vice-versa (quando se 'carregam' as baterias) e assim por diante. Até hoje ainda não se conseguiu encontrar nenhum sistema para o qual a lei de 'conservação de energia' não possa ser aplicada. Uma vez gerada, energia não pode ser destruída, embora uma fração da energia presente em um sistema físico (qualquer que seja ele) se perde de forma irreversível, fazendo com que não possamos extraír toda a energia potencial associada a esse sistema. Isso dá origem ao termo 'eficiência' (uma porcentagem) que mede o trabalho máximo que se pode produzir por um sistema que é sempre menor do que o disponíbilizado por sua fonte energética. Por exemplo, baterias solares tem eficiência de 14%, o que significa que apenas 14% da energia solar é convertida em eletricidade nessas baterias.

De qualquer forma, energia não se refere a 'algo' que exista concretamente, que se possa ver ou tocar (o que é diferente do 'Espírito' que é algo que existe embora de forma 'incorpórea'). Quando sentimos o calor na proximidades de uma chapa quente, não estamos 'sentindo energia térmica'. Há certa quantidade de energia armazenada na chapa (a uma temperatura acima da ambiente) que é transferida para as moléculas em torno da chapa. Essas moléculas (de ar) adquirem velocidades superiores às velocidades médias das moléculas que estão à temperatura ambiente. Nossa pele tem 'células' capazes de sentir a colisão dessas moléculas mais rápidas, o que que se manifesta em nós como uma sensação do calor. 

Do ponto de vista semântico, assim, a palavra energia não se refere, na física, biologia ou química a nada que se possa ver ou tocar. Desta forma, luz não é 'energia' tecnicamente falando, pois a luz é considerada um tipo de radiação ou movimento de ondas de natureza definida pela teoria física. Entretanto, talvez por não se referir a algo ponderável, o termo adquiriu outra conotação quando caiu no gosto popular. Assim, é comum ouvir-se que 'luz é um tipo de energia'. 

Energia tornou-se um dos termos mais polissêmicos na atualidade por representar uma 'novidade' que confere atualização ou modernidade para a linguagem de muitos movimentos espiritualistas, mas que não tem nenhuma relação com sua acepção original. Colocado dessa maneira, seu uso não representa endosso das várias disciplinas acadêmicas para as novas formas de 'energia' que se está a propor.

Referências

Para saber mais sobre polissemias veja A. P. Chagas,'Polissemias no Espiritismo'. Revista Internacional de Espiritismo, setembro de 1996, pp. 247-49.

5 comentários:

  1. Ola Alexandre

    Obrigado por seu comentário.

    Ademir

    "Oi Ademir,

    Ótima idéia esclarecer sobre o significado da
    palavra energia. Já ouvi palestras espíritas
    em que o orador, mesmo bem intencionado,
    afirmou que poderia explicar que o Espírito,
    em sua essência, é uma energia. Se energia
    pode se transformar de um tipo para outro,
    então estamos perdidos se em essência nós
    somos energia...

    Uma forma de apresentar o que é energia que
    considero bem bacana está registrada no
    Wikipedia, e atribuída a Richard Feyman:
    "There is a fact, or if you wish, a law,
    governing all natural phenomena that are known
    to date. There is no known exception to this
    law—it is exact so far as we know. The law is
    called the conservation of energy. It states
    that there is a certain quantity, which we call
    energy, that does not change in manifold
    changes which nature undergoes. That is a most
    abstract idea, because it is a mathematical
    principle; it says that there is a numerical
    quantity which does not change when something
    happens. It is not a description of a
    mechanism, or anything concrete; it is just a
    strange fact that we can calculate some number
    and when we finish watching nature go through
    her tricks and calculate the number again, it
    is the same. —The Feynman Lectures on Physics"
    Tirado de http://en.wikipedia.org/wiki/Energy

    Um abraço,
    Alexandre Fonseca"

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    1. Ola Edmar

      Grato por seus comentários. Eles servem ainda mais para ressaltar o problema polissêmico não só da palavra energia como dos vocábulos auxiliares a ele. Acho que vc acabou ressaltando esse problema, que existe mesmo entre aqueles que usam energia na sua acepção original.

      Com relação ao comentário 1, eu reforço ainda mais o que disse, pois o considero a ideia de energia realmente o conceito que menos tem a ver com qualquer coisa material que se considere (veja o que comento sobre o seu próprio comentário 5).

      Com relação ao seu comentário 2, o significado de 'energia' aqui está ligado sim ao significado original, pois é possível calcular a quantidade de energia no sentido físico. Não vi no que ele seja diferente, já que ingerimos alimentos e desses alimento extraímos 'energia química'. Logo nossos corpos precisam de energia no sentido físico para que possa executar trabalho.

      Com relação ao comentário 3, energia pode ser medida sim. Tanto que existem medidores de fluxo de energia (como são os medidores de energia elétrica). A unidade é Wh ou KWh (1 W = ' J/s no sistema MKS e J é unidade de energia). Também pode ser calculada: quando eu compro um novo chuveiro elétrico (um mais potente), eu posso calcular a quantidade de energia desse novo chuveiro e, assim, quanto, por mês, vou desembolsar a mais. Quanto ao imponderável: pense numa bateria de carro totalmente descarregada e outra, idêntica, porém carregada. Se vc pesar ambas, verá que o peso é o mesmo. Isso foi o que quis dizer com 'imponderabilidade'. Por isso, associei o termo 'energia' à imponderabilidade para deixar claro aos leitores um aspecto importante do conceito.

      Com relação ao comentário 4, o problema não é com a palavra 'energia' mais com o termo 'gerado' que vc detectou como polissêmico. Em física e eletrotécnica usa-se livremente o termo 'geradores de energia' (dispositivos que transforma, na verdade, energia de uma forma em outra'). Exemplos: células fotovoltaicas são 'geradores de energia elétrica' (mas, na verdade são transformadores de energia luminosa em elétrica), além dos clássicos geradores de corrente por indução que são a base das usinas hidroelétricas, termoelétricas e até mesmo nucleares, pois todas elas usam o movimento de um gás ou fluido para mover pás conectadas a *geradores* elétricos. A palavra 'transformador' tem acepção bem diferente e é usada com transdutores de tensão (elevadores e abaixadores de tensão em circuitos de corrente alternada).

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    2. (continuação do comentário anterior)

      Com relação ao comentário 5, o que quis dizer é que a ontologia (do grego ὄντος, 'aquilo que é') da palavra energia é bem diferente da palavra 'espírito' ou 'elétron'. Fui meio sintético e afirmei que 'energia' é algo que não existe no sentido ordinário, e concordo com vc que seria necessário explicitar o significado de 'existir' antes de tudo. Aqui entramos num campo que é realmente espinhoso e difícil e julguei simplificar bastante o comentário para não ocupar mais tempo do leitor.

      O objetivo do texto não foi discutir a ontologia do conceito ou princípio da energia frente a outros conceitos, mas apenas dar ideia do problema do significado. Mas, com certeza, há uma relação entre a ontologia e semântica, no sentido da última ser determinada pelo primeira.

      Com relação ao comentário 6, também fui sintético. Físicos costumeiramente falam em quantidade de energia contida num objeto ou substância de forma distinta do conceito de energia ligado à trabalho ou equivalente energético. Assim, podemos falar livremente na quantidade de calor de um objeto e isso pode ser transformado em um equivalente de energia. Além disso há outras definições de energia em física (que acho não vem ao caso de serem citadas no texto), como a energia livre de Gibbs, o equivalente de entalpia, a 'energia interna' - que está mais próxima do significado que usei para 'energia da chapa' etc. Vc pode consultar um livro de termodinâmica ou física estatística para ver esses conceitos.

      Assim, acho que não podemos conectar tão facilmente o conceito de trabalho ao de 'energia interna', mas penso que a relação entre eles é muito maior do que a que existe entre energia nesse sentido físico e o 'energia' de 'corpos energéticos' da literatura espiritualista. Também isso é diferente de dizer, 'precisamos de muita força e energia para ganhar o campeonato'. Aqui 'energia' e 'força' não são equivalentes à energia interna ou a noção newtoniana de força. Mas o contexto permite diferençar as ideias.

      Forte abraço,
      Ademir

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    3. Oi, Ademir. Comentando...

      1- Percebo que não entendeste o item 1 de meu comentário anterior. Nele deixo claro a concordância quanto a que "energia", no sentido físico, é algo que pouco tem ver a com qualquer coisa material. O que ressalto, ali, é que isto é uma característica inerente a qualquer *quantidade física*, não só à energia.

      2- É fato que no trecho transcrito no item 2 de meu comentário anterior o significado de "energia" está *ligado* ao conceito original. Sim, está *ligado*, mas não é idêntico. A diferença parece-me óbvia, pois, repito, não faz sentido dizer que um sistema faça *uso* ou que nossos corpos *precisem* de uma *quantidade física*.

      3- De fato, em alguns casos, a energia pode ser medida (perdoe-me pela generalização indevida), como é o caso da energia elétrica, mas isto não é regra. Quanto ao "imponderável", é fato que sistemas "energizados" ou "sem energia", classicamente, não se alteram em termos de peso. O que ressaltei não é isto, mas algo que tem a ver com a ontologia da coisa, uma vez que a ideia de ponderável ou de imponderável associa-se ao que "existe de fato", mas uma *quantidade física* é um constructo mental...

      4- Não, com relação ao item 4 de meu comentário, apesar de ter também este problema quanto a polissemia de "gerado", o problema é, sim, com a palavra "energia", pois uma *quantidade física* não pode ser *extraída* ou *usada*.

      5- Entendi muito bem, no trecho de teu texto que transcrevi no item 5 de meu comentário anterior, que quiseste mostrar que "energia" e "espírito" pertencem a classes ontológicas distintas. Concordo com isso. O que ressaltei ali é que as acepções de "energia" que usaste nos trechos transcritos nos itens 2 e 4 referem-se a algo que "existe de fato", diferente, por exemplo, de "energia" como definida por "medida de capacidade ou propensidade de um sistema ou processo em realizar trabalho".

      6- Sim, "físicos costumeiramente falam em quantidade de energia contida num objeto ou substância de forma distinta do conceito de energia ligado à trabalho ou equivalente energético". É justamente isto que procurei ressaltar nos itens 2 e 4 de meu comentário anterior e deste! Ou seja, existe polissemia associada ao termo mesmo no contexto da Física. Além disso, como você mesmo acaba de citar, há ainda outras acepções, como a energia livre de Gibbs, etc.

      Sem dúvida, a distância semântica entre os conceitos físicos de "energia" é muito menor que entre aquele da definição física formal e os da literatura espiritualista e esotérica. Mas é importante ressaltar que nem a Ciência está livre de ambiguidades linguísticas. No fim das contas, o que importa mesmo é procurar definir de modo claro palavras tradicionalmente ambíguas, como "energia".

      Forte abraço,
      José Edmar

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