26 de fevereiro de 2011

Crenças Céticas XII - Tomando carona no ceticismo: Críticas ao 'Espiritismo' em Ateus.net


Vamos agora analisar alguns textos utilizando as discussões que apresentamos anteriormente sobre as crenças céticas. Com isso, fornecemos alguns fatos, como exemplos interessantes, que confirmam nossas exposições sobre o ponto de vista cético.

Nosso objetivo aqui não é discutir as crenças do ateísmo, mas fazer alguns comentários em torno de um artigo que pretende levantar críticas contra o Espiritismo, notadamente sobre a relação desse com as disciplinas acadêmicas. O artigo intitulado 'Espiritismo, Ciência e Lógica' é longo, mas uma síntese do pensamento do autor desse texto pode ser compreendida lendo-se a comparação que ele faz através de um quadro entre suas noções de 'Ciência' e de 'Espiritismo'. Esse quadro está mais ou menos no meio do artigo, e passamos a discuti-lo abaixo.

Um pouco antes desse quadro pode-se ler:

E o Espiritismo nessas mudanças? O fosso entre as metodologias da “ciência espírita” e as demais “ciências” do mundo material foi progressivamente aumentando.

Por 'mudanças' aqui, o autor entende as revoluções da física moderna que levaram a uma noção diferente do mundo em comparação aos critérios e interpretações da física chamada 'clássica'. Ele afirma que existe um 'fosso' entre as  'ciências do mundo material' e o 'Espiritismo'. Vejamos os pontos principais de sua argumentação, analisando o quadro comparativo que o autor coloca como argumentos a favor da existência de tal 'fosso':

"Ciência"

1) Comum novas gerações de cientistas refutarem trabalhos anteriores. Aversão a critérios de “autoridade”.

Aqui a palavra 'refutar' está sendo empregada de forma pouco precisa. Alguém já ouviu falar em 'refutação' dos trabalhos de Newton, Einstein, Maxwell? Será que 'Einstein refutou Newton'? Será que 'Maxwell foi refutado pela teoria dos campos'? Será que a Mecânica Quântica refutou a mecânica clássica?   Existem casos históricos de teorias - que eram as preferidas dos acadêmicos - terem sido suplantadas por outras. Um exemplo interessante foi a teoria do flogisto (antes dos desenvolvimentos da termodinâmica na Física), ou a teoria dos continentes fixos (na Geologia), suplantada pela tectônica de placas. Na Física, as teorias clássicas podem ser derivadas das teorias não-clássicas (ex., relatividade e mecânica quântica) a partir de determinados limites.  A tese de 'refutação' não se defende muito bem.

Também, a observação em análise demonstra conhecimento idealizado do mundo acadêmico: com relação à aversão aos 'critérios de autoridade', isso é um mito que corre entre cientistas. Todos sabem que um artigo científico receberá tratamento muito diferente se for publicado por um estudante (ou autor desconhecido) ou um prêmio Nobel, ainda que tenha o mesmo conteúdo. A autoridade se constrói no conceito: o 'nome' (número de artigos, citações, impacto etc). Ele conta muito e se correlaciona fortemente com quanto um pesquisador ou grupo de pesquisadores irá receber do governo ou de seus financiadores para a realização de pesquisa. Essa é a razão porque cientistas procuram sempre ter seus currículos atualizados com novas publicações e alunos. 

2) Obras de grandes mestres (Principia Mathematica, Origem das Espécies, etc.) ainda lidas como referência, fontes de valor histórico e como uma forma de adentrar no raciocínio do autor. Os estudantes, porém, usam bibliografia recente, expandida e corrigida.

É verdade, e, frequentemente, se acham erros de interpretação imperdoáveis em tais 'bibliografias recentes, expandidas e corrigidas' para tristeza dos estudantes (Campanario, 2006; Hubizs, 2003). Qualquer pesquisador sério sabe que não há nada melhor do que uma consulta aos autores originais para se encontrar os princípios que fundamentam as diversas teorias de sua ciência.

3) A lógica é usada como ferramenta apenas. O raciocínio precisa estar corroborado em evidências

Somos também brindados com essa preciosa observação: 

"Kardec depositava fichas demais na lógica. Ela é importante sem dúvida e tê-la é um requisito mínimo. Mas quem a estuda não demora a descobrir que ela não tem tanto poder assim como dizem."
Ao longo do texto, seu autor confunde a validade de pressupostos de uma argumentação lógica com a própria argumentação lógica. Não só Kardec, mas toda a comunidade de cientistas deposita fichas demais na lógica porque não existe outro método de raciocínio disponível.

4) O bom senso e a experiência usual nem sempre são seguidos (Relatividade e Mecânica Quântica que o digam. Idem para a “ação à distância” de Newton). Opta-se por soluções pragmáticas, ainda que esdrúxulas.

O autor diz que a 'Ciência opta por soluções esdrúxulas' e que isso é o resultado da Ciência se afastar do 'bom senso' e da 'experiência'.  Para quem compreende bem os fundamentos da Mecânica Quântica, ou da Relatividade sabe que essas teorias da Física estão estruturadas de forma lógica - sim a mesma lógica que o autor disse que 'não tem tanto poder assim como dizem'. Sob determinadas interpretações particulares, esses ciências podem revelar aspectos do Universo e do mundo que não estão de acordo com a experiência comum do dia-a-dia dos humanos. 

5) Há grande discussão em torno da filosofia da ciência quanto à questão da melhor metodologia para o estabelecimento de novos conhecimentos (refutabilidade, crise de paradigmas, etc.).

A Epistemologia é uma área acadêmica da filosofia. Entretanto, não existe consenso entre especialistas da área sobre o impacto dos estudos da epistemologia nas ciências. Na verdade, há quem defenda que estudos da Epistemologia não tem serventia na Ciência (Holton, 1984). Embora seja altamente positivo que estudantes das ciências se debrucem também sobre esse ramo da filosofia, sabe-se que a Epistemologia não é matéria obrigatória nos currículos da Física, Biologia, Química etc. Prefere-se não perder tempo com o assunto, embora sua aparente relevância para o desenvolvimento da Ciência.

6) Teorias inverificáveis, mas belas, são postas de lado.

Aqui,o que se entende por 'belas teorias'? Pois 'beleza' não é algo intrínseco do objeto admirado, depende também de quem admira. Uma teoria que é bela para um cientista pode não ser para outro. Exemplos dessa situação existem muitos na história da ciência. A teoria do movimento da Terra era insustentável para os defensores da Terra fixa e vice-versa.

Que exemplo que se pode dar de uma teoria inverificável? Como podemos saber que uma teoria é inverificável hoje diante dos avanços da tecnologia? Toda teoria é construída sobre algum fundamento empírico, entretanto, muitas teorias poderosas foram propostas bem antes de se registrar qualquer evento ou fenômeno que a suportasse.

7) Apropriações entre ramos da ciência (malthusianismo no darwinismo, biologia na sociologia – darwinismo social, eugenia) hoje são vistas com reservas. 

Talvez o mais apropriado aqui fosse dizer 'integração' e não 'apropriações'. De qualquer forma, a frase parece conferir status de ciência ao Darwnismo Social e a Eugenia. Talvez o objetivo seja dizer que determinadas interpretações ou extrapolações a partir de teorias científicas não mais são aceitas facilmente: o darwinismo social e a eugenia da biologia, o malthusianismo do darwinismo. A sociologia é uma teoria independente da biologia. 

8) Ciências que não têm acesso direto ao seu objeto de estudo (astronomia, história, etc.) lançam mão da análise indireta dos efeitos que chegam até nós. (espectro de luz, documentos históricos). 

Entretanto, porque ateus, céticos e materialistas exigem 'provas objetivas e repetitivas' dos fenômenos psíquicos? Por que a ênfase no 'rigor' e na 'objetividade'? A imensa maioria dos fenômenos chamados 'paranormais' não é acessível aos sentidos. Kardec foi a primeira pessoa a reconhecer as manifestações do Espíritos só podem ser acessadas indiretamente. 

9) Orações, Meditação e estados alterados de consciência são passíveis de estudo, mas isso não significa que seja verdade aquilo que seus praticantes dizem. 

Alguns estudos acadêmicos estrangeiros apontam para algo diferente, anômalo ou peculiar nos seres humanso: sua origem e natureza espiritual. Obviamente, todo cientista é livre para pesquisar o que bem entender, as limitações que se impõem vem da falta de recursos financeiros,  tempo (que é conseqüência da falta de recursos) ou capacidade intelectual.

A frase faz transparecer que a Ciência (no sentido de comunidade acadêmica) tem preconceito com relação a certas fontes de conhecimento. Mesmo assim, essa opinião contrasta com a de pesquisadores sérios em Parapsicologia que, frequentemente, reportam o que seus 'sujets' sentem (como informação importante), sem falar nos pesquisadores de experiência de quase morte. Infelizmente ainda não se desenvolveram métodos não humanos de se acessar as realidades do pós vida ou mesmo para praticar uma simples telepatia.

10) Não faz afirmações morais. Descobertas podem, inclusive, entrar em choque com a moral vigente. 

O objetivo das ciências naturais não é mesmo fazer afirmações morais. Mas isso não pode ser contado como uma virtude como a observação parece sugerir. O mais correto é dizer que as ciências naturais são neutras. De outra forma, aplicações tecnológicas (derivadas das descobertas científicas) podem tanto ser usadas para o bem como para o mal (Exemplos: avanços da genética, pesquisas nucleares etc).

"Espiritismo"

1) Medo de se distanciar da ortodoxia kardequiana. Culto à autoridade contido no espírito da Verdade ou Kardec. Há exceções, óbvio.

O culto à ortodoxia é o que mais se vê no ambiente acadêmico. Mais uma vez, a frase deixa transparecer conhecimento superficial do mundo acadêmico - que é o ambiente onde as ciências acadêmicas são 'produzidas'. Confunde-se repetidamente 'ciência' (teoria, hipótese, conhecimento) com o movimento humano que a produz. Assim confunde-se igualmente 'Espiritismo' com 'Movimento Espírita' tanto quanto 'ciência acadêmica' com 'academia'. 

O que na frase é chamado de 'culto' é o que ocorre em qualquer ambiente humano, que, no caso da Ciência, tem como objetivo proteger suas teorias contra revisões ou alterações mal intencionadas. Um cientista defende uma boa teoria com o mesmo zelo que um fazendeiro sua propriedade, e não há o que se achar estranho nisso. Pelo contrário, o oposto seria algo bastante inexplicável.

2) Livros de Kardec ainda utilizados sem alterações, mesmo no que há de errado. Notas de rodapé corrigem alguns erros.

Imaginemos uma situação hipotética: uma nova edição do 'Principia' de Newton sendo lançada repleta de 'revisões' e 'correções' a partir da relatividade restrita e geral. Imaginemos que os livros editados por Mawxell, Newton, Galileu, Boltzmann e outros grandes físicos fossem relançados com revisões completas - não notas de rodapé. Imagine lançar o livro fundamental de Charles Darwin em uma edição totalmente revisada conforme as novas descobertas da genética.

As obras dos pesquisadores pioneiros (em todas as áreas do conhecimento) representam um manancial de conhecimentos originais, onde se podem encontrar os princípios ou fundamentos das ideias e teorias e, portanto, não são passíveis de revisão.

Há muitas coisas que ainda devem ser 'descobertas' nas obras de Kardec. Justamente por não se dar o devido valor a certas passagens, é que não se consegue construir uma teoria correta sobre muitos fenômenos considerados 'anômalos'. 

3) A lógica é utilizada como meio de prova ou refutação de hipóteses, não havendo verificação de se a natureza pensa igualmente.

Quem 'pensa' em matéria de criação e teste de hipóteses são os seres humanos. A Natureza não pensa, ela simplesmente é. Aqui aparece a mesma crítica à lógica que o autor do texto diz 'que não tem tanto poder como pensam' (ver item 3 em 'Ciência' acima).

4) O senso comum, ao lado da lógica, é superestimado.

Em boa parte dos desenvolvimentos da Ciência, o 'senso comum' é utilizado como sinônimo de 'razoabilidade', ou seja, é uma percepção humana que permite distinguir o que é razoável do que não é. O mesmo ocorre com a lógica. (Ver considerações do item 3 em 'Ciência').

5) O conhecimento espírita ainda é majoritariamente indutivo, baseado em moldes científicos do século XIX (positivismo). 

Se por 'positivismo' entendermos a necessidade de se fundamentar o conhecimento em fatos ou fenômenos naturais, é compreensível que o Espiritismo tenha caráter 'positivo' neste sentido. Afinal aquilo que Kardec descreve em 'O Livro dos Médiuns' não é invenção dele, mas constitui uma fenomenologia verificável. É necessário que seja assim, pois a base do conhecimento não pode ser a crença ou a invenção. Toda ciência - ainda que nascida como pura teoria - só se estabelece ao se conectar a uma classe de fenômenos observáveis (não necessariamente através sentidos humanos). A ciência moderna continua a ser positiva ou positivista nesse sentido. 

Entretanto, é falso considerar o desenvolvimento e fundamentação do Espiritismo em uma acepção particular do positivismo: aquela que crê que o mundo deve ser explicado a partir de entidades que sejam acessíveis apenas aos sentidos humanos. Um positivista nessa definição só acredita naquilo que os sentidos lhe apresentam. Kardec aceitou a existência dos Espíritos e de muitas outras coisas a partir de evidências indiretas (afinal Espíritos não podem ser vistos ou 'detectados' por nenhum tipo de equipamento.

6) Persiste a presença de hipóteses “ad hoc” inverificáveis para sustentar pontos nebulosos da doutrina. (ex: vida “invisível” em outros planetas) .

Se o plano invisível existe na Terra, porque não poderia existir em outros planetas? Por que esse privilégio? Há aqui interpretação limitada da noção dos 'mundos habitados' . Ela não se refere a planetas, mas a planos de existência. Ao exigir 'hipóteses verificáveis' o autor está sendo incongruente com sua crítica de Kardec - o de acusá-lo de 'positivista'.

6) Apropriações correntes são feitas sem garantia de que são válidas (ação e reação, noções de mecânica quântica, etc.)

É verdade. Há muitas pessoas que fazem uso de paradigmas de ciências bem estabelecidas como modelos de entidades de natureza espiritual. Isso não só no Brasil como no exterior onde, dizem, o Espiritismo de Kardec não existe. Há que se explicar porque isso ocorre nesse contexto (além da argumentação simples exposta pelo autor), demonstrando que isso não é característica da Doutrina Espírita. Para ver um exemplo recente do uso de noções de Física Quântica, consulte a revista Neuroquantology.

7) Pede um lugar “especial” entre as ciências por não ter acesso direto ao seu objeto de estudo (espíritos).

Aqui temo outra afirmação totalmente falsa. Por isso é importante distinguir entre a noção de  disciplina acadêmica (disciplina que tem corpo de pesquisadores, cátedra, laboratórios, verbas, corpo de edição com publicações sujeitas à avaliação por pares etc) com ciência ou conhecimento sobre o qual ela discorre. Toda vez que dizemos 'O Espiritismo é Ciência', não estamos a afirmar  que ele é uma disciplina acadêmica nesse sentido especial. Assim, a afirmação não é válida.

Ainda assim, é possível ver que os 'objetos da Natureza' descritos e utilizados pela Doutrina Espírita são entidades que têm sua existência no mundo em que vivemos. Se eles não são objeto de estudo das disciplinas acadêmicas, então quem os estudará?

8) Verdades podem ser extraídas de “estados alterados de consciência”, vulga mediunidade. Contudo, nenhuma proposta rigorosa para a separação do joio e do trigo foi apresentada. 

Será correto igualar 'estados alterados de consciência' com a mediunidade? Se definirmos estado de consciência normal como o estado mental durante a vigília, então, quando dormimos ocorre mediunidade? Se o estado de vigília e sono são estados normais de consciência, então alguém bêbado terá mediunidade?

As 'propostas rigorosas' passam todas pelo crivo neo-positivista tece longas críticas à existência da própria fenomenologia psíquica. Aqui vemos transparecer incoerência: a Ciência aceita 'explicações esdrúxulas' e evidências indiretas fugindo do 'bom senso', mas  as investigações na esfera psíquica ou espiritual deve passar por um 'crivo rigoroso'. 

8) Produz cartilhas de certo e errado. Eufemismos são usados para se alegar que “não é bem assim…” 

Fica difícil avaliar essa afirmação do autor de 'Espiritismo, Ciência e Lógica' se ele não deu nenhuma referência a quais são essas 'cartilhas'.

Existem maneiras mais sofisticadas e razoáveis de se defender o ateísmo. Está claro que o referido artigo não só é tendencioso em relação à Doutrina Espírita, mas constitui uma defesa precária do ateísmo, que merece nosso respeito como crença. 


Referências

J. M. Campanario, (2006), Using textbook errors to teach physics: examples of specific activities. Eur. J. Phys. 27, 975–981 doi:10.1088/0143-0807/27/4/028

G. Holton (1984), Do Scientists need a Philosophy?, Times Literary Supplement 2, 1232.

J. L. Hubisz, (2003), Middle school text don’t make the grade. Phys. Today 56, 50–4


3 comentários:

  1. Ademir,

    Meus parabéns pela excelente série de textos que você está escrevendo. Estou acompanhando com muito gosto. Há um livro muito interessante de Robert Anton Wilson chamado "A Nova Inquisição - Racionalismo Irracional e a Fortaleza da Ciência", em que o autor apresenta uma série de críticas ao ceticismo fundamentalista. Se não conhece, fica aí a sugestão.

    Abraços,
    Felipe.

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  2. Fico feliz em ler artigos com essa qualidade ( e andei lendo alguns) vindos de um meio que eu - preconceituosamente, receio - considerava retrógrado e ortodoxo.Talvez as ressalvas no artigo do aprendiz de cético que vc tão bem rebateu tenham uma origem mais emocional do que racional.Eu devo dizer que conheço religiosos que me dão ganas de mandá-los a um universo paralelo só com passagem de ida :)
    Não sou religiosa e muito menos cristã ( e não serei, por um bocado de razões pessoais), mas é um prazer ler algo relacionado a religião proveniente de uma mente tão lúcida.Parabéns, de coração.

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