"Se é certo que a utopia da véspera se torna muitas vezes a verdade do dia seguinte, deixemos que o dia seguinte realize a utopia da véspera, porém não atravanquemos a Doutrina de princípios que possam ser considerados quiméricos e fazer que a repilam os homens positivos." (Allan Kardec, Obras Póstumas, Constituição do Espiritismo, "Dos Cismas")
Continuação do post anterior de Alexandre F. da Fonseca.
4) Outra falha de fundamentos é não discutir e descrever como tais quanta de
percepção-memória e inteligência levam às propriedades dos seres vivos, ou
mesmo do Espírito. Ter mais intelectons
significa ter mais inteligência? Ter mais perceptons
significa ter mais memória e percepção? Se o Espiritismo ensina que na medida que evoluímos, nosso perispírito se torna mais e mais sutil, nos tornando menos ligados à matéria, então deixamos de ter intelectons e perceptons, perdendo assim inteligência e percepção-memória? Na
pág. 68, o autor afirma que
“os atributos do espírito resultarão, dessa forma, das características de seus componentes, número, disposição e combinação, tal como observamos no caso da matéria...”.
Essa afirmação de Hernani deixa claro um caráter reducionista de sua proposta.
Se “tal como observamos no caso da
matéria” o que determina a forma, componentes,
número e disposição das partículas nos átomos são forças cegas entre essas
partículas, quer dizer que os atributos de inteligência e percepção-memória do
espírito dependerão também de forças cegas? Os espiritualistas não criticam os
materialistas por dizerem que a inteligência e o sentimento decorrem de componentes, disposição e número de
partículas materiais que formam o cérebro e o corpo físico? Em que a teoria de Hernani difere das teorias materialistas? Esse tipo de contradição conceitual
depõe contra a consistência interna da teoria. A intenção do autor foi boa
mas, infelizmente, a forma de abordagem teórica é inconsistente com o
Espiritismo.
5) Outro ponto fundamental
da teoria de Hernani é a definição
da partícula bíon. Sobre o bíon,
é dito na pág. 69 que
“O Bíon é a partícula correspondente à vida em si mesma, independente de prévia organização. É o agente vivificador da matéria.”Essa afirmação contradiz a definição feita pelo próprio autor, na pág. 66 de [1], do conceito de vida como sendo “representada pela coordenação das atividades físicas, químicas e biológicas dos seres chamados vivos.” Essa definição de vida é puramente material e decorreu de observações do comportamento dos seres vivos. Ele afirma, porém, que sua causa (o bíon) não é material. Isso mostra que os conceitos estão definidos de forma incongruente entre si.
Problemas
com conceitos de Física
As
falhas apontadas acima decorrem de inconsistências internas da teoria com ela
mesma ou com conceitos bem estabelecidos pelo Espiritismo. Porém, há também erros
de Física, indicando que o autor aplicou alguns conceitos de maneira
errada na teoria.
Na pág. 70, na seção
intitulada “O “Bíon” e o “Campo Biomagnético” ou “Campo Vital”, do cap. II de
[1], ao explicar ao leitor sobre o surgimento do campo magnético, o autor faz a
seguinte afirmativa:
“A direção e o sentido deste campo são tais, que sua reação sobre a própria carga indutora tende a impedí-la de deslocar-se livremente.”
O autor faz referência à chamada lei de Biot e Savart, para a qual o campo magnético gerado pelo movimento de uma carga elétrica não afeta ela mesma [6]. Talvez a influência a que o autor se refere seja a chamada lei de Lenz [6], que diz que quando o fluxo de um campo magnético através de uma espira ou circuito fechado é feito variar, uma corrente ou movimento de cargas é induzido na espira de tal modo a gerar um campo magnético que se oponha à variação desse fluxo.
Outra possibilidade seria o efeito de irradiação eletromagnética de cargas aceleradas. Isso resultaria em perda de energia cinética, o que causaria alteração na trajetória da carga. Porém, isso seria mais um problema para a teoria de Hernani e não solução, pois o destino de uma carga elétrica em órbita circular em torno do núcleo seria cair sobre ele por causa da perda de energia devido à irradiação. Por essa razão, não se utiliza análise clássica para o magnetismo orbital dos elétrons. Porém, como não há no texto do autor nenhuma análise ou indicação mais segura sobre isso, a impressão que temos é que o autor tinha dificuldades com conceitos mais básicos de física.
Para a definição dos quanta de vida, percepção-memória-inteligência, a teoria atômica serviu de inspiração à teoria de Hernani. Porém, ele não aplica a teoria quântica de momentos angulares para analisar os momentos magnéticos orbitais, sejam eles de elétrons ou bíons, nem considera o spin dos mesmos. O autor considera toda a sua análise dos campos magnéticos de “modo clássico”. Não se pode usar conceitos quânticos numa parte da teoria e ignorá-los em outra parte. Isso torna a teoria de Hernani incoerente com os princípios da Física que ele se propõe a seguir.
Nas páginas seguintes à pág. 70, o autor cita como base de argumentação para a necessidade de um campo organizador dos fenômenos biológicos, algumas referências da época como, por exemplo, comentários do Dr. Sinnott de que “A segunda lei da termodinâmica, o princípio da menor ação, é contrariado pela vida”. O que talvez Hernani não soubesse na época, e que enfraquece os pontos de apoio da sua teoria, foi o desenvolvimento da teoria da termodinâmica de sistemas fora do equilíbrio por Ilya Prigogine [7], que diz que sistemas abertos e longe do equilíbrio termodinâmico podem se auto-organizar e, portanto, são candidatos naturais para descrever sistemas biológicos (certamente sistemas vivos são abertos e longe do equilíbrio, mas nem todo sistema termodinâmico com essas características pode ser chamado de ‘vivo’). Considerar que os sistemas biológicos violam a 2ª lei da Termodinâmica é, hoje em dia, um erro conceitual.
Outra possibilidade seria o efeito de irradiação eletromagnética de cargas aceleradas. Isso resultaria em perda de energia cinética, o que causaria alteração na trajetória da carga. Porém, isso seria mais um problema para a teoria de Hernani e não solução, pois o destino de uma carga elétrica em órbita circular em torno do núcleo seria cair sobre ele por causa da perda de energia devido à irradiação. Por essa razão, não se utiliza análise clássica para o magnetismo orbital dos elétrons. Porém, como não há no texto do autor nenhuma análise ou indicação mais segura sobre isso, a impressão que temos é que o autor tinha dificuldades com conceitos mais básicos de física.
Nas páginas seguintes à pág. 70, o autor cita como base de argumentação para a necessidade de um campo organizador dos fenômenos biológicos, algumas referências da época como, por exemplo, comentários do Dr. Sinnott de que “A segunda lei da termodinâmica, o princípio da menor ação, é contrariado pela vida”. O que talvez Hernani não soubesse na época, e que enfraquece os pontos de apoio da sua teoria, foi o desenvolvimento da teoria da termodinâmica de sistemas fora do equilíbrio por Ilya Prigogine [7], que diz que sistemas abertos e longe do equilíbrio termodinâmico podem se auto-organizar e, portanto, são candidatos naturais para descrever sistemas biológicos (certamente sistemas vivos são abertos e longe do equilíbrio, mas nem todo sistema termodinâmico com essas características pode ser chamado de ‘vivo’). Considerar que os sistemas biológicos violam a 2ª lei da Termodinâmica é, hoje em dia, um erro conceitual.
Na
seção intitulada “A Diafaneidade do Espírito”, do cap. IV de [1], na pág. 119
o autor afirma que
“As formações espirituais simples são verdadeiros átomos espirituais. Todavia as distâncias entre o núcleo e os bíons devem ser muito maiores do que as distâncias que separam os elétrons dos respectivos núcleos no átomo físico. É esta uma condição necessária para que o espírito seja mais diáfano do que a matéria. Consequentemente, a velocidade dos bíons ao redor dos núcleos vem a ser também grande, ...” (Grifos em negrito, meus).
Na explicação acima, encontramos
diversos problemas de natureza física e filosófica. Primeiro, a necessidade de
impor aos bíons que circulem a distâncias maiores do núcleo do que os elétrons
em torno dos núcleos materiais, para explicar a diafaneidade dos Espíritos, significa
que bíons e elétrons, núcleos materiais e espirituais, não possuem naturezas diferentes:
seriam ambos matéria tão densa uma quanto a outra. Isso mostra a oposição da
teoria de Hernani ao que ensina o Espiritismo.
O
segundo problema é de compreensão do significado do continuum espaço-tempo. De acordo com a Física [4], se a velocidade
dos bíons tiver que ser maior que a velocidade dos elétrons nos átomos
materiais, então ocorrerá com os átomos espirituais uma contração espacial
resultante do continuum espaço-tempo,
assim como ocorre com o átomo de mercúrio [8] cujos elétrons de valência são
acelerados a velocidades maiores do que os elétrons de valência de outros
metais, e por isso ocorre uma contração dos seus orbitais, e um enfraquecimento
da força de interação entre os átomos de mercúrio, tornando-o líquido à
temperatura ambiente. Como consequência disso, por se movimentar mais rápido, a
trajetória do bíon em torno do núcleo espiritual será reduzida em tamanho, contradizendo a própria hipótese (colocada à mão) de que ela deve ser maior em
tamanho e distância do que a dos átomos materiais. Esse é um erro de
inconsistência interna que revela, no fundo, a precariedade da proposta de Hernani em explicar a diafaneidade dos Espíritos.
Na
seção intitulada “Ação Mútua Entre Espírito e Matéria”, do cap. VI de [1],
o autor faz o seguinte comentário:
“A vivificação da matéria depende da possibilidade de interação de dois campos. Um deles é o biomagnético, gerado pelo bíon. O outro seria o eletromagnético ... Para explicar o fenômeno, precisamos transpor algumas barreiras conceituais da própria Física, admitindo-se que o movimento dos elétrons, quando cobrindo uma superfície fechada em torno do núcleo, possa desenvolver um momento magnético perpendicular, ao mesmo tempo, aos três eixos cartesianos que definem um espaço físico. Este momento magnético originaria um campo atuando no hiperespaço. A presença de qualquer substância material suscitaria, como conseqüência, a manifestação deste tipo de campo orientado para uma das direções do hiperespaço.” (Grifos em negrito, meus).
Aqui, há um erro que consideramos
ser grave dentro dos métodos de trabalho da Física. Não se pode propor
hipóteses que extrapolem conceitos bem estabelecidos sem bases experimentais! A
importância da hipótese é diretamente proporcional à necessidade de respaldo
experimental. Na ausência desta, a hipótese não tem valor científico, nem apoio
da Física. Não se pode “transpor
barreiras conceituais da Física” sem realizar um trabalho de demonstração
experimental que sustente essa “transposição”.
Exemplos: a proposta de quantização de Planck, além de bem explicada, permitiu
ajustar com precisão matemática os dados experimentais para a radiação de um
corpo negro [4]; a proposta de quantização da radiação eletromagnética permitiu
Einstein explicar de modo muito simples o efeito fotoelétrico [4].
Há,
porém, outro erro de natureza fundamental a respeito do significado do continuum espaço-tempo. A quarta
dimensão não sendo espacial, nenhum campo magnético pode estar orientado na
direção do tempo. Logo, essa proposta também é incoerente com a Física.
Divergências no conceito de alma
No fim do cap. VII de [1], o autor analisa o conceito de alma segundo sua teoria. Na seção intitulada “A Alma”, na
pág. 291, ele diz:
“No caso do espírito encarnado, pode assinalar-se, do mesmo modo, a presença de um fluxo biomagnético atravessando o soma físico. Suas linhas de força estão dispostas de acordo com as vibrações do campo, as quais apresentam os delineamentos característicos dos tecidos orgânicos. Todas as minúcias das configurações moleculares protoplásmicas, celulares, fisiológicas, etc., acham-se estampadas no espectro biomagnético, formando uma duplicata biomagnética do corpo carnal. (...) Destruído o equipamento fisiológico, [...], cessam as manifestações do espectro. A duplicata biomagnética deixa de agir. A Teoria Corpuscular do Espírito reconhece como a alma a referida duplicata biomagnética acima descrita.” (Grifos em negrito, meus).
Esse conceito de alma da teoria de Hernani deixa claro como sua teoria está em desacordo com o Espiritismo. A alma, de acordo com o Espiritismo (itens 10 a 14 de O Que É O Espiritismo [9]), é o “princípio inteligente em que residem o pensamento, a vontade e o senso moral”. Logo, a alma não pode consistir de um campo biomagnético, pois campos magnéticos, segundo a Física, são efeitos da presença e movimento de cargas elétricas. O conceito de alma do Espiritismo está relacionado com o elemento inteligente do universo, que é aquilo que pensa e tem vontade e, portanto, não pode ser efeito da distribuição espacial e temporal de partículas, mesmo que espirituais.
A discrepância entre a teoria de
Hernani e o Espiritismo fica mais clara com as afirmativas contidas na pág.
292, de que a alma
“surge juntamente com o corpo” e “se dissipa à medida que os veículos somáticos se desagregam;”.
Vê-se daí que essa
teoria, além de se basear em premissas cientificamente erradas, destoa em suas
consequências dos conceitos espíritas.
Continua no próximo e último post com análise de outra obra de Hernani G. Andrade: 'O Psi Quântico'.
ReferênciasIlustração de uma 'estrutura do hiperespaço' usando as ideias de Hernani G. Andrade. O eixo vertical é o tempo. |
[1] H. G. Andrade, A Teoria Corpuscular do Espírito,
re-impresso pela Editora DIDIER, Votuporanga, (2007).
[2] H. G. Andrade, Psi Quântico, 3ª edição, Editora
Pensamento LTDA, São Paulo (1991).
[3] S. S. Chibeni, “O Espiritismo em
seu tríplice aspecto: científico, filosófico e religioso”, Reformador, Agosto, p. 37
(2003); Setembro, p. 38 (2003); Outubro, p. 39 (2003).
[4] R. Eisberg e R. Resnick, Física Quântica – Átomos, Moléculas,
Sólidos, Núcleos e Partículas, Editora Campus, 21a. Reimpressão (1979).
[5] A. Kardec, O Livro dos Espíritos, FEB, 1ª. edição, Rio de Janeiro (2006).
[6] D. Halliday, R. Resnick e J.
Walker, Fundamentos da Física – Volume 3
– Eletromagnetismo, Editora LTC, 8a. Edição
(2009).
[7] I. Prigogine, Introduction to Thermodynamics of Irreversible Processes. 3rd
edition, Wiley Interscience, New York (1967).
[8] L. J. Norrby, "Why is mercury
liquid? Or, why do relativistic effects not get into chemistry textbooks?"
Journal of Chemical Education 68, 110 (1991).
[9] A. Kardec, O Que É O Espiritismo, Ed. FEB, 1ª Edição de bolso, Rio de Janeiro
(2008).
Links
1o. Post: Análise de 'A Teoria Corpuscular do Espírito e Psi Quântico' (Alexandre F. da Fonseca)
Puxa Alexandre, muito instrutiva a sua análise. Acho que vou ter que rever muitas coisas no meu vocabulário adquirido de livros de divulgação científica. Este é um trabalho muito importante de aclaramento destes termos ainda incompreendidos ou vagamente compreendidos.
ResponderExcluirRAFAEL SOUZA ROSA
ResponderExcluirNo meu entender, não é teoria corpuscular do espírito, pois o Espírito é imaterial, criador da própria Física, pela sua moldagem do Fluido Cósmico Universal. O que Hernani G. Andrade descreve nesta obra, nada mais é do que a Teoria Corpuscular do Perispírito!!!
Mas ele ainda carrega na sua alma este espírito de observador e cientista, pois ele foi nada mais do que a reencarnação do famoso químico francês Antoine Laurent Lavoisier, que fora guilhotinado em 1794...
É verdade... Ele deveria ter usado como título 'Teoria corpuscular do perispírito', seria melhor e evitaria confusão.
ResponderExcluirObrigado pelo comentário.
Nunca vi tanta besteira em minha vida! !!!!
ResponderExcluir