22 de janeiro de 2011

Fundamentos II - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea bem estabelecida advém de sua estrutura em paradigmas, onde os fenômenos não têm papel central.  Muitas vezes pode acontecer que uma determinada teoria seja melhor que outra, ao mesmo tempo que ninguém acredite nela. Teorias como realizações mentais ou afirmações sobre o mundo são criadas livremente por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo), e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças. É pela adequação dessas teorias aos fenômenos que elas se tornam aceitas por um grupo maior. O problema é que a definição de experimentos ou a previsão de determinadas ocorrências fenomenológicas depende da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa situação. Em física – que é uma das ciências costumeiramente consideradas com grande prestígio – é bastante nítido a ocorrência de “previsões experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca observados anteriormente. Essa inversão de papéis, no que tange à importância para o desenvolvimento da Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa de confusão tanto no que se refere à compreensão correta da Ciência em si como do aspecto científico do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço para compreender essa inversão, que será útil na discussão da relação entre o Espiritismo e a Ciência. 

A Ciência só tem início com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador (como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento científico não é importante para a Ciência. Isto quer dizer que uma determinada teoria não tem valor maior ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade de seus proponentes. A partir da proposição da teoria, segue a tentativa de explicação dos fenômenos com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte do núcleo principal da teoria. Como um exemplo, podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia. As leis que governam os fenômenos meteorológicos são leis físicas, assentadas em princípios térmicos e termodinâmicos. Para prever a situação de tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições de fronteira” específicas tais como a separação entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma determinada região, a posição do sol (sua altura em relação ao solo) etc. Essas são as leis complementares. 

Dissemos que a maior parte das pessoas considera a noção popular a própria essência do “método científico”. Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que tem como objetivo explicar, de maneira supostamente científica, os fenômenos mediúnicos do Espiritismo. Essas disciplinas apresentam escassa discussão teórica, dando enorme ênfase à descrição puramente fenomenológica dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações, essas procuram se ligar fortemente aos fenômenos. Dessa forma, é comum a tentativa de explicação simplificada para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como “hipótese” para explicar as comunicações dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos. Ora a “telepatia” é definida simplesmente como a capacidade de transferência de informação entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação. Nas “ciências psi” busca-se dar explicações aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo, explicações têm a aparência de verdade  pela sua designação por nomes empolados, difíceis de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida a frase, dada à guisa de explicação, de que os fenômenos psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas “10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade cerebral? Nas “ciências parapsicológicas” ocorrem falhas  de compreensão dos verdadeiros atributos de uma disciplina para ser denominada ciência. 

Já discutimos muito brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção de ciência” mais próxima da realidade. Há um centro irradiador de explicações (a teoria) integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam a estrutura do paradigma e integram os princípios que fazem parte dele aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma fornece explicações para os fenômenos, inclusive alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen para explicação de muitos fenômenos nunca observados. Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento de muitas ciências bem sucedidas.

Fig. 2

Também o modelo da Fig. 2 não faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos de medida experimental, pois a existência desses aparelhos só se justifica pelo paradigma que explica seu funcionamento. É o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos é fornecida pela óptica, uma área da física, não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica. É possível englobar os princípios da óptica e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso a “física”), mas prefere-se mantê-los separados por referirem a domínios fenomenológicos diferentes. Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos não tem correlação alguma com o rigor com que eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo, estimula-se a realização de testes experimentais simples, de observação direta, onde haja pouca influência de fatores de erro a comprometer a realização das medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma, os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível notar que um mesmo paradigma fornece explicações para inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente como sem correlação alguma com a teoria. Há inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente segundo o modelo “paradigmático” de ciência. Percebe-se que a negação dos fenômenos não traz consequência alguma para a ciência vista nesse sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma preocupação com o grau de comprometimento do cientista com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença particular do cientista tem uma importância muito grande e benéfica para a ciência. Há, porém, limites para a livre criação, o corpo teórico deve ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência de um determinado paradigma é medida em termos de sua capacidade de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações, essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos, mais ou menos imutáveis. Mas, essa imutabilidade não deve ser entendida com a rigidez dos dogmas.

Entendemos que a parte científica do Espiritismo deve ser entendida no modelo da Fig. 2. Nele os fenômenos são parte secundária e não fundamental da doutrina. A Doutrina Espírita contém o núcleo principal teórico da ciência espírita. Pela utilização de leis complementares, chega-se a explicação dos fatos. No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência do perispírito como agente intermediário entre o Espírito e o corpo material é fundamental para compreender a imensa maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita, vista como paradigma com conseqüências mais profundas, toca um conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos, mentais etc. Assim, embora não seja seu objetivo principal, o Espiritismo contribui com muitas áreas do conhecimento, em particular com aquelas que buscam compreender a origem, essência e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo. O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência espírita e o paradigma espírita é formado por um conjunto harmônico e mais ou menos fixo de fundamentos. Princípios como a existência de Deus, do espírito como elemento fundamental (além da matéria), da evolução do Espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte das criaturas) explicam e preveem os fenômenos. Consideremos o caso das doenças mentais. Faz parte desse enorme grupo de patologias (que afetam o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes de doenças provocadas por influências espirituais – as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo (desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para as correntes que negam a existência do Espírito, e que buscam uma explicação puramente material. Já citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a comunicação entre Espíritos é um fato bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre Espíritos encarnados é uma forma particular dessa capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa explicação funda-se num princípio muito mais geral que justifica, simples e igualmente bem, a enorme variedade de comunicações ou fatos psíquicos.

3. Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Depois dessa discussão inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita infalível, tal como o sonho de um método rigoroso, para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade altamente complexa e integrada no tempo através de grupos de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante das considerações feitas, classifica-se plenamente como uma doutrina científica. Não segue daí que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado. Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez. Modificações no paradigma só acontecem – são conclusivamente admitidos como necessários – se houver razões muito fortes para isso. Tal não é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais razão, as tentativas de “reforma” do núcleo principal do Espiritismo (invenção de novos princípios em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão desses princípios. Clamores recentes nesse sentido são assentados em considerações bastante pueris, e deixam entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter do Espiritismo.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).



5 comentários:

  1. Muito bom seus textos, Ademir!

    Também vejo como de fundamental importância o estabelecimento de um modelo consistente para se fazer ciência espírita.

    Nesta linha gostaria de saber se você tem algo sobre a natureza espiritual e sobre o processo de evolução do espírito.

    Kardec, aparentemente, não deixou muito claro se a natureza espiritual é imaterial. Da mesma forma, não ficou muito claro a natureza do perispírito.

    No caso da evolução do espírito há uma imprecisão na explicação dos seus primeiros estágios.

    Seria muito interessante se nós, espíritas, chegássemos a um consenso sobre estes pontos.

    Abraço!

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  2. Com certeza habilitar o Espiritismo como filosofia é essencial para sustentar uma proposta científica dos fenômenos espirituais.
    Os erros clássicos sao extamente aplicar o paradigma filosófico materialista, pressupondo-o como o "ponto de vista" científico, ou imaginar que uma filosofia e ciência espíritas possam ou precisem converter os opositores para se validar.
    Como toda linha de pesquisa ou filosofia, a sua plausibilidade depende da continuidade e alargamento dos estudos, teorias e testes, nao de um eterno retorno ao seu ponto de partida.
    Este século parece ter comecado com um ânimo favorável a este desenvolvimento.

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  3. Ola Vital

    Eu tenho várias idéias, mas é muita coisa para se discutir em poucas palavras. Certamente a questão da origem do Espírito ficou sem resposta, assim como não temos atualmente também resposta para a origem da matéria...

    Com o tempo, espero que possamos avançar mais nesses pontos e, em breve, iniciarei um estudo mais detalhado no blog. Assim, poderemos avançar e trocar conhecimento sobre cada ponto.

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  4. Humberto,

    Esse é realmente o objetivo de nossas discussões. Acredito que o problema central - com sempre - é falta de esclarecimento filosófico. Não tenho conhecimento formal em filosofia mas acho que podemos aprender aos poucos e os textos refletem essa tentativa de expor uma argumentação mais razoável. Obrigado pelos comentários.

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  5. Olá Ademir,

    Muito oportuno os textos que voce tem colocado no blog.

    Em particular, achei bem apropriado a esses tempos "modernos" o comentário de que quanto mais simples, melhores são os experimentos científicos, e não o contrário, isto é, experimentos complexos. A sofisticação num experimento acaba por aumentar o trabalho de justificação do mesmo em termos dos conceitos básicos da respectiva ciência e só é empregado quando necessário.

    Sobre a questão da teoria definir o experimento, um exemplo interessante é a maneira pela qual a massa do neutrino foi medida pelos cientistas: puramente baseada na teoria! Se, por exemplo, na viagem Sol-Terra um certo tipo de neutrino se transformar em outro, numa certa taxa, então pela teoria ele tem que ter massa...

    Um abraço,
    Alexandre F. da Fonseca

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