15 de janeiro de 2021

Comentários sobre "Uranografia geral" de "A Gênese" de A. Kardec - I

Cometa de Donati sobre uma Paris sem luz elétrica como visto em 1858.

Obra completa contendo todos os comentários e a conclusão.

Fazemos aqui alguns comentários sobre o Capítulo VI “Uranografia Geral” de "A Gênese" de A. Kardec. Nosso objetivo é comentar o conteúdo desse capítulo no contexto de sua época, e indicar algumas mudanças que aconteceram nas concepções científicas de Astronomia e Cosmologia desde que o texto desse capítulo foi publicado.

Não nos move nenhum interesse em “atualizar” a Gênese, o que seria algo absurdo, mas apenas informar o leitor sobre o que teria eventualmente mudado em nossas concepções científicas desde o Século XIX. O uso da 5ª edição não afetará quaisquer conclusões a respeito do que apresentamos aqui sobre a Uranografia. Isso porque o referido capítulo tem como base em textos de C. Flammarion (como médium) que foram produzidos na Sociedade Espírita de Paris entre 1862 e 1863.

No que segue, pare evitar que o texto do post fique muito longo, comentamos as passagens identificando-as conforme o parágrafo em que aparecem na referência [4]. Quando necessário é feita citação expressa da passagem. É importante dizer que o relato da "Uranografia Geral" se refere a detalhes que pouco afetam o caráter da Revelação Espírita e sua importância. Entretanto, Kardec provavelmente resolveu incluir esse capítulo, pois ele seria uma "síntese" do que se conhecia na época no tema em consonância com a nova doutrina então nascente.


Comentários sobre “O Espaço e o tempo”

1

Atenção: chamamos de "seção" os itens numerados conforme a denominação de "parágrafos".

Essa seção se inicia com uma definição e alguns comentários sobre concepções antigas de espaço na forma da “extensão que separa dois corpos”. O autor do texto declara que o espaço é “infinito, pela razão de ser impossível imaginar-se lhe um limite qualquer”. O argumento é que é mais fácil imaginar um espaço em que se avança “eternamente” do que algo que chegue a um fim, o que seria a “fronteira do Universo” além da qual nada existiria. Essa concepção de espaço (que tem implicações para o tamanho do Universo) é, de fato, bem antiga e já aparecia aos antigos gregos. 

O que sabemos hoje: do ponto de vista científico apenas podemos afirmar que o Universo observável é limitado, mas não fazemos ideia se ele é finito ou não. Alguns teóricos, movidos pelas novas concepções de “curvatura do espaço” da Relatividade Geral acreditaram ser possível dizer que o Universo é “finito, mas ilimitado”. Com isso, um caminhante jamais atingiria limite algum ao percorrer uma superfície curva (fechada sobre si), que, apensar disso é finita. A realidade é que não sabemos a resposta para essa questão porque ela depende de forma crucial do avanço do conhecimento em Cosmologia. 

A partir do 4º parágrafo da seção, o autor usa de uma analogia para explicar o que ele entende por infinitude do espaço. Nessa figura, a “velocidade da centelha elétrica” é usada para descrever o movimento de um observador a “milhões de léguas por segundo”. Hoje sabemos que essa velocidade é da ordem de 100 mil quilômetros por segundo (ou 1/3 da velocidade da luz) [5]. A palavra “légua” refere-se a uma unidade antiga usada antes do sistema métrico e que correspondia a uma distância entre 5 ou 6 quilômetros (a légua imperial tem 4,82 quilômetros). Ou seja, nessa unidade, a velocidade do relâmpago seria algo como 16 mil léguas por segundo. 

A velocidade mais rápida que existe é a velocidade da luz no espaço livre: cerca de 300 mil quilômetros por segundo. Esse valor, ou algo próximo dele, já era conhecido desde, pelo menos, 1676 quando Olaf Römer [6] mediu o valor de 211 mil quilômetros por segundo. E, já em 1848, H. Fizeau [7] foi capaz de medir um valor mais próximo do atual. 

Chama a atenção este trecho:
Ora, há apenas poucos minutos que caminhamos e já centenas de milhões de milhões de léguas nos separam da Terra, bilhões de mundos nos passaram sob as vistas e, entretanto, escutai! Em realidade, não avançamos um só passo que seja no Universo.
Mesmo viajando a velocidade da luz, para “passar de vista” bilhões de mundos, seriam necessários centenas ou milhares de “anos-luz” e não “poucos minutos” (pelo menos para os encarnados...). Embora a imprecisão na descrição (?), o autor teve como objetivo passar a ideia de que, por mais que se caminhe em qualquer direção no Universo (isotropia) a partir de qualquer ponto (homogeneidade) muito pouco se avança diante de um universo infinito. Se o Universo for realmente infinito, essa conclusão é correta.

2

O autor do texto repete nessa seção por três vezes a definição: “o tempo é apenas uma medida relativa da sucessão de tempo das coisas transitórias”, o que o torna indistinguível da ideia de “duração”. Numa época em que espaço e tempo não poderiam ser vistos com aspectos de uma mesma realidade, o autor conclui acertadamente que, se o espaço é infinito, então o tempo também deve ter duração infinita. A infinitude do espaço exige a eternidade do tempo: “Imensidade sem limites e eternidade sem limites, tais as duas grandes propriedades da natureza universal”. 

Para a noção de eternidade o autor usa da mesma figura da infinitude do Universo:
O inconcebível amontoado de séculos que nos passaria sobre a cabeça seria como se não existisse: diante de nós estaria sempre toda a eternidade.
Junto a tal conclusão, a Seção 2 descreve uma imagem para a origem do tempo que nos lembra uma descrição bíblica:
Mas, silêncio! soa na sineta eterna a primeira hora de uma Terra insulada, o planeta se move no espaço e desde então há tarde e manhã. Para lá da Terra, a eternidade permanece impassível e imóvel, embora o tempo marche com relação a muitos outros mundos.
Com isso o autor quis dizer que a noção de tempo se prende a um local, o tempo terreno (como medida de sucessão das coisas) começou assim que a Terra se formou e terminará quando ela tiver o seu último dia. Isso não impede que existam “outros tempos” em outros mundos: “tantos mundos na vasta amplidão, quantos tempos diversos e incompatíveis”. Essa ideia diferia da concepção então vigente na época – a noção clássica de simultaneidade universal porque o tempo era considerado absoluto. Para ver isso, relembramos a definição de Newton [8]:
O tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, flui uniformemente sem relação com qualquer coisa externa e é também chamado de duração.
Hoje sabemos, com a teoria da Relatividade Restrita, que a noção de tempo “como sucessão das coisas” é, de fato, uma medida local e que não há compatibilidade entre as “medidas de tempo” entre referenciais diferentes que não estão “sincronizados”.  

Comentários sobre "A matéria"

3

Essa seção se inicia chamando a atenção para a diversidade de aparências da matéria. Disso concluímos que, “à primeira vista”, matéria é aquilo que sensibiliza diretamente aos sentidos humanos. Mas, logo no segundo parágrafo, o autor anuncia um “princípio absoluto” pelo qual:
Todas as substâncias, conhecidas e desconhecidas, por mais dessemelhantes que pareçam, quer do ponto de vista da constituição íntima, quer pelo prisma de suas ações recíprocas, são, de fato, apenas modos diversos sob que a matéria se apresenta; variedades em que ela se transforma sob a direção das forças inumeráveis que a governam. 
Para entender isso, é preciso rever a questão, p. ex., 30 de “O Livro dos Espíritos” [9] onde se lê que a matéria é formada “de um só elemento primitivo”. Esse é um conceito fundamental no Espiritismo de Kardec, que contrastava com o conhecimento da Química e da Física do Século XIX. Sua origem está na definição de matéria, que é dada na questão 22a em “O Livro dos Espíritos” e no desenvolvimento subsequente que podemos ler nas questões 32 e 33. 

4

O texto chama a atenção para as descobertas recentes da Química, de que se poderia reduzir a matéria a combinações de elementos. Na p. 110 de [4], há uma nota com a relação dos elementos conhecidos então. Na época em que “A Gênese” foi lançada, os estudos sobre pesos atômicos já indicavam a “natureza quantizada” das massas dos elementos químicos, o que era uma indicação de que eles seriam formados por unidades discretas. Mas, tão só pela manipulação química, nunca foi possível decompor ainda mais nenhum dos elementos. A intenção do autor foi indicar possíveis “reduções adicionais” uma vez que declara que:
(a ciência da época)...os considera primitivos e indecomponíveis e que nenhuma operação, até hoje, pode reduzi-los a frações relativamente mais simples do que eles próprios. 
O ponto fundamental, que deve prender a atenção o leitor, é que ainda não havia sido descoberta a radioatividade. Essa nova área da Física permitiria a “redução a frações mais simples” dos elementos químicos então conhecidos. A história da radioatividade [10] se iniciou com a descoberta por H. Becquerel em 1895 de raios específicos gerados por determinados materiais, a partir da busca por “novos raios” como o Raio-X feita por W. Röntgen em 1895. Destacam-se ainda as descobertas do elétron (por J. J. Thomson em 1897) e da fissão nuclear (por L. Meitner e O. R. Frisch em 1938). 

Imagem de um antigo laboratório de farmácia. Na época de "A Gênese", a química tinha reduzido a matéria a um conjunto de "elementos químicos" irredutiveis. Nossa situação presente é a mesma: a matéria foi reduzida a um conjunto de "partículas e subpartículas elementares" (quarks, elétrons etc) que também são "irredutíveis".

Hoje podemos afirmar que todos os elementos químicos são de certa forma redutíveis a combinações de: o hidrogênio ionizado H+ (também conhecido como próton, que é o elemento mais leve e abundante no Universo conhecido), o nêutron (sem carga e com massa equivalente ao próton), além do elétron, de carga negativa, necessário para dar estabilidade ao conjunto. Cada elemento químico seria então formado por combinações dessas "substâncias mais primitivas". 

Mas prótons, nêutrons e elétrons não podem ser decompostos? A ideia de continuar a decomposição teve que esperar inúmeros outros desenvolvimentos na física de partículas. Chegamos hoje, por exemplo, à “teoria dos quarks” (de Gell-Mann e Zweig em 1964 [11]) que seriam os blocos fundamentais dos “hádrons” (prótons e nêutrons). Entretanto, essas partículas não podem ser “isoladas” e seus efeitos são inferidos indiretamente. 

Portanto, voltamos à mesma situação da Química do século XIX que não conseguia decompor os elementos então conhecidos em unidades ainda menores...Em certo sentido, isso é um retorno à "teoria dos quatro elementos" de que fala o autor de "Uranografia Geral". Embora os conceitos sejam muito diferentes e não possam ser comparados, a ideia é reduzir todas as variedades possíveis de matéria à combinações de elementos primitivos, no caso presente, partículas e subpartículas atômicas.

5

O autor reafirma a crença de que a matéria é formada de apenas um elemento: a "matéria cósmica primitiva" que participa, por associação aos corpos, da constituição desses. Como toda matéria, para existir, precisa de certa energia para se formar, a afirmação pode hoje ser interpretada como uma referência à energia primordial de que o Universo foi dotado desde sua criação, sem a qual não seria possível ter todas as variedades de matéria. Para "formar o Universo" não seria suficiente dotá-lo de matéria apenas, mas também de energia. Por causa das transformações nucleares, as duas coisas - matéria e energia  - acabam se confundindo. 

Hoje sabemos que essa energia existe disseminada em todo o espaço e, de suas flutuações, a matéria é  "criada".

6

O autor espiritual confessa o estado de ignorância em que ele se encontra para emitir opiniões sobre determinadas questões (de caráter científico). Isso é uma demonstração de sua humildade, talvez a razão de Kardec ter incluído a  "Uranografia Geral" em "A Gênese". Ele reafirma então sua crença na "unicidade da matéria", no sentido que ele conferiu anteriormente.

7

Outros argumentos são fornecidos para a ideia da matéria cósmica primitiva: a de que as diversidades observadas da matéria tangível se devem a um "número ilimitado de forças" que atuam transformando seus constituintes, o que foi plenamente verificado pelo desenvolvimento científico. 

A referência aos "fluidos propriamente ditos" não diz respeito somente aos "fluidos magnéticos" ou de natureza "espiritual" que encontramos em "O Livro dos Espíritos" e que fundamentam o Espiritismo, mas também a outros, que, no século XIX eram responsáveis pela atuação de "forças a distância" (como o fluido elétrico e o magnético propriamente dito). 

Hoje sabemos que, o Universo, mesmo onde ele é considerado "vazio", está repleto de um tipo de matéria que nos escapa à apreensão direta. Das flutuações nesse vazio, a matéria pode nascer, o que não era conhecido na época em que "A Gênese" foi lançada.

Não sabemos, entretanto, se os constituintes das partículas elementares podem ser decompostos ainda mais. Recentemente, inúmeros outros problemas - como o da "matéria escura" [12] - apareceram e desafiam as teorias vigentes. Entretanto, todos esses fluidos, para existir, necessitam de energia, o que é uma razão para associar esse elemento primitivo à energia primordial. Como o espaço considerado "vazio" (o vácuo) está cheio de energia [13] de onde pode nascer a matéria, talvez possamos dizer que a afirmativa do autor se concretizou em certo sentido.

Continua no próximo Post com "As leis e as forças".

A conclusão de nosso estudo será publicada no último post. 

Referências

[4]  A. Kardec (1991). A Gênese, os Milagres e as Predições segundo o Espiritismo. 34ª Edição, Trad. G. Ribeiro a partir da 5ª Edição de 1868. FEB. 

[5]  Idone, V. P., Orville, R. E., Mach, D. M., & Rust, W. D. (1987). The propagation speed of a positive lightning return stroke. Geophysical research letters, 14(11), 1150-1153.

[6]  Van Helden, A. (1983). Roemer's speed of light. Journal for the History of Astronomy, 14(2), 137-141.

[7] Aparelho de Fizeau-Foucault - Wikipedia Fizeau–Foucault apparatus 

[8] I. Newton (1990). Principia: princípios matemáticos de filosofia natural - Vol.I (Trad. Trieste Ricci et al.), São Paulo: Nova Stella / EDUSP,pp. 6-7.

[9] A. Kardec (1991). “O Livro dos Espíritos”. 71ª Edição traduzida por Guillon Ribeiro. FEB.

[10] Xavier, A. M., De Lima, A. G., Vigna, C. R. M., Verbi, F. M., Bortoleto, G. G., Goraieb, K., ... & Bueno, M. I. M. S. (2007). Landmarks In The History Of Radioactivity And Current Tendencies [marcos Da História Da Radioatividade E Tendências Atuais]. Química Nova.

[11] Quark – Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Quark

[12] Matéria escura - Wikipedia https://pt.wikipedia.org/wiki/Mat%C3%A9ria_escura

[13] Sidharth, B. G. (2005). The universe of fluctuations (pp. 73-115). Springer Netherlands.



31 de dezembro de 2020

O idioma da esperança para um novo mundo


Comecei a sentir que talvez a morte não fosse um desaparecimento, 
mas um milagre, e que há um tipo de lei na Natureza 
que nos guie para algum destino... L. L. Zamenhof [1b]

Essas foram algumas dos últimos escritos de Zamenhof, o criador do Esperanto, registrado em sua obra Mi estas homo (“Eu sou uma pessoa”, [1c] conforme citado em [1]). Esse trecho sintetiza um dos últimos pensamentos antes da morte de Zamenhof em 1917. Não é novidade que diversas línguas artificiais foram criadas para motivar a comunicação internacional humana. Entretanto, nenhuma delas teve maior apoio internacional do que o Esperanto, criado por Ludwik Lejzer Zamenhof (1859-1917). Neste post exploramos algumas das razões para isso.

Quase sempre quando se fala em uma língua internacional, todos nos lembramos que já dispomos de uma: o inglês. Por isso, a proposta de uma nova língua sempre enfrenta críticas aparentemente robustas. No mais, o desenvolvimento sem precedentes de sistemas de inteligência artificial projeta a possibilidade de sistemas de tradução em tempo real que tornariam – em tese – desnecessário sequer a existência de uma língua universal. Não obstante isso, pessoas continuam a escolher e estudar um idioma para sua comunicação internacional, porque não parece fazer sentido se comunicar face a face via aparelhos.

Entretanto, de tempos em tempos, perturbações mais ou menos severas na ordem econômica e social chamam a atenção mais uma vez para o problema linguístico entre nações. A ameaça do deslocamento do eixo econômico do mundo para o oriente dispara um alerta: com base no poderio econômico, seria possível ao inglês perder seu status de língua internacional, assim como aconteceu ao Grego, ao Latim, ao Francês para citar os casos mais famosos? Estaríamos nossos filhos fadados a ter que aprender o Mandarim [5] como próxima língua dos negócios e da técnica?

Visto como um “divertimento” inconsequente por uns ou como perda de tempo por outros, por razões diversas o Esperanto sobreviveu a perseguições e zombarias. Recentemente, recebeu um grande impulso: a plataforma Duolingo de aprendizado de línguas online disponibilizou as duplas Inglês-Esperanto, Português-Esperanto e Espanhol-Esperanto. Ao todo aproximadamente 2,9 milhões de pessoas começaram a aprender Esperanto por meio desta plataforma, 1,6 milhões do Inglês, 870 mil do Espanhol e 366 mil do Português. [2]. Esses números referem-se aos komencantoj (iniciantes), não necessariamente os que terminam os cursos.


Se toda língua humana carrega uma bagagem cultural e se impõe com base na economia (todos queremos imitar os povos mais adiantados economicamente), qual poderia ser a força do Esperanto? Sem nenhum país a apoiá-lo e nem recursos financeiros, o Esperanto se apresenta como uma proposta de comunicação, mas ligada ao desejo de seu criador: o de um meio de propagação da fraternidade universal.

A origem superior do Esperanto

Se nós, os primeiros defensores do Esperanto, 
somos forçados a evitar qualquer coisa espiritual em nossas atividades, 
seria melhor que rasgássemos e queimássemos 
tudo o que temos escrito para o Esperanto, que desfizéssemos dolorosamente 
o trabalho e o sacrifício de nossas vidas, 
que arremessássemos longe de nós 
a estrela verde que ostentamos em nosso peito para gritar com repugnância: 
"Nada temos a ver com esse Esperanto, que existirá apenas a serviço do comércio e das coisas práticas". (L. L. Zamenhof, citado em [1], p. 31.

Todos conhecemos o apoio dado pelo movimento espírita ao ensino do Esperanto no Brasil. Esse apoio se estabeleceu principalmente com as palavras de Emmanuel [3] em uma mensagem em 1940:
Também o Esperanto, amigos, não vem destruir as línguas utilizadas no mundo para o intercâmbio dos pensamentos. A sua missão é superior, é da união e da fraternidade rumo à unidade universalista. Seus princípios são os da concórdia e seus apóstolos são igualmente companheiros de quantos se sacrificaram pelo ideal divino da solidariedade humana, nessas ou naquelas circunstâncias. A língua auxiliar é um dos mais fortes brados pela fraternidade, que ainda se ouve nesse Planeta empobrecido de valores espirituais, neste instante de isolacionismo, de autarquia, de egoísmo e de nacionalismo adulterado. 
Para compreender a justificativa desse apoio, basta consultar a história do desenvolvimento do idioma. Muito antes de se tornar oftalmologista, Zamenhof apresentou um “proto versão” de sua língua universal em dezembro de 1878 aos seus alunos. A “canção do batizado”, entoada como um hino por eles depois de aprenderem seus fundamentos, dizia:
Caiam, caiam as barreiras hostis entre as pessoas. 
É chegado o tempo! 
Toda Humanidade deve se reunir como uma única família. [1, p. 8].
Mais tarde, quando o Esperanto já se encontrava na forma como o conhecemos presentemente, no primeiro congresso universal de Esperanto de dezembro de 1905 na França com participantes de vinte países, Zamenhof fez um discurso bastante emocionado em que declarou:
...Pela primeira vez na história da humanidade, nós, cidadãos das mais diversas nações, permanecemos lado a lado, não como estrangeiros, nem competidores, mas como irmãos que, compreendendo-se mutuamente sem forçar nosso próprio idioma entre nós, não nos consideramos com suspeição porque a ignorância não nos divide, mas nos amamos uns aos outros; e apertamos nossas mãos, não com a insinceridade de um estrangeiro para com outro, mas de forma sincera, de um humano para com outro humano. Que não haja dúvida sobre a importância deste dia, pois hoje, dentro das fronteiras hospitaleiras de Boulogne-sur-mer, não testemunhamos o encontro de franceses com ingleses, de russos com poloneses, mas de seres humanos com outros seres humanos. Louvado seja este dia, assim como grandes e gloriosos sejam os dias que virão! [1, p. 24]

O caminho futuro do projeto de Zamenhof e sua língua haveria, porém, de colher muitos dissabores. As tensões começaram desde o início, quando Zamenhof pretendeu dar esse “aspecto espiritual” ao Esperanto, o que foi imediatamente interpretado como suspeito por causa de sua origem judaica. De fato, o idioma artificial era apenas uma parte de um projeto maior de Zamenhof para os povos, o que incluía uma nova religião: o Hilelismo. Tendo vivido em um lugar de conflitos raciais constantes, Zamenhof abominava toda e qualquer forma de discriminação, inclusive a de origem religiosa. O Hilelismo se baseava nos seguintes princípios:
  1. Sentimos e acreditamos na existência de uma “força superior” que governa o mundo e que chamamos “Deus”;
  2. Deus escreveu sua lei no coração de cada pessoa, por meio da sua consciência;
  3. A essência de todas as leis dadas por Deus é expressa pela regra áurea: Amar ao seu próximo e fazer aos outros o que gostaria que fosse feito a si mesmo; nunca se envolver com atos que sua voz interna diga estar em desacordo com os desejos de Deus.
  4. Quaisquer outros ensinos que se ouçam de professores ou guias religiosos e que não estejam de acordo com esses três princípios anteriores são construções meramente humanas que podem estar certas ou erradas.
      Zamenhof raciocinava que seria necessário reformar o Judaísmo pelo Hilelismo de forma a abrir aquele para todas as etnias, tal como já se abriram as grandes religiões, o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo. 

      Desnecessário dizer que essa motivação religiosa à linguagem se tornou um estorvo: para ateus ela era muito religiosa, para religiosos não-judeus, era muito judaica e, para judeus, constituía uma negação do Judaísmo. Por isso, Zamenhof mudou seu nome para Homaranismo que poderíamos traduzir como “Humani-ismo”, um credo que teria a pessoa humana como elemento central. Os “Homaranistas” seriam membros da “raça humana”, despidos de qualquer diferença étnica, cultural ou religiosa. 

      Colocado dessa forma, é possível entender as palavras de Emmanuel que citamos acima. Movido por um ideal claramente superior, Zamenhof não conseguiu fazer do Homaranismo a religião praticada pelos esperantistas. Entretanto, seu idioma iria se tornar a língua artificial mais querida e aprendida no mundo, em parte por um esforço incansável de seus seguidores igualmente movidos pelo mesmo ideal. 

      Uma língua para um novo contexto internacional?

      O Esperanto foi o único idioma artificial que "pegou" de fato. Porém, na atualidade, as intenções de Zamenhof continuam a aquecer debates, principalmente se mal colocadas por pessoas preconceituosas ou incapazes de entender seus motivos superiores. É fácil misturar esses objetivos com movimentos políticos. 

      Historicamente, porém, foram registradas perseguições a esperantistas em países com os mais variados credos políticos [4]. A existência de pessoas que falam uma língua desconhecida em uma comunidade é terreno fértil para incontáveis teorias de conspiração. E Zamenhof, assim como muitos esperantistas, foram acusados de conspiração.

      Além disso, toda ideia original se torna corrompida quando sofre com supostos adeptos que pretendem torná-la exclusiva e que são incapazes de entender a pureza dos objetivos originais. Frequentemente, esses adeptos mal intencionados se tornam maioria e desviam o movimento completamente. Nesse sentido, a revelação do Esperanto também foi corrompida por atos e condutas divisionistas dentro do movimento original, como resultado da inferioridade do espírito humano. Até aqui, nada de novo.

      Importa, hoje em dia, que nos concentremos nas vantagens que o aprendizado do Esperanto pode ter, porque as “coisas práticas” podem ser decisivas para o sucesso futuro de uma proposta de língua universal efetiva. Alguns pontos recentemente observados na literatura, estão resumidos abaixo:

      • O ensino do Esperanto tem sido descrito na literatura como promotor do aprendizado multilinguístico [4c, 4d]. Ele é, portanto, uma excelente ferramenta de aprendizado de línguas;
      • Soa suspeito dizer que o “Inglês é fácil” depois de se ter investido décadas no seu aprendizado, de se ter consumido milhares de horas ouvindo músicas, filmes e discursos nessa língua. É preciso fazer realmente as contas de quanto países investem de recursos próprios [4a] no aprendizado do Inglês como uma contabilidade necessária de planejamento futuro. Além disso, as distancias linguística entre o Inglês para os idiomas não anglo-saxões tornam seu aprendizado, de fato, difícil.
      • A acusação de “falta de neutralidade” do Esperanto é consequência da opção de ação política de alguns grupos esperantistas, porém, nenhuma língua humana estará isenta da mesma acusação, que também pode se estender a presente língua franca, o Inglês. A recente saída do Reino Unido da Comunidade Europeia reaviva debates sobre o uso do Esperanto como língua dessa comunidade [4a].
      • O uso do Esperanto obedece a um princípio de “justiça linguística” [4b] pela não imposição de uma cultura associada a uma língua. Sua “falta de contexto” – como colocam os críticos – é justamente sua maior vantagem [2b]. Por outro lado, seu contexto é a fraternidade universal que tem com base a justiça, primeiramente a linguística.
      • Considerando tudo isso, também não é verdade que o Esperanto seja uma “língua fácil”. É um idioma com regras simples, mas isso não se traduz em facilidade imediata de aprendizado como muitos esperantistas afirmam. Como ferramenta de comunicação, sua eficiência já está provada. Como mecanismo de propagação da fraternidade universal, até agora, o Esperanto também demonstrou sua relevância [2b].

      Em tese o Esperanto poderia ser usado para promover relações internacionais em um cenário em que uma língua nacional perdesse sua importância por questões econômicas. A imagem mostra o Décimo Congresso Nacional de Esperanto, realizado na Província de Shandong, na China. Para saber mais sobre a curiosa trajetória e interesse dos Chineses pelo Esperanto, consulte [6].

      Conclusão

      Que uma língua só ajuda na administração de um vasto território não há dúvida: basta ver a praticidade de se usar o Português por 200 milhões de habitantes em um gigantesco país como o Brasil, ou o inglês nos Estados Unidos com idêntico território. Não se contesta o benefício de uma língua comum disseminada entre os povos. 

      Porém, preconceitos e hostilidades não desaparecem entre as pessoas pelo fato de adotarem uma língua única. Essas barreiras, entretanto, são reduzidas entre povos se eles passam a se compreender. Um idioma universal é, portanto, um primeiro passo para a concretização da fraternidade universal que exigirá nada menos que a reforma do coração humano. Contribui para essa reforma, antes de tudo, a educação.

      Nesse sentido, é importante considerar que o Esperanto não tem como objetivo substituir qualquer língua. Ele sempre será uma língua auxiliar. Passado tanto tempo do uso do inglês – que cumpre, por enquanto, o papel de língua franca e os objetivos previstos por Zamenhof – a proposta do Esperanto se apresenta num contexto de “justiça linguística” e de ameaças de perda do eixo econômico do mundo, o que enfraqueceria o Inglês (como aconteceu no passado com outros idiomas internacionais). 

      Isso resgata a necessidade de se planejar globalmente o ensino de idiomas, ou seja, é uma atividade a ser feita com base na cooperação entre os povos, o uso de um só idioma. Por outro lado, todos os outros idiomas usados internacionalmente se impuseram com base em poderio econômico ou influência política. 

      De qualquer forma, o Esperanto somente vingará em um ambiente onde a educação seja valorizada. Ou seja, desde que se prevejam todos os recursos típicos de educação de qualidade, onde seja possível estudar um idioma como complemento de sua familia lingvo (língua familiar, como diria Zamenhof), e onde haja boa vontade e prazer em estudar. Nesse sentido a combinação “Esperanto-internet” com todos os recursos de comunicação em plataformas rápidas ainda devem demonstrar seus efeitos. O Duolingo é um exemplo recente do poder da tecnologia no aprendizado de idiomas e poderá popularizar o Esperanto como nunca visto antes. 

      Restará, porém, tornar evidente a mensagem de fraternidade universal imaginada pelo seu criador, que contribuiu para que o sonho do Esperanto como língua universal não se extinguisse. Em um mundo em transição como a Terra, temos certeza que a mensagem de fraternidade imprimida por Zamenhof ao Esperanto se faz completamente necessária e disputará sua importância bem acima de qualquer outra motivação de ordem política ou econômica.

      Referências

      [1] A. Korzhenkov (2009) Zamenhof: the life, works, and ideas of the author of Esperanto. Mondial; Abridged Edition (4 maio 2010).

      [1b] Citado em [1], p. 50.

      [1c] Zamenhof L.-L. Mi estas homo / Komp., koment. A. Korĵenkov. Kaliningrado: Sezonoj, 2006.

      [2] R. Nielsen (2020). Kie estas la Duolinganoj?   https://www.liberafolio.org/2020/03/31/kie-estas-la-duolinganoj/

      [2b] P. Murphy. A Language for Idealists. Princenton Alumni Weekly. Janeiro de 2017.

      [3] “A missão do Esperanto. Mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier na cidade de Pedro Leopoldo (MG), em 19 de janeiro de 1940. Disponível em: https://www.febnet.org.br/blog/geral/estudos/a-missao-do-esperanto/

      [4] Lins, U., & Tonkin, H. (2016). Dangerous language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan.

      [4a] Utri, R., & Warszawski, U. Could Esperanto be the Common Language in TheEuropean Union? Researchgate.net

      [4b] Brosch, C., & Fiedler, S. (2018). Esperanto and Linguistic Justice: An EmpiricalResponse to Sceptics. In Language Policy and Linguistic Justice (pp. 499-536). Springer, Cham.

      [4c] Roehr-Brackin, K., & Tellier, A. (2018). Esperanto as a tool in classroom foreign language learning in England. Language Problems and Language Planning, 42(1), 89-111.

      [4d] Tellier, A. (2012). Esperanto as a starter language for child second-language learners in the primary school. Esperanto UK.

      [5] "China deve se tornar a maior economia do mundo em 2028, diz centro de estudos britânico". Jornal "O Estado de São Paulo". Notícia de 26 de dezembro de 2020.

      [6] Chan, G. (1986). China and the Esperanto movement. The Australian Journal of Chinese Affairs, (15), 1-18.