4 de maio de 2016

Conceitos básicos de Física Quântica VIII

Imagem de uma chama de um fósforo. 
Esse fenômeno extremamente vulgar e macroscópico 
tem sua explicação na Física Quântica.
É comum ouvir relatos de que a física quântica (FQ) foi feita para explicar fenômenos microscópicos e está cercada de mistérios.  Por exemplo, Hélio Schwartsman publicou recentemente (1):
Quando alguém apela a efeitos quânticos para explicar qualquer fenômeno em escala um pouco maior do que a de partículas subatômicas, são grandes as chances de que estejamos diante de um picareta "new age".
Isso é, entretanto, uma afirmação equivocada.

É verdade que existem ainda questões relacionadas a interpretações mais profundas dos fundamentos da FQ. É também verdade, conforme discutimos em posts anteriores (2), que existem fenômenos quânticos que não possuem equivalentes em nosso mundo "clássico". Talvez o formalismo quântico não ajude muito a tirar esse impressão porque as relações entre grandezas na FQ exigem tratamento em espaços matemáticos diferentes daqueles da chamada "Física Clássica". Porém, no nosso entendimento, o problema é pouco motivado por esses mistérios, mas sim por uma visão de mundo simplificada, em que tudo o que é "observável" (3) é considerado "ordinário" e o que não é "misterioso". 

O macroscópico é ordinário, o microscópio é misterioso

Em suma: tudo aquilo que consigo ver, tocar, cheirar etc, e que está sob a classificação de "fenômeno macroscópico", é considerado da alçada das explicações comuns. Isso está bastante difundido em textos populares que tentam explicar física quântica, inclusive na avaliação de Hélio Schwartzman. O que não é visível ou detectável não existe, é mistério ou é assunto para mentes privilegiadas. De acordo com esse raciocínio, a FQ seria aplicada apenas ao que não se vê, como é o caso de átomos ou partículas subatômicas, pequenas demais para serem detectadas pelos sentidos humanos.

Mas, na verdade, isso esconde dificuldades ainda maiores no processo de explicação na ciência. A base da explicação em qualquer ciência não necessariamente envolve aquilo que se vê, porque devemos separar as causas das consequências. Assim, em muitos fenômenos ordinários os efeitos são visíveis, mas as causas não são. Do contrário, crê-se que, para que haja explicação, as causas devem estar igualmente acessíveis, o que raramente é o caso. Exemplos não faltam:
  • Em genética: os efeitos das anomalias, doenças e outras disconformidades observadas facilmente por exame de seres orgânicos está, muitas vezes, nos genes, que são causas inacessíveis diretamente;
  • Em física: a temperatura dos corpos (que podemos sentir por toque) está relacionada à velocidade de partículas minúsculas que compõem o material que são causas inacessíveis diretamente;
  • Na medicina: a temperatura e os sintomas dos pacientes acometidos por uma doença podem ser causados pela influência de minúsculos organismos (bactérias ou vírus) que são inacessíveis diretamente (3b);
  • Em geologia: a explosão de lava observada em vulcões se deve à movimentação oculta de magma nas profundezas da terra, que são inobserváveis. 
É quase que uma regra geral na ciência que causas sejam sempre ocultas, não diretamente observáveis ou apenas inferidas indiretamente por meio de outras medidas, frequentemente envolvendo complexas teorias e relações causais. Isso também é verdade para a FQ.

Já discutimos aqui e em outros trabalhos os diversos níveis de explicação que os fenômenos estão sujeitos. Explicações ordinárias frequentemente envolvem causas simples. Assim, se ocorre um problema no meu carro e acho que pode ser por "superaquecimento da água no radiador", a causa aventada é um evento observável (água aquecida). Em ciência, a maior parte das explicações não são desse tipo. Elas envolvem descer até outras causas, ainda mais fundamentais, que devem ser inferidas indiretamente (3).

A Física Quântica e o problema da consciência.

Como a manifestação da consciência é considerada uma coisa "misteriosa", então somente a FQ, um mistério igual, talvez forneça alguma explicação para a mente. Essa é a linha de raciocínio seguida por uma imensa literatura - frequentemente bastante entusiasta (4) - que busca aplicar conceitos, noções e resultados da FQ em problemas da mente. É uma linha aparentemente natural de inquérito, já que a FQ é uma teoria extremamente bem sucedida (paradigma científico), que fornece explicações para uma ampla classe de fenômenos materiais. Não seria natural que ela também explicasse a mente?

Uma lista de fenômenos macroscópicos (ver abaixo) com causas quânticas (ou seja, explicados pela FQ) pode ser levantada como uma excelente motivação para a crença da generalidade da FQ em contraposição ao que clama o autor da referência (1). Assim, não duvidamos que exista um fundamento microscópio para a movimentação de matéria no cérebro associada aos fenômenos da consciência. Acreditamos ser até mesmo trivialmente verdade que a FQ tenha um papel importante a desempenhar no sistema nervoso, ainda que muitos neurocientistas, por falta de conhecimento no assunto, continuem a propor explicações que dispensem a FQ. Mas, com o desenvolvimento normal da ciência, acreditamos que FQ eventualmente fará parte do currículo de cursos de biologia (5), uma vez que seus fundamentos subsidiam a compreensão de inúmeros fenômenos físicos ordinários.

Porém, isso é bastante diferente de se afirmar que a FQ irá solucionar o problema da consciência. Aqui há dois pontos de vista que vale a pena detalhar:
  1. A noção de que a FQ é importante, que tem uma lógica diferente da ordinária, que não está naturalmente integrada ao senso comum e que não dispõe ainda de uma interpretação absolutamente consensual sobre seus princípios pode despertar nos neurocientistas a ideia de que a consciência necessite de outra abordagem, de um tratamento especial, que não se beneficie tanto de paralelos "clássicos" ou que novas técnicas de medida sejam necessárias para a exploração dos fenômenos da consciência;
  2. A assunção direta de que a FQ seja responsável pela consciência, atropela o debate sobre as diferenças marcantes entre aspectos da matéria e aqueles associadas à "coisa pensante", resultando em uma extrapolação sem bases suficientes em nosso conhecimento presente.   
Um materialismo travestido

A afirmação de que a FQ é responsável pela consciência é uma forma de materialismo que não é considerada de forma correta por espiritualistas que defendem explicações quânticas da consciência como uma maneira de se libertar do materialismo.

De fato, ao se propor que a mente é quântica não se pode deixar de atribuir aos átomos - que têm reconhecidamente natureza quântica - a causa última de sua manifestação. De outra forma, a física quântica apenas introduz uma lógica diferente, onde a incerteza é incorporada nas relações entre seus elementos (função de onda) que se reduzem, quando analisados de forma isolada, a entidades sem nenhum dos atributos reconhecidos publicamente como característicos da mente. Em suma:  o uso puro e simples da FQ no tratamento aparente do problema de consciência, em que pese o formalismo extravagante que introduz, pouco ou nada contribuirá fundamentalmente para o problema da consciência, a menos que se considere essa uma entidade separada do cérebro por princípio, conforme descrevem algumas interpretações quânticas do famoso "problema da medida".

Assim, embora seja bastante comum que espiritualistas defendam abertamente a FQ e sua relação com a mente, não se pode deixar de notar os grandes obstáculos à implementação prática dessa relação e até mesmo as consequências negativas para o desenvolvimento do dualismo. E, retornando ao assunto inicial desse post, propostas de teorias sobre o problema da mente ou da consciência de novo terão que enfrentar um fenômeno cuja causa não é observável, embora os efeitos o sejam. Mas, continuarão céticos a negar a existência do problema ?

Lista de fenômenos ordinários que são explicados pela Física Quântica

A lista abaixo é uma pequena compilação que está longe de ser completa. Explicar como cada um desses fenômenos ocorre obviamente não caberia no espaço deste blog. O leitor deve entender que as causas desses fenômenos caem na classificação de entidades não observáveis. A FQ explica como essas entidades se relacionam (como elas interagem) e criam as impressões que são, por sua vez, observáveis. Assim, por exemplo, a relação entre a temperatura e a cor de uma estrela (que são observáveis) está ligada à estrutura de distribuição de energia das partículas ou átomos que geram a luz. Para uma referência adicional a essa fenomenologia ver (6). 

Astrofísica
  1. Propriedades de estrelas de nêutrons e anãs-brancas;
  2. O funcionamento das estrelas (cor, brilho, dimensão, evolução e idade etc);
Fenômenos luminosos
  1. Cor dos objetos;
  2. Emissão de luz das chamas;
  3. Mudança de cor de reagentes em reações químicas;
  4. Transparência de materiais;
  5. A curva de luz do corpo negro;
Eletricidade e magnetismo
  1. O comportamento de condutores elétricos, isolantes, semicondutores;
  2. O transistor;
Fenômenos térmicos e fluídicos
  1. A supercondutividade elétrica de materiais a baixas temperaturas;
  2. A superfluidez de materiais a baixas temperaturas;
Química
  1. A razão da matéria ordinária (atômica) ser estável;
  2. A estrutura da tabela periódica;
  3. As ligações químicas;
Energia
  1. Tempo de vida de substâncias radioativas;
  2. Reações nucleares;
  3. Usinas atômicas;
Biologia
  1. A eficiência energética da foto síntese (5)
Referências e notas

Agradeço ao Alexandre Caroli pela referência e citação de (1).

1)  H. Schwartsmann. "Mente quântica". Acesso em Fevereiro de 21016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/02/1737578-mente-quantica.shtml


3) As inferências envolvem, inclusive, a busca por fenômenos diversos que comprovariam o efeito das causas admitidas;

3b) É verdade que foram desenvolvidos mecanismos ou equipamentos que permitem observar o que não pode ser acessado diretamente pelos sentidos. Mas, aqui, o leitor deve atentar para a arapuca lógica que dispensa a noção de que o funcionamento desses equipamentos exigem a crença em muitas explicações ou teorias. Portanto, esse estado aumentado de observação, embora utilize os sentidos, não dispensa a crença, o que torna inviável a fundamentação de nosso conhecimento exclusivamente nos sentidos humanos.

4) O próprio Helio Schwartsman cita o texto de Wendt, A. (2015), Quantum mind and social science, Cambridge University Press, como "uma obra séria que trata de ontologia sem recorrer a deuses". Outras referências são:
  • Mindell, A. (2012). Quantum mind: The edge between physics and psychology. Deep Democracy Exchange.
  • Lockwood, M. (1989). Mind, brain and the quantum: The compound'I.'. Basil Blackwell.
  • Penrose, R. (1994). Shadows of the Mind (Vol. 4). Oxford: Oxford University Press.
  • Stapp, H. P. (2004). Mind, matter, and quantum mechanics (pp. 81-118). Springer Berlin Heidelberg.
  • Clayton, P. (2004). Mind and emergence: From quantum to consciousness.
  • Stapp, H. P. (2001). Quantum theory and the role of mind in nature. Foundations of Physics, 31(10), 1465-1499.
  • Goswami, A. (1990). Consciousness in quantum physics and the mind-body problem. Journal of Mind and Behavior.
  • Woolf, N. J., & Hameroff, S. R. (2001). A quantum approach to visual consciousness. Trends in cognitive sciences, 5(11), 472-478.
  • Bass, L. (1975). A quantum mechanical mind-body interaction. Foundations of Physics, 5(1), 159-172.
A principal revista que explora essa abordagem é a Neuroquantology (acesso em fevereiro de 2016). 

5) Quantum mechanics explains efficiency of photosynthesis. Ver http://phys.org/news/2014-01-quantum-mechanics-efficiency-photosynthesis.html (acesso em março de 2016)

6) R. Healey. How Quantum Theory Helps us Explain. Disponível em: http://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1110/1110.6554.pdf. Acesso em Fevereiro de 2016.

2 de abril de 2016

Ruprecht Schulz: estranho caso de uma suposta "reencarnação"

Seria isto um porco voador?
Pesquisas em reencarnação são ainda consideradas "temas tabus" entre as linhas acadêmicas, justamente por implicarem em algo que não está de acordo com o consenso geral sobre o ser humano e sua existência no mundo, uma criatura que fatalmente morre e aparentemente desaparece. As diversas áreas da ciência não preveem nenhum objeto de estudo onde se possa incorporar o assunto "reencarnação", logo a imensa maioria dos acadêmicos torce o nariz para algo que identificam como não "científico" e que lhes parece uma ideia excêntrica.

Não se admira assim que relatos e evidências de reencarnação caiam na categoria de "anomalias". Mas, não é uma tarefa simples separar o "joio do trigo" em se tratando de qualquer anomalia, o que se aplica obviamente à reencarnação.  Há casos descritos como anomalias que são prejudiciais a própria tese, por se apresentarem como "anomalias dentro de anomalias". Naturalmente, essas ocorrência animam céticos que rapidamente "throw the baby out with the bathwater" (1) e invalidam toda a tese com base em alguns casos mais que suspeitos.

Evidências sobre reencarnação como anomalia têm origem em duas fontes principais: i) informes de crianças que se lembram de vidas anteriores e ii) relatos de memórias via regressão hipnótica. Se o primeiro caso é considerado bastante forte pelo caráter "acima de qualquer suspeita" dos relatos infantis, o mesmo não se pode dizer do segundo, onde a total inexistência de uma "teoria da mente" dificulta separar lembranças de sonhos de eventuais memórias anteriores, inviabilizando a aceitação das descrições. Além disso, ocasionalmente, existem relatos excepcionais de adultos que dizem se recordar de vidas anteriores mesmo em estado de vigília, isto é, sem nenhum apelo ao hipnotismo ou sonhos.

Tudo isso indica que é preciso redobrado cuidado por parte daqueles que pretendem "provar" a tese da reencarnação - ou extrair regras para seu mecanismo - com base na busca exaustiva e empilhamento sistemático de casos. Em particular, salta aos olhos a necessidade de se estabelecer métodos de pesquisa apropriados, de examinar se os dados obtidos são confiáveis e sobre a consistência metodológica aplicada à pesquisa. Mais ainda, partindo-se de uma contexto ateórico (ou seja, sem a orientação de uma teoria), é provável que evidências sejam mal interpretadas, uma vez que já se mostrou há muito que uma evidência é contaminada pela visão que se tem de seu contexto (2).

O cenário é bastante complicado porque, como dissemos, inexiste uma "teoria da mente" que permita estabelecer claramente as origens e as consequências para eventos mentais com base em evidências colhidas de memórias de longo prazo sequer dentro de uma existência, quem dirá entre existências.

O caso Ruprecht Schulz (RS)

Os pesquisadores de reencarnação mais conhecidos na atualidade são I. Stevenson (1918-2007) e Jim Tucker (ver nosso post sobre ele aqui). Entre as inúmeras evidências estudadas por Stevenson, o livro "Casos Europeus" (3) descreve ocorrências tiradas de relatos não orientais, numa tentativa por Stevenson de mostrar que a reencarnação é um fenômeno "universal" (4).

Em particular, nessa obra existe um caso que exorbita dos relatos quase uniformes de crianças que se lembram de vidas anteriores. Trata-se do "caso Ruprecht Schulz" (ver também 5) que está longamente descrito no livro. Aqui apresentamos um resumo por simplicidade e destacamos os prontos problemáticos do caso.
Ruprecht Schulz, nascido em Berlim, a 19/10/1887, comerciante, declarou a I. Stevenson, em entrevista feita em agosto de 1960, ter tido memórias (ver abaixo) de uma vida pregressa por volta do início da década de 1940 (início da II Guerra Mundial). Nessa descrição, via-se como um rico comerciante, ligado a atividades portuárias, que cometeu suicídio. A força dessas lembranças fez RS escrever a diversas cidades portuárias da Alemanha, a partir de julho de 1952. Uma resposta veio da cidade de Wilhelmshaven afirmando ter sido palco do suicídio de um tal Helmut Kohler (HK), corretor marítimo, em 23/11/1887. Segundo informações colidas por RS com parentes de HK, este teria se suicidado depois de se ver em condições econômicas difíceis e de ter sido roubado por um funcionário mais próximo que fugiu para os Estados Unidos. 
As informações tabuladas por Stevenson nas páginas 272-274 de (3) são parte de um relatório construído parcialmente com as informações que RS conseguiu de Wilhelmshaven, quando ele já estava com mais de 50 anos de idade. O que chama a atenção no caso RS é a inconsistência entre a data do suicídio de HK e o nascimento de RS, indicando uma aparente violação da relação "causa efeito" - a personalidade anterior ainda estava encarnada quando seu novo corpo já vivia em outro lugar.

Natureza peculiar das "memórias" de RS.

Longe do problema das datas, o que mais me chamou a atenção no caso RS é o caráter muito especial de suas memórias. O que se espera de alguém que se lembre de sua vida passada? Que suas memórias - se se referem realmente a algo experimentado - acompanhem o sujeito e não dependam de onde ele se encontra. Mas isso não aconteceu com RS.

Antes, porém, consideremos como RS descreve suas "memórias". Na p. 266, no final de sua descrição de como teria se vestido e se matado ele afirma:
"Podem chamar essas imagens de clarividência, mas para mim elas são lembranças". (grifos nossos)
RS parece confundir lembranças com visão de imagens pois, no meio da descrição declara:
"O sentimento foi ficando mais forte e então - não em um transe ou estado de sono - como algo quase visível aos olhos, pude me observar como eu naquela época." (grifos meus)
Tomando com base que ele não tenha inventado nada, sua descrição aparentemente em terceira pessoa não deixa dúvidas que ele teve uma "visão". E mais ainda, essa visão apenas ocorria se ele estivesse em contato com determinado ambiente. Conforme atestam as anotações de I. Stevenson sobre as memórias de RS, em 2 de maio de 1964 (p. 266 e 267):
"Ele nunca as tinha a não ser quando estava no escritório durante o seu turno aos domingos. Estava completamente acordado nessas vezes. Ele experimentou novamente as emoções da situação lembrada e viu as lembranças como uma imagem interior, não como uma visão projetada." (Grifos meus)
Depois enfatizar que RS não estaria em um estado "alterado" de consciência, Stevenson parece ter "reinterpretado" a descrição ao anotar que o sujeito "via lembranças como uma imagem interior" (admitindo nenhum erro de tradução em relação ao original). Esse ponto é de fundamental importância, pois fica clara aqui o papel das ideias preconcebidas do pesquisador. Por que é importante afirmar que RS teve as "lembranças" em estado de vigília? A razão é simples: Stevenson (e provavelmente RS) acreditava que lembranças comuns só podem ocorrer se o sujeito não estiver em "estado alterado de consciência" (leia-se, "mediunidade" ou "hipnotismo").

Mas seria esse o caso? O Espiritismo abre um leque grande de possibilidades. Primeiro porque não se pode afirmar absolutamente o caráter "normal" da consciência de RS uma vez excitada por certos detalhes do ambiente.  Ao contrário, o fato do "fenômeno" apenas ocorrer quando em contato com certo objetos, cria fortemente a impressão de mudança desse estado. Depois porque acessar as lembranças como algo "quase visível aos olhos" permite inúmeras interpretações dentro da fenomenologia mediúnica. Finalmente, a exigência de "estado alterado" não é condição sequer necessária para a mediunidade ou "obtenção de informação anômala". Em "O Livro dos Médiuns", II Parte, Capítulo 15, Parágrafo 182, "Médiuns inspirados", podemos ler:
Todo aquele que, tanto no estado normal, como no de êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações estranhas às suas idéias preconcebidas, pode ser incluído na categoria dos médiuns inspirados. Estes, como se vê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva, com a diferença de que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao inspirado, ainda é mais difícil distinguir o pensamento próprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é o que, sobretudo, caracteriza o pensamento deste último gênero. (grifos nossos)
São registradas descrições de "sensitivos", com variados graus de faculdade, que podem "ver imagens" ao contato com objetos, inclusive tendo sensações relacionadas aos envolvidos na "cena" (o que implica em algum grau de "psicometria"). Contra isso seria possível antepor o argumento de que RS não era médium ou não teria manifestado nenhum tipo de mediunidade em sua vida (o que também é avançado por Stevenson). Mas isso se fundamenta exclusivamente na palavra do sujeito como o próprio Stevenson reconhece (ver abaixo). Ou de outra forma, é possível que RS tivesse tido outras experiências "anômalas" em sua vida, mas deixou-se influenciar por aquela que mais lhe atraiu dentro de sua crença em reencarnação.

De qualquer forma, estamos diante de um problema metodológico que depende da existência de outra teoria sobre memórias e visões. Stevenson desprezou certos detalhes que a ele não pareciam relevantes, mas que, na verdade, são cruciais para determina a "origem" das informações.

Inconsistências em algumas afirmações

Parece que Stevenson deixou de considerar a consistência entre os relatos dispersos como declarados por RS. Por exemplo, na p. 265 de (3, edição em Português), podemos ler a declaração dada por RS a Stevenson em 1960:
"As memórias começaram a surgir para mim na época dos ataques de bombardeios em Berlim durante a guerra."
De acordo com Stevenson, RS cita a data de 1942, quando ele estaria com mais de 50 anos. Porém, na p. 268 da mesma referência, há a citação de uma carta de RS ao filho de Kohler (datada de 1952), dizendo que suas lembranças começaram na infância, "desde muito novo". Qual das versões corresponde ao que teria acontecido?

Com relação às memórias alegadamente atribuídas à infância, elas podem ter sido criadas à posteriori, depois que RS se convenceu que era mesmo a reencarnação de HK. Por exemplo, sobre a cidade de sua alegada desencarnação, RS afirma na carta "me pareceu mais tarde e mais claramente, que essa cidade era Wilhelmshaven" (ainda na p. 268). Só que, segundo Stevenson (conforme está na p. 263), ele apenas tivera a impressão de que sua suposta vida anterior teria sido em "uma pequena cidade portuária", tendo escrito para várias cidades (existiam poucas "pequenas cidades portuárias" na Alemanha no final do Século XIX, e teria sido óbvio incluir Wilhelmshaven). De qualquer forma, o caso RS, no quesito "memória", é muito diferente se comparado a outros estudados por Stevenson.
Wilhelmshaven, cidade da suposta vida anterior de RS. Nela, RS afirmou ter "reconhecido" prédios (de sua vida no Séc. XIX), mesmo tendo sido destruída na II Guerra Mundial. 
Outra afirmações de RS aceitas sem contestação por Stevenson é o "reconhecimento" de prédios em Wilhemlshaven:
Em outubro de 1956, Ruprecht e Emma Schulz foram até Wilhelmshaven, onde se encontraram com Ludwig Kohler. A cidade tinha sido muito danificada pelos bombardeios durante a então recente guerra. Ruprect acreditou reconhecer a Prefeitura e um antigo arco. 
Sem que se garanta que as construções "reconhecidas" por RS tenham sido reconstruídas, é difícil acreditar que isso pudesse acontecer com um cenário que foi destruído com a guerra. Com relação ao seu comportamento "ex suicida" de infância, o caso se contamina pela ausência de "comprovações" (como Stevenson tipicamente insiste em outros casos) por parte de terceiros já que, segundo o pesquisador (p. 277):
"Ruprecht permanece quase que totalmente o único informante das declarações antes de elas serem confirmadas" (grifos nossos).   
O problema da quebra da relação "causa-efeito"

No nosso entendimento, o problema teórico mais grave levantado pelo caso RS é a aparente quebra de causalidade no relaxamento da relação entre Espírito e seu corpo por uma questão de problema de data. Vê-se que essas extrapolações levam a imaginar que um Espírito possa reencarnar nos moldes de uma "possessão", depois que seu outro corpo já esteja formado e vivo.  Existem três caminhos ilógicos possíveis :
  1. Aceitar isso como uma possibilidade "de fato", o que implica em acreditar em que até o momento da "possessão", o corpo existente tenha vida meramente material ou;
  2. Imaginar algum cenário mais exótico (e, por isso, esdrúxulo) de "quebra de causalidade" (tipo "viagem no tempo"). Incluo essa consideração aqui, pois acho difícil que alguém não tente "salvar as aparências" com explicações desse tipo.
  3. "Divisão do Espírito" (conforme se acredita na ref. 5). Durante as cinco semanas que separam o nascimento de RS e a desencarnação de HK, o Espírito de HK estaria ao mesmo tempo reencarnado em dois corpos (!)
Então, o preço a se pagar por aceitar o caso RS como reencarnação é relaxar a coerência e lógica da ideia das vidas sucessivas, com prejuízo grande para toda a tese e reforço considerável das explicações céticas. Seria realmente esse o caso?

Nossas conclusões
  1. Tão só com base nos relatos levantados por I. Stevenson, não é possível afirmar a identificação de HK como a reencarnação anterior de RS;
  2. Isso é, de fato, manifestado por Stevenson, que classifica seus casos como "sugestivos", dentro de sua prudência acadêmica;
  3. Ao contrário, a impressão que temos é de 'algo faltando' no caso, possivelmente associado às alegadas "memórias" de RS que mais se parecem com "visões";
  4. O maior problema do caso RS é a caracterização de suas "memórias". Por dependerem de um "lugar" e "horário", é provável que estejam associadas à informação externa que lhe foi passada por outro agente "psíquico";
  5. É provável que o caso RS tenha sido interpretado forçadamente por Stevenson como de reencarnação. Stevenson chega a falar em um dos mais "fortes" que investigou, a despeito da marcante diferença na maneira como as "evidências" foram obtidas, na inconsistência nas datas e do tipo de relato feito por RS; 
  6. Por que Stevenson teria feito isso? Aventamos a hipótese de que ele não quisesse descartar - segundo sua abordagem - casos europeus, que se mostraram escassos frente aos orientais. A busca por tais casos era uma questão "de honra" para Stevenson, que enfrentou heroicamente ataques do ceticismo. Ou, de outra forma, é provável que, no contexto oriental, algo parecido ao caso RS tivesse sido facilmente descartado por Stevenson;
  7. A data de nascimento do suposto reencarnante é anterior à desencarnação da personalidade pregressa. Isso constitui uma contradição à lei de causa e efeito e cria uma anomalia dentro de outra que é facilmente explorada (com razão) por céticos;
  8. Por uma questão de consistência com todos os outros casos e como resultado lógico da "conservação" da personalidade em outro corpo, não faz sentido sustentar uma "hipótese ad-hoc" (6) que permita ao Espírito desencarnar tempo depois que seu "corpo físico" esteja vivo ou coisa ainda mais fantástica. Stevenson não se preocupou muito com essas consequências e isso faz eco com outras críticas (céticas) às conclusões de Stevenson;
  9.  A "força" desse caso é maior para crentes que colocam fatos mal interpretados acima da importância da teoria e sua consistência interna;
  10. A suposto reencarnante não teve sequelas do suicídio: indiretamente isso cria um problema na aceitação do método de Stevenson porque ele mesmo descreve casos em que mínimas marcas de nascença seriam provocadas por agressões físicas no corpo do indivíduo no instante da morte. Stevenson considera a existência dessas marcas importantes sinais de validação de seu método. Se uma agressão compulsória pode deixar uma marca, como é possível um caso em que o suposto reencarnante tenha se matado com um tiro na cabeça e não tenha nenhuma marca, mas apenas lembranças que se parecem com "visões"? 
  11. Uma vez aceito o caso RS, resta evidente questionar todos os outros em que marcas de nascença são observadas, já que, se inexiste relação "causa-efeito" em apenas um caso, fica fácil desqualificar essa necessidade nos outros;
  12. Outras causas podem ter sido responsáveis pelas "visões" alegadas por RS e associadas a suas lembranças posteriormente.  Com a confirmação dessas visões, RS conseguiu levantar uma personalidade equivalente em sua busca obsessiva (quiça impulsionada por essas causas), que deu origem a todas as outras "evidências" que Stevenson ressalta a apoiar o caso;
  13. O caso RS ressalta a importância de uma teoria que integre tanto informações de fatos históricos associados a existências anteriores como memórias em diversos estados da consciência. A pesquisa da reencarnação não terá êxito se desacompanhada de considerações sobre a fenomenologia psíquica, que representa outra fonte para a aquisição "anômala" de informação.
Referências

(1)  "Jogam o bebê fora junto com a água do banho".

(2) Fácil entender isso. Para um cético, alguém que afirme ter uma vida anterior será interpretado como doente mental, seus sonhos como criações da fantasia etc. Como se vê neste post, a interpretação de qualquer relato como "prova" de vida anterior não considera a possibilidade da informação anômala ter sido obtida por outras vias psíquicas, que não a da memória propriamente dita. Isso só é possível se se dispuser de uma teoria abrangente, que permita separar os fatos em categorias que devem ser, elas próprias, previstas na teoria.

(3) Stevenson, I. (2003). European cases of the reincarnation type. McFarland. No Brasil, há uma edição traduzida desse livro com o título "Casos Europeus de Reencarnação". Ed. Vida e Consciência. 1a, Edição, 2010. No que é citado neste post, seguimos a versão em Português.

(4) Uma das críticas levantadas contra a ideia de reencarnação com base em evidência de fatos é o número muito grande de casos (de crianças) em países que aceitam tacitamente a noção como a Índia. Críticos levantaram a hipótese de uma raiz "cultural" para o fenômeno, o que reduziria sua importância como evidência.


(6) Uma "hipótese ad-hoc" é uma explicação criada com um determinado objetivo. No caso aqui, aceitar a possibilidade de que o Espírito possa ter um corpo em outro lugar enquanto ainda não desencarnado é uma explicação criada para "salvar as aparências" ou acomodar os dados disponíveis com a tese principal.  O que supostamente dizem "os fatos", interpretados de acordo com determinados pressupostos e sob risco de falhas (erro de data, falsas memórias etc), é salvo pela adoção da hipótese.