4 de janeiro de 2016

S. José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos


Não menos positivo é o fato do erguimento de uma pessoa; 
mas, é algo muito mais raro, porque é mais 
difícil de ser imitado. É sabido que o Sr. Home se elevou 
mais de uma vez até ao teto, dando assim volta à sala.
Dizem que S. Cupertino possuía a mesma faculdade, 
não sendo o fato mais miraculoso com este do que com aquele.

A. Kardec, "A Gênese", Cap. XIV, "Os fluidos", II - 
Explicação de alguns fenômenos considerados sobrenaturais.

Estaria o Século XXI pronto para confrontar 
o fenômeno destruidor de paradigmas, a levitação?  (M. Grosso, 1)

O fenômeno mediúnico manifesta-se das mais variadas maneiras, numa escala de força e tempo que ainda nos é desconhecida. Quando surgem as circunstâncias favoráveis, eclodem sem consideração por fé, crença ou ponto de vista. Se há manifestações tão singelas e apagadas que passam desapercebidas da maioria, por outro lado, há as que causam admiração e espanto, tamanho o grau de aparente desrespeito às leis naturais - porque representam operação  de leis desconhecidas - que imprimem as suas testemunhas. A revista "Edge Science" de Dezembro de 2015 (número 24, 1) traz um artigo interessante de Michael Grosso sobre uma figura lendária da Igreja, o santo S. José de Cupertino (160-1663). José de Cupertino (Giuseppe da Copertino) foi canonizado por Clemente XIII em 1767 e, até hoje, é adorado por Católicos que veem nele uma das 200 derrogações (ou suspensões) das leis naturais por obra direta de Deus que a Igreja conta entre seus santos. Por que? Eis uma das histórias que se conta, segundo M. Grosso (1):
Próximo ao natal de 1632, o Padre Giuseppe convidou alguns pastores a trazer seus instrumentos musicais para tocar na igreja de Grotella, na Itália. Ao entrarem na igreja, começou José a cantar e dançar. Mais tarde os pastores narraram sob juramento o que aconteceu: "Padre Giuseppe estava tão feliz que começou a dançar no centro da nave aos som das flautas. De repente, suspirou em voz alta e gritou, voando pelos ares como um pássaro, até metade da distância do teto, onde continuou a dançar acima do altar principal. Isso foi ainda mais formidável, pois o altar estava repleto de velas acesas e ele permaneceu entre elas sem derrubar nenhuma. Ficou naquela posição, com seus joelhos acima do altar, abraçado ao tabernáculo por cerca de quinze minutos e então retornou, sem causar qualquer transtorno. Seus olhos estavam cheios d'água e disse: 'Louvado seja Deus, meus irmãos'. Permanecemos todos em admiração e disse comigo mesmo: 'Isso sim é que é um milagre' " (2)
José de Copertino tinha a incrível capacidade de levitar, fenômeno que ocorreu por 35 anos ininterruptos até seu falecimento. Antes da manifestação de voo, José caia numa espécie de "êxtase", conforme descrito por seus biógrafos. O mais difícil é desacreditar as milhares de testemunhas que viram José levitar sob pena de se chegar a uma explicação ridícula ou anacrônica. Nas palavras de M. Grosso (1):
Poderíamos nos perguntar: dado que José era tão submisso e aparentemente pouco inteligente (6), como pôde ele enganar tantas pessoas, algumas inclusive bastante ilustres? De acordo com registros históricos, José levitou diante do Papa Urbano VIII, vários cardiais, médicos, o Rei da Polônia, o Duque de Brunswick, a Princesa de Savoia e numerosas outras personalidades VIPs. Podemos concluir que nenhum deles era esperto o suficiente para desmascarar esse impostor? Poderia José ter enganado o Papa Bento XIV (Prosper Lambertini), conhecido por ser um racionalista? A alternativa a essa explicação é que todos esses dignatários eram parte de uma ilusão em massa para criar a imagem de um padre voador. Mas, com que objetivo? E, por que, depois de tantos séculos, ninguém se apresentou para revelar a verdade sobre tal conspiração?
As evidências de levitação de José de Cupertino têm um peso ainda maior porque, segundo (1), durante a contra-reforma protestante, a Inquisição chegou a encarcerar José, proibindo-o de realizar a missa ou participar de procissões públicas. As autoridades inquisitoriais não queriam que a população o vissem voar e, assim, buscassem no padre curas e outros milagres, como está fartamente registrado em autos de várias paróquias como Grotella, Nápoles, Roma, Nardo, Pietra Rubbia, Osimo e Fossombrone (1). Pode-se dizer qualquer coisa da ética dos métodos e das motivações do tribunal do Santo Ofício, mas o fato é José foi preso justamente pela comoção pública causada por seus voos, e seria ele um caso de fogueira se descobrissem uma impostura. O estado de êxtase em que a população ficava ao ver o fenômeno alarmou outras paróquias que procuram na Inquisição uma maneira de parar as manifestações.  
"S. José de Cupertino voa 
diante da Basílica de Loreto" por 
Ludovico Mazzanti (1686–1775)

José de Cupertino e a mediunidade de efeitos físicos

Segundo M. Grosso em (1), a época de José de Cupertino era um tempo que pessoas eram queimadas vivas caso não tivessem as "credenciais de fé" necessárias. Portanto, os registros históricos confirmam a realidade do fenômeno da levitação e criam um problema difícil para os céticos. É o que chamamos de "anomalia". A explicação do fato, portanto, deve ser outra. Ainda segundo Grosso:
Quando olho para as fontes históricas das narrações sobre José, encontro registros bem documentados, narrativas que descrevem fenômenos estranhos, não somente levitação: histórias de fragrâncias inexplicáveis que persistiam por meses ou anos impregnadas a objetos, descrições sobre curas, do que hoje se chama de "telepatia" ou que, no Século XVII, era conhecido com "leitura dos corações" ou "discernimento" e, finalmente, a vida de José foi capaz de gerar muitos documentos que descrevem suas profecias e clarividência. Domenico Bermini, um historiador eclesiástico, afirma em uma biografia de José (de 1722) que ele registrou 22 profecias de pessoas que iriam falecer. (1)
Manifestações de efeitos físicos são pródigas em fenômenos de levitação (o caso das mesas girantes) e curas. E as tais "profecias" descritas pelos biógrafos de José de Cupertino atestam sua capacidade mediúnica intelectual, sua habilidade de ouvir ou receber informações dos Espíritos sobre fatos à distância - particularmente associados ao estado de pessoas próximas à desencarnação. Ainda que Espíritos não apareçam (6) no que se produziu dos relatos do santo (e não poderiam aparecer, pois aquela era uma época de perseguições aos que não estavam de acordo com a fé ortodoxa), o que temos dos relatos é suficiente para caracterizá-lo como um dos mais poderosos médiuns que já passou pela Terra. 

Sobre S. Cupertino, comenta Kardec (3):
Os fenômenos espíritas, bem como os magnéticos, antes que suas causas fossem conhecidas, tiveram que passar por prodígios. Ora, como os céticos, os espíritos fortes, isto é, os que têm o privilégio exclusivo da razão e do bom-senso, não creem que uma coisa seja possível desde que não a compreendem. É por isso que todos os fatos tidos como prodigiosos são objeto de suas zombarias. Como a religião contém grande número de fatos desse gênero, não creem na religião. Daí à incredulidade absoluta há apenas um passo. Explicando a maioria desses fatos, o Espiritismo lhes dá uma razão de ser. Ele, pois, vem em auxílio à religião, demonstrando a possibilidade de certos fatos que, por não mais terem caráter miraculoso, não são menos extraordinários; e Deus nem é menos grande, nem menos poderoso por não haver derrogado as suas leis. De quantos gracejos não foram objeto as levitações de São Cupertino? Ora, a suspensão no ar dos corpos pesados é um fato explicado pelo Espiritismo. Nós, pessoalmente, fomos testemunha ocular, e o Sr. Home, como outras pessoas de nosso conhecimento, repetiram várias vezes o fenômeno passado com São Cupertino. Assim, o fenômeno entra na ordem das coisas naturais.
Além da citação acima, Kardec mais de uma vez comentou sobre a descrença e escárnio que sempre acompanhava as referências a José de Cupertino. Na Revista Espírita de Outubro de 1859, artigo "Os Milagres", escreve: "De quantas graçolas não foram objeto as levitações de São Cupertino?" Tal fenômeno tem a mesma causa dos médiuns (4, 5) D. D. Home (1833-1886) e C. C. Mirabelli (1889-1951), por exemplo, que realizaram levitações no Século XIX na Europa e XX no Brasil, respectivamente. Mas, no artigo de M. Grosso, temos a confirmação da mediunidade de José de Cupertino, pela presença de outras manifestações espontâneas, típicas da mediunidade de efeitos físicos e intelectuais. 

Qualquer que seja o ponto de vista que se tenha sobre os voos de S. Cupertino, os registros históricos permanecem como seus testemunhos e não permitem fácil interpretação em termos de teorias de conspiração, alucinação em massa ou fraude. Fazem eles parte de uma época em que fraudes teriam vida curta, tanto por conta da existência de uma polícia doutrinária que punia severamente os que se aventuravam a zombar da fé hegemônica, como pela titularidade e inteligência dos notáveis que assistiram o fenômeno mais de uma vez.

Ilustração da levitação de D. D. Home. Fonte: Wikipedia
Continuarão os céticos a duvidar dentro de seu direito. No Século XXI,  qualquer registro fotográfico de um genuíno fenômeno de levitação seria facilmente explicado como manipulações de softwares como o "Photoshop". Céticos mais duros exigiriam, para sua aceitá-lo, um número arbitrário de demonstrações nas mais exóticas condições possíveis, que levariam o médium à loucura. De nossa parte, ficamos contentes em descobrir na história mais um exemplo de mediunidade rara de efeitos físicos, que confirma as regularidade - não obstante peculiaridade - das manifestações mediúnicas descobertas pelos pioneiros do Espiritismo. Podemos dizer que José de Cupertino, duzentos anos antes, antecedeu o fenômeno das mesas girantes do alvorecer do Espiritismo; tendo sido provavelmente ajudado por muitos Espíritos em suas manifestações de voo. Seu caráter piedoso o tornou insuspeito ao Santo Ofício, que procurou cercear entretanto as manifestações. Tivesse as mesas girantes surgido naquela época, tal como aconteceu no Século XIX, muitas pessoas teriam ido para a fogueira.

Referências

1. M. Grosso (2015) Ectasy and Gravitation: The Levitation of Joseph of Copertino. Edge Science, n. 24. Um publicação da Society for Scientific Exploration. A revista pode ser acessada em:

http://microver.se/sse-pdf/edgescience_24.pdf (Acesso: dez. 2015)

2 M. Grosso (2016). The Man Who Could Fly: St. Joseph of Copertino and the Mystery of Levitation. Rowman & Littlefield, p. 79.

3. A. Kardec (1860)  O Maravilhoso e o sobrenatural. Revista Espírita, Edição de setembro.

4. Outros médiuns menos conhecidos e associados à manifestações de levitação são: Amadee Zuccarini, Einer Nielsen, Boerge Michaelsen e Colin Evans, esse último, entretanto, considerado um impostor segundo os autores céticos da Wikipedia. Há ainda o caso de uma levitação do faquir  Subbayah Pullavar. 

5. Ver http://www.spiritarchive.org/levitation-of-humans.html

6.  De acordo com http://capuchinhosprsc.org.br/santos-capuchinhos-2/jose-de-cupertino-18:
Ele era carente de capacidade intelectual a ponto de chamar-se a si mesmo de “Frei Burro”. Mas, cheio de luzes sobrenaturais, discorria em profundidade sobre temas teológicos e resolvia intrincadas questões que lhe eram apresentadas. 




2 de dezembro de 2015

Conceitos básicos de Física Quântica VII


A noção de "emaranhamento" ou "entrelaçamento" (entanglement) é estranha do ponto de vista usual ou "clássico" do mundo. De forma vaga, emaranhamento implica que existe uma ligação "causal" entre dois objetos, algo que se supõe responsável por uma ligação entre todas as coisas do Universo. Na física quântica, é possível preparar uma entidade ou objeto quântico em um estado e, depois, separar esse objeto no espaço por uma distância arbitrária, de forma que uma característica dele pode ser escolhida depois de sua criação propriamente dita. As características do objeto quântico existem em estado latente e se manifestam de forma aleatória apenas depois da realização de uma medida.

Antes de conhecer as implicações da física quântica, é oportuno considerar o que seria "emaranhar" algo do ponto de vista clássico. Há muitas discussões na rede sobre "entanglement", mas é difícil apreciar seu significado sem um mergulho profundo no formalismo quântico. Felizmente, acredito que isso pode ser feito com a ajuda de um exemplo simples que, embora artificial, tem a vantagem de captar os aspectos relevantes da questão.

O problema do emaranhamento nasceu no contexto do chamado "Paradoxo EPR". A sigla representa o nome de três físicos que o conceberam:  Albert Einstein, Boris Podolsky, e Nathan Rosen (1) que, em um importante artigo em 1935, tentaram deixar explícitas sua crença de que a física quântica seria ainda uma teoria inacabada da Natureza física. Para entender a razão disso, apresentamos o equivalente "não quântico" do emaranhamento.

Emaranhamento "não quântico"

Imaginamos uma linha de produção de objetos pareados (2), por exemplo, calçados ou luvas, onde cada elemento segue esteiras em direções opostas como mostra a Fig. 1. Por alguma bizarrice de um empregado, os pares produzidos no centro da linha são separados de forma aleatória quanto ao tipo, mas sempre de forma a se ter ordenadamente um par no final das linhas. Para poder despachar os pares, dois empregados nas pontas I e II  (ver Fig. 1) são obrigados a abrir a caixa onde cada elemento está colocado e anotar se um sapato esquerdo ou direito foi encontrado.
Fig. 1 Exemplo de "emaranhamento" não quântico. Um funcionário louco separa sapatos aleatoriamente, de forma a enviar a dois destinos, I e II, como pares completos. Dessa forma, ao se abri em I e descobrir que um sapato esquerdo foi encontrado, em II, um direito será encontrado com certeza. A correlação pode ser explicada por uma causa pre-existente, quando os pares de sapatos foram separados.
Ao se abrir uma caixa na linha I, o empregado sabe que, se um sapato esquerdo for encontrado, na linha II, distante vários quilômetros de I, um direito com certeza será revelado. Ainda que o conteúdo da caixa seja desconhecido antes de se abrir, o fato de o arranjo ter sido preparado em sua origem de forma pareada, garante uma grande correlação entre o que se encontra em cada uma das linhas I e II. Dessa forma, depois de algum tempo, o resultado da abertura das caixas fica registrado como mostrado a tabela da Fig. 2.
Fig. 2 Resultado da abertura das caixas para uma sequência de chegada de sapatos. "D - Direito" e "E - Esquerdo" representam os tipos encontrados. 

Versão quântica

Vejamos agora a versão "quântica". Ao invés de sapatos, pares de elétrons, produzidos de alguma forma e correlacionados quanticamente (ver Fig. 3), são disparados em direções contrárias por vários quilômetros e, em cada ponta, dispositivos medem propriedades escolhidas dessas partículas. Uma dessas propriedades é, por exemplo, o seu momento angular intrínseco, também chamado "spin". Essa propriedade é medida em um sistema de referência orientado no espaço. Pode-se, por exemplo, escolher medir a componente na direção "z". Por ser um número quântico, o spin somente admite dois valores, que chamamos aqui "+1" e "-1". O spin fornece um equivalente para a propriedade "direito" ou "esquerdo" no exemplo dos sapatos (Fig. 1).
Fig. 3 Esquema do arranjo para medida dos spins em pares de partículas (p. ex., elétrons). A fonte gera um par com componente total nula (S=0). Dessa forma, garante-se a correlação dos spins. Nas linhas I e II, mede-se o spin por meio de uma analisador "Stern-Gerlach" escolhendo-se um eixo de orientação preferencial (como mostrado na figura).

Como no exemplo não quântico, depois de algum tempo e conforme a sequência anotada de chegada dos elétrons, a tabela da Fig. 4 é produzida.

Fig. 4 Resultado das medidas sobre os pares de elétrons com medida da componente "z" dos elétrons.

As semelhanças entre o arranjo da Fig. 1 e da Fig. 3 são muitas De fato, cada par de elétrons medido apresenta uma componente pareada de forma aleatória, como no caso dos sapatos. Pode-se perfeitamente atribuir essa semelhança as mesmas causas:
  1. Que, assim como no caso dos pares de sapatos, os elétrons produzidos na fonte são criados com a propriedade "spin na direção z" já correlacionada;
  2. Que não existe "ação à distância", mas simplesmente manifestação de uma propriedade já existente;
  3. Que o fato do resultado da medida ser aleatório está ligado à falta de informação durante a formação dos pares.
Entretanto, no caso quântico, a escolha do tipo de medida a ser feita pode acontecer depois da criação dos pares! Em outras palavras, poderíamos ter escolhido o eixo "x", ao invés do "z" ou qualquer outra combinação de eixos e o resultado seria o mesmo. Conforme explicado em (2):
Segundo a mecânica quântica, quando os pares de coisas quânticas se separam, cada uma delas simplesmente não tem valor definido da propriedade S. Tudo o que a teoria diz é que há 50% de probabilidade que uma medida de S sobre a coisa dê +1, e 50% que dê -1. É durante a medida que o valor de S se torna definido, sendo em um certo sentido criado pela medida. (Note-se que tal processo guarda pouca relação com o conceito usual de `medida’.) Mas qual será o valor específico “criado” em uma determinada medida é, segundo a teoria, uma questão de puro acaso. Desse modo, fica claro que a teoria torna impossível a explicação do fenômeno em termos de propriedades inerentes a cada uma das coisas, e cujos valores tenham sido definidos na fonte. 
Mas, se não é possível associar um valor pre-definido antes de se realizar a medida, como é possível haver uma correlação entre medidas feitas a distâncias tão grandes ? Ou, segundo (2):
Se as coisas não tinham propriedade S alguma antes de serem sujeitas a mensurações dessa propriedade, por que fantástica coincidência sempre que a interação da coisa 1 com o aparelho 1 cria um determinado valor a interação da coisa 2 com o aparelho 2 cria o valor oposto, sendo que esses dois aparelhos podem estar situados a uma distância arbitrariamente grande um do outro (em galáxias diferentes, por exemplo) ? A única maneira de se evitar a atribuição desse fenômeno a uma coincidência de vastas proporções, é assumir que algum tipo de interação não-local desconhecida e estranha conecta os dois sub-sistemas de modo a que a criação (aleatória) de um determinado resultado em um deles cause a produção do resultado oposto no outro. 
As medidas realizadas demonstraram que as coisas se passam como prevê a física quântica, ou seja, os resultados são sempre correlacionados, e isso independe da escolha da propriedade feita nem do tipo de partícula (note que, em nosso exemplo, usamos elétrons, mas poderiam ser fótons, ou qualquer outra partícula quântica) e que a ação é "instantânea"; como se a decisão da escolha da propriedade (depois da criação do par) fosse comunicada instantaneamente de um braço a outro do experimento, sem respeito a conhecida lei da finitude da velocidade da luz. Eis o emaranhamento quântico manifestando-se.

Seria como se a propriedade "direita" ou "esquerda" de um dado sapato fosse criada quando uma caixa fosse aberta (e não quando foram separados pelo funcionário louco) e que isso é comunicado imediatamente ao seu outro par na ponta oposta. Poderíamos pensar em usar o resultado "+1" e "-1" para transmitir uma mensagem em código binário, mas isso não é permitido, pois o resultado da medida é aleatório. Em outras palavras o arranjo EPR não pode ser usado para transmitir informação, não obstante o fato de a informação sobre a propriedade escolhida (bem como sua medida) ser comunicada acima a velocidade da luz!

O processo de medida quântico

O arranjo da fábrica de sapatos corresponde exatamente ao que os autores do paper EPR tinham em mente para explicar o que acreditavam ser um problema na teoria. Para Einstein, em particular, era inconcebível admitir transmissão instantânea antes de se explicar melhor o processo de emaranhamento, o que implicava em assumir que a física quântica seria uma teoria incompleta.

As tentativas posteriores admitiram essa incompletude e assumiram a existência de variáveis ocultas, não levadas em conta durante o processo de criação de par e da medida. A segunda grande contribuição veio com John Stewart Bell (3) que derivou uma série de desigualdades que, se obedecidas, implicavam na incompletude da física quântica. Mas, eis que resultados experimentais violaram as desigualdades de Bell, de forma que o caminho de se assumir a existência de variáveis ocultas locais como responsáveis pelo fenômeno ficou bloqueado. Portanto, a teoria rejeita explicações clássicas e nada foi colocado em seu lugar para explicar ou tornar "intuitivo" o processo de emaranhamento.
Fig. 5 Uma caixa com dados é um sistema físico que apresenta indeterminismo extrínseco. O resultado do processo de se chacoalhar a caixa e ver um número na face do dado é previsível desde que as condições iniciais sejam conhecidas. 
É importante ressaltar a noção de indeterminismo intrínseco que caracteriza todos os sistemas quânticos. De novo, fazemos isso apelando para um equivalente "clássico". Imaginemos uma caixa fechada com dados em seu interior (Fig. 5). Ao se chacoalhar a caixa e abrir, um determinado número aparece na face superior de um dado (que pode estar entre "1" e "6"). Dizemos que o resultado aleatório se deve ao indeterminismo extrínseco do sistema. "Extrínseco" significa que nossa ignorância sobre todas as propriedades iniciais desse sistema impede uma previsão precisa do resultado, pois se conhecêssemos todas elas - velocidade inicial da mão, posição inicial do dado na caixa, tamanho da caixa, massa da caixa, massa do dado, coeficientes de atrito etc - seria possível prever com grande precisão qual face sairia antes de se abrir a caixa.

Já um sistema quântico equivalente tem indeterminismo intrínseco. A  física quântica simplesmente não prevê ou fornece nenhuma maneira de se conhecer outras variáveis interferentes (elas não existem), e o resultado da medida é inerentemente aleatório - uma propriedade intrínseca do sistema. Além disso, no caso "clássico", temos certeza que, assim que a caixa é deixada em repouso, o número resultante está lá - quer a caixa seja aberta ou não. No caso quântico, isso não acontece, enquanto a caixa não for aberta não é possível afirmar qual o resultado. Isso é uma consequência do indeterminismo intrínseco, mas também de uma possível interferência do processo de medida no sistema (4).

A questão do emaranhamento quântico está envolta em um mistério ao se querer julgar seu sentido pela visão do "senso comum". Que ponto de vista racionalista, rigoroso ou intuitivo acreditaria que características de objetos quânticos podem ser definidas depois que esses objetos são criados e também transmitidas à distâncias incomensuráveis, aparentemente à velocidade instantânea? Sim, a Natureza é o que é, e não aquilo que aprendemos com nossos sentidos comuns.

Referências e comentários

(1) A. Einstein, B. Podolsky, N. Rosen, N. (1935). Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete? (PDF). Physical Review 47 (10): 777–780. Este trabalho pode se acessado aqui.

(2) S. S. Chibeni (1992). Implicações filosóficas da microfísica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 141-164. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(3) J. S. Bell (1964) On the Einstein Podolsky Rosen paradox. Physics 1:195-200. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(4) ​Porém, não devemos associar a perturbação inexorável no sistema provocada pelo processo de medida como uma manifestação quântica. Mesmo sistemas clássicos apresentam perturbação de medida, só que há a perspectiva de se reduzir a perturbação de tal forma que o resultado convirja para o esperado classicamente - sem a presença do observador. A física quântica, porém, parece ter colocado um limite a essa redução de perturbação. Como os sistema quânticos são muito delicados - envolvem quantidades de ação mecânica muito pequenas (como medido pela chamada "constante de Planck") e troca de pacotes de energia, não é possível realizar uma medida sem que uma quantidade finita (portanto limitada a um mínimo) esteja envolvida.