30 de junho de 2014

Mais sobre super-psi.

Conforme referência que nos foi enviada por Chrystian Lavarini (1), o artigo de M. Sudduth "Super-Psi and the Survivalist Interpretation of Mediumship" (2) merece alguns comentários na esteira do que publicamos aqui recentemente (3) sobre a teoria super-psi. À princípio, esse artigo de Sudduth se apresenta como uma defesa bem elaborada da teoria de super-psi, que se coloca como uma alternativa não materialista à teoria espírita.

Para facilitar a discussão que segue, traduzimos o resumo do artigo de Sudduth:
De acordo com a interpretação da sobrevivência da mediunidade, a existência de individualidades desencarnadas é a melhor explicação para os dados associados a mediunidade física e intelectual. Outros - defensores do que é frequentemente chamado de 'hipótese super-psi' - garantem que os dados da mediunidade podem ser explicados, ao menos igualmente bem, em termos de uma agente vivo (ESP ou psicocinese). Muitos defensores da interpretação da sobrevivência tentam esvaziar as virtudes explicativas da hipótese super-psi argumentando que ela é infalsificável e não tem apoio independente nas evidências. Minha linha argumentativa central neste artigo é que as críticas dos adeptos da sobrevivência à hipótese super-psi são auto-destrutivas à defesa da sobrevivência a partir da mediunidade. Para mostrar isso, primeiro argumento em detalhes que a interpretação da sobrevivência da mediunidade está comprometida de tal forma com psi que ela é indistinguível da hipótese super-psi. A partir dessa perspectiva, pode-se mostrar que qualquer tentativa de se negar virtudes explicativas à hipótese super-psi com base em certo grau de psi que isso exige também acaba por enfraquecer o próprio argumento da sobrevivência.
O conceito de psi

Para compreender a linha argumentativa de Sudduth é importante também conhecer o significado de 'psi' como conceito frequentemente usado  na parapsicologia. 'Psi' seria um tipo de habilidade da mente humana que daria a ela capacidade para produzir diversos fenômenos que, na linguagem típica da parapsicológica, se confundem com os fenômenos mediúnicos - tanto de natura 'física' como 'intelectual' (ou mental). Psi seria, de fato, a fonte desses fenômenos (agentes vivos), enquanto que a informação deles produzida teria como origem a mente de outras pessoas. 

Esvaziada de uma teoria (4), a parapsicologia  tenta construir uma linha de explicação para os fenômenos psíquicos que, em sua maior parte, tem horror à qualquer 'hipótese' externa considerada 'anti-científica' (5). Por causa disso, a parapsicologia se esforçou em construir uma linha meramente empírica de argumentação, onde alguns fenômenos são elevados à categoria de princípios fundamentais. Haveria assim 'fenômenos básicos' (6) como blocos unitários em termos dos quais a explicação de outros fenômenos anômalos seria feita. A consequência disso é que as explicações parapsicológicas soam como tautologias para muitos fenômenos (ver tautologia).  

É preciso compreender que as coisas ficaram assim por causa da própria dificuldade em se justificar psi (7) com base na física conhecida de um lado, o horror a hipóteses adicionais e, de outro, ao ambiente francamente hostil aos fenômenos psíquicos do mainstream acadêmico. 

Diferenças entre a interpretação da sobrevivência e a teoria espírita para a mediunidade.

De fato, a interpretação da sobrevivência a que se refere Sudduth apenas diz que a fonte da informação oriunda dos fenômenos psíquicos está na existência dos Espíritos. Não se detalha o mecanismo através do qual isso seria possível. Por isso, a linha argumentativa do autor de (2) é válida:

1. A hipótese super-psi faz uso de psi em certo grau;
2. A interpretação da sobrevivência usa psi em um grau indistinguível de super-psi;
_____________________________________________
C: Portanto, todas as críticas dirigidas a super-psi também valem para a sobrevivência.

Porém, é importante enfatizar que existem grandes diferenças entre a 'interpretação da sobrevivência' a que se refere Sudduth em seu artigo e a teoria espírita elaborada por A. Kardec (8) para a mediunidade. No caso de Kardec, diversos elementos explicativos (existência de fluidos imponderáveis, perispírito, diferenças de densidade entre corpos etc) existem e interagem para explicar uma variedade de fenômenos psíquicos de uma forma bem mais complexa do que a simples assunção da existência dos Espíritos na interpretação da sobrevivência em questão. Por causa disso, a crítica que Sudduth tece à falta de imunidade da tese da sobrevivência em relação à hipótese de 'super-psi' não se aplica à teoria de Kardec como é fácil perceber. 

Obviamente, o debate entre a  'sobrevivência' e 'super-psi' passa longe de Kardec, já que grande parte dos pesquisadores modernos dos fenômenos psíquicos (e que são favoráveis à sobrevivência) desconhecem a teoria de Kardec em detalhes.

Fenômenos de experiências de quase morte e visão de leito de morte não são fenômenos mediúnicos. Aplicar super-psi em tais casos é claramente problemático. De fato, tais fenômenos indicam, de forma independente da mediunidade, a existência do Espírito e sua sobrevivência.

Um problema ainda maior para super-psi

Os leitores não terão dificuldade em perceber a limitação do argumento de Sudduth a partir do próprio título de seu artigo: 'Super-psi e a interpretação da sobrevivência para a mediunidade' (grifo nosso). Em suma, seu argumento só se aplica à mediunidade. Entretanto, existem inúmeras ocorrências que são fenomenologicamente diferentes da mediunidade:
  • Lembranças e fenômenos associados a vidas anteriores em crianças (9);
  • Lembranças de vidas anteriores em adultos submetidos à regressão de memória;
  • Experiências de quase morte, EQM (10);
  • Visões no leito de morte (11);
Aplicar a ideia de super-psi nesses casos seria proibitivamente desonesto como é fácil perceber. Seria esticar em demasiado uma explicação customizada para um tipo de fenômeno. Inúmeros detalhes concorrem para demonstrar que a ideia da sobrevivência se sustenta de forma independente:
  • Por exemplo, no caso das lembranças de vidas anteriores em crianças, o que 'sobreviveu' de uma existência para outra? Como explicar marcas de nascença associada a vidas anteriores usando super-psi?
  • No caso de experiências de quase morte, o que continua a existir enquanto o cérebro está sem oxigênio? 
  • Porque a imensa maioria das lembranças em EQM diz respeito ao encontro com pessoas já falecidas? Nas visões de leito de morte, porque são reportadas imagens de pessoas falecidas?
O leitor interessado identificará facilmente outros detalhes na fenomenologia psíquica 'não mediúnica', que permite facilmente perceber a simplicidade e amplitude explicativa da tese da sobrevivência. Dessa forma, invocando-se a 'Navalha de Occam' (simplicidade), a tese da sobrevivência apresenta-se como a teoria que deve ser escolhida.

Esse é um assunto interessante que merece ser melhor explorado futuramente, principalmente no que diz respeito às consequências da tese da sobrevivência com base em evidências não mediúnicas.

Notas e Referências

(1) Ver post "Geografia(s) do mundo espiritual" de Chrystian Lavarini.

(2) M. Sudduth (2009) "Super-Psi and the Survivalist Interpretation of Mediumship", Journal of Scientifi c Exploration, Vol. 23, No. 2, pp. 167–193.

(3) Ver tradução comentada do texto de M. Prescott "As duas opções".

(4) Sobre isso ver a tradução do artigo de P. Churchland, "Como a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência" que foi publicada em uma série de quatro posts.

(5) A existência dos Espíritos é uma dessas hipóteses. 

(6) ESP ou a chamada 'percepção extra sensorial' e psicocinese são esses blocos constituintes.


(7) Ou seja, como seria possível explicar 'psi'? A interação entre mentes (no caso, por exemplo, da telepatia) não pode ser explicada com base em nenhum elemento mais fundamental. Tentativas foram feitas, porém, o fenômeno não se deixa controlar a ponto de se poder testar facilmente.

(8) Uma boa parte dessa teoria, no que diz respeito à mediunidade, pode ser encontrada em "O Livro dos Médiuns".

(9) J. B. Tucker. (2008). Life Before Life: Children's Memories of Previous Lives.  St. Martin's Griffin, primeira edição.

(10) Ver post: Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte. Artigo de Michael Nahm (2011).

23 de junho de 2014

O cérebro como a última fronteira da ciência: perspectivas recentes e a visão espírita (2)

Continuação do post contendo o artigo "Le cerveau comme ultime frontière de la science: perspectives récentes et vision spirite" que foi publicado na revista Revue Spirite, número 93 (Revue trimestrelle: 157 année - Revue Spirite - Journal d'Études Psychologique.). Agradeço ao Leandro Pimenta e ao Jérémie Philippe pela oportunidade dessa publicação. Para ver a primeira parte, clique aqui.

A fenomenologia psíquica que expande a variedade de experiências conscientes
Muito antes que as primeiras teorias modernas sobre a consciência fossem desenvolvidas, o espiritualismo no século XIX já considerava a existência de uma rica variedade de experiências de consciência que se manifestam como uma forma expandida das experiências ordinárias descritas anteriormente. Consideremos, por exemplo, a diferença entre a perspectiva de primeira e terceira pessoa na descrição dos estados mentais. É amplamente aceito que apenas eu tenho lucidez plena de minhas sensações, memórias e percepções (que é a própria definição de translucidez). Entretanto, médiuns de efeitos inteligentes descrevem sensações e cognições experimentadas por indivíduos já falecidos que puderam ser verificadas por seus parentes mais íntimos. Em um nível mais elementar, as experiências de ‘transmissão de pensamento’ (ou telepatia) permanecem como instâncias de acesso privilegiado ao campo mental, mesmo entre os vivos, desafiando o conceito de translucidez. Consideremos os casos de fobias em crianças como descritos por I. Stevenson (1990), que se manifestam como origem em memórias de vidas passadas. É bem aceito que muitas emoções (como o medo) têm como base determinadas crenças (memórias), mas o que dizer de fobias a partir de memórias inexplicáveis como a de vidas passadas? Nesse sentido, a variedade dos fenômenos psíquicos aumenta o conjunto das experiências ordinárias de duas formas: como uma expansão dos sentidos ordinários (novas sensações, percepções e emoções) e como uma não conservação da informação mental (se a consciência tem origem no cérebro, por conservação de informação, ela não pode manifestar conhecimentos localizados fora dela tanto no espaço como no tempo). Infelizmente, ainda não existe uma medida generalizada da informação que seja suficientemente aplicável a todas as experiências da consciência. Esse problema contribui, por exemplo, para o desprezo acadêmico dos relatos de sensações e percepções mediúnicas ou de memórias de vidas anteriores. Não se trata de um problema simples, porque o reconhecimento da não conservação da informação pressupõe o próprio reconhecimento da informação que, por sua vez, exige um paradigma completamente novo para a consciência.

Kardec, de forma pioneira, considerou muitos dos fenômenos de consciência expandida, conforme podemos ler no Cap. VIII de ‘O Livro dos Espíritos’ (Kardec, 1949). É possível, por exemplo, fazer um paralelo entre os fenômenos de visitas espíritas entre pessoas vivas, transmissão oculta de pensamento, letargia, catalepsia, sonambulismo com o artigo recente de M. Nahm (2011) “Reflections on the Context of Near-Death Experiences”, que trata do ambiente ou contexto de muitas experiências de quase-morte (NDE). Esses relatos envolvem experiências fora do corpo que foram reciprocamente confirmadas, sonhos e NDE compartilhados, relações entre lembranças de vidas passadas, NDE e mediunidade, lucidez terminal e visões de leito de morte. Toda essa rica fenomenologia atesta para a existência de um segundo corpo que sobrevive à morte do corpo material e que manifesta a independência de estados mentais da fisiologia do cérebro. Conforme comenta Nahm:
A hipótese de que uma NDE não depende do estado da organização orgânica no cérebro constitui um modelo explicativo capaz de lidar com o enigma sobre porque as experiências NDE podem ser tão notavelmente similares sob condições tão variadas da fisiologia do cérebro.
Surge a física quântica

A existência de estados mentais que parecem não depender do estado fisiológico do cérebro, bem como a possível extensão das propriedades desses estados através do aparecimento de novas percepções forma uma rica fenomenologia que contrasta fortemente com os modelos reducionistas da mente. Em pelo menos um fenômeno, o da transmissão de pensamento, estados mentais são vistos como transcendendo ao aparelho físico de onde, ordinariamente, parecem surgir. Mesmo fora das considerações espiritualistas, não parece ser possível associar a dinâmica determinista dos neurônios com as experiências de cognição, sensações e percepções que são vividas em primeira pessoa pelo ser pensante. Tudo isso fez com que se procurassem um novo arcabouço físico capaz de acomodar algumas das propriedades mais estranhas dos estados mentais. A física quântica, com suas bizarras manifestações no reino microscópio, é vista como um desses arcabouços potencialmente férteis em torno do qual uma nova ciência da mente poderia ser construída.

Fundamentalmente, a física quântica tem como objetivo explicar o comportamento da matéria, principalmente em seu nível microscópio. Não há nada nela que preveja a existência de um elemento mental independente (Chalmers, 1995). Os estados quânticos são estados da matéria e são descritos por um formalismo especial muito diferente do formalismo da física clássica que a antecede. Portanto, as interpretações não ortodoxas da física quântica, que são vistas como promissoras para o desenvolvimento de uma nova teoria da consciência, não abandonam o monismo necessariamente, embora o papel do observador – como responsável pelo ‘colapso da função de onda’ – seja privilegiado (Wigner, 1961). O mainstream acadêmico dentro das neurociências não aceita o papel da física quântica como fundamental na explicação da dinâmica do cérebro porque não se encontrou um mecanismo para sua atuação, embora algumas propostas já tenham sido feitas (Hameroff e Penrose, 1996). Isso não impede, porém, que sejam feitos paralelos entre interpretações da física quântica e sua aplicação a estados mentais. Esse paralelo se estabelece de duas formas: através de um possível papel privilegiado do observador no fenômeno do colapso da função de onda – que faria com que indivíduos conscientes determinassem a realidade até certo ponto (e, principalmente, os estados microscópicas das células nervosas, encontrando-se lugar para o livre-arbítrio intrínseco no cérebro) e no fenômeno da não localidade, que fornece subsídios para se entender o acesso privilegiado a estados mentais de terceiros como uma manifestação de emaranhamento quântico. É preciso que o leitor compreenda, porém, que essas propostas se dão em um nível heurístico – elas são propostas de interpretação – não se constituindo teoria geral para os estados de consciência em termos do formalismo da física quântica. Essas são propostas que permitem que se discuta academicamente a ‘fenomenologia das anomalias mentais’ ou outros fenômenos pouco aceitos, diante de uma teoria dominante para a qual nada disso existe. Desprovido de exageros, esse talvez, seja a principal vantagem do uso heurístico da física quântica na abordagem dos problemas da consciência.

Discussão final

Não obstante toda a sofisticação dos métodos modernos de exame neurológico e teorias matemáticas em inteligência artificial, o problema da consciência permanece não resolvido. Esse problema se agiganta quando consideramos as múltiplas variedades de experiências mentais anômalas que são conhecidas desde os primeiros dias do Espiritismo. Heurísticas de interpretação de fenômenos mentais que se baseiam nos fundamentos da física quântica abrem perspectivas acadêmicas – embora com pouco apoio formal – na consideração justa de fenômenos mentais anômalos. A existência da fenomenologia psíquica coloca severos limites às teorias reducionistas da mente que têm na complexidade, não linearidade e realimentação das células neurais os principais fundamentos dessa abordagem reducionista. O reducionismo fisicalista, da forma como é concebido hoje, não é completo o suficiente para abarcar todos os fenômenos mentais existentes. No nosso ponto de vista, o maior problema para o desenvolvimento de uma correta ciência da mente a partir de tais modelos reducionistas está na inexistência de uma definição suficientemente abrangente para a informação, de como ela pode ser gerada e armazenada. De um ponto de vista puramente acadêmico, temos certeza de que, entendido o cérebro como um sistema fechado, será possível demonstrar a não conservação de informação em muitos fenômenos mentais relevantes, indicando que a consciência não se encontra limitada ao cérebro, que funciona como órgão transmissivo da informação mental e das diversas manifestações conscientes.

Referencias

Chalmers, D. J. (1995). The conscious mind, in search of a theory of conscious experience. Dep. of Philosophy, Univ. of California.

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Hopfield, J. J. (1982). Neural networks and physical systems with emergent collective computational abilities. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA. 79, p. 2554.

Hameroff, S. e Penrose, R. (1996).  Conscious Events as Orchestrated Space-Time Selections. Journal of Consciousness Studies 3(1) , p.36.

Hopfield, J. J. e Tank, T. W. (1986). Computing with neural circuits: a model. Science, 233, p. 625.
James, W. (n.d.), Human Immortality. Texto digital disponível em: http://godconsciousness.com/humanimmortality.php (acesso em 2013).

Kardec, A. (1949), O Livro dos Espíritos, Ed. Federação Espírita Brasileira.

Kardec, A. (1986). A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Gênese orgânica, o homem corporal, Parágrafo 30. Trad. Victor Tollendal Pacheco. São Paulo: Ed. NG Promoções editoriais, 

Maslin, K. T. (2001), An introduction to the philosophy of mind, Blackwell publishers Inc.  

McCulloch, W. S. e Pitts, W. (1943). A logical calculus of the ideas immanent in nervous activity. Bulletin of Mathematical Biophysics. 5, p. 115.

Nahm, M. (2011), Reflections on the Context of Near-Death Experiences, Journal of Scientific Exploration, 25(3), pp. 453.

Rosenblatt, F. (1958). The perceptron: a probabilistic model for information storage and organization in the brain. Psychological review, 65, p. 386.

Searle, J. (1989), Mind, Brains and Science: Reith Lectures, Harmondsworth: Penguin.

Stevenson, I (1990), Phobias in Children who claim to remember previous lives, Journal of Scientific Exploration, 4(2), p. 243.

Wigner, E.P. 1961. Remarks on the mind–body question. In (I.J. Good, ed.) The Scientist Speculates. New York: Basic Books.