1 de junho de 2016

A mediunidade de Eugênia von der Leyen

"Foi muito esquisito o que aconteceu. O sacristão continuou andando 
e passou através do vigário, como se fosse apenas uma sombra. 
Vi claramente os dois. Pouco depois, o pároco sumiu e 
nunca mais o vi." (Eugênia descrevendo seu contato com 
o pároco Schmuttermeier na igreja, p. 49 de (2))

Se se quiserem desembaraçar da obsessão de semelhantes Espíritos, 
será fácil, orando por eles. É o que sempre esquecem de fazer.
 Preferem aterrá-los com fórmulas de exorcismos, que os divertem muito.
("História de um danado", Revue Spirite, 1860)

Um de nossos leitores (1) comentou sobre um interessante livro ao ler nosso texto "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" (3). Trata-se de "Meine Gespräche mit Armen Seelen" (2), que podemos traduzir livremente como "Minhas conversações com almas penadas". É um diário escrito pela princesa Eugenie von der Leyen und zu Hohengeroldseck (1867-1929) entre 1921 e 1929. Nascida em Munique, Eugênia vivera praticamente enclausurada em vários castelos de sua família (Fig. 1) na região de Landsberg na Baviera. De formação fervorosamente católica, Eugênia ou "Eschi" compôs, sob sugestão de seu confessor, relatos periódicos em que atestou "visões" e conversas com falecidos. Obviamente, o círculo social onde Eugênia viveu jamais permitiria qualquer outra interpretação para suas "visões" do que o contato direto com as "almas penadas" do purgatório, o que possibilitou a sobrevivência de seus escritos, confiados totalmente a seu confessor.

Comentamos alguns trechos de seu diário que foi publicado e proibido na Alemanha de Hitler. Citações a essa obra foram avançados por Hermínio de Miranda em seu livro "A reinvenção da morte" (4). Consideramos relevante seus escritos, pois referem-se a uma descrição fora do contexto do conhecimento espírita, o que atesta a universalidade desses mesmos ensinos. Trata-se também de uma ideia interessante, que pode ser adotada por médiuns de variadas sensibilidades: a de se escrever a impressão do fenômeno até suas menores particularidades. 

Alguns relatos

Os relatos de Eugênia parecem ser autênticos, uma vez que a médium nunca mencionou sua ocorrência em vida. Conforme atesta seu confessor:
Eu conheci a vidente durante seus últimos doze anos de vida; todos os dias tinha conhecimento de seus encontros com almas. A meu conselho, ela anotava o que via num diário. Nem ela e, no início, nem eu, tivemos a intenção de publicá-lo... A vidente levava uma vida santa. Era de uma piedade autêntica, humilde como São Francisco, zelosa na prática do bem e desmedidamente generosa: sempre prestativa e pronta a renunciar à própria vontade, disposta aos maiores sacrifícios, querida por Deus e por todos que a cercavam. Quem a conhecia, venerava-a. Jamais desejou atrair a atenção de quem quer que fosse. Tinha um talento especial para prestar favores e proporcionar surpresas agradáveis aos outros. O caráter da princesa é a mais sólida garantia de que merece crédito. Declaro, sob juramento, que a aconselhei a anotar, clara e integralmente, suas experiências reais, mas nunca, e em parte alguma, lhe sugeri quaisquer opiniões minhas. (p. 41)
Fig. 1 Schloss Unterdieβen, onde Eugênia viveu
a partir de 1925. 
A julgar por suas descrições, o convívio de Eugênia com os desencarnados era constante, mas limitado à visão e audição. Seu diário traz exclusivamente contatos com desencarnados. Poucos, porém, chegavam a responder seus questionamentos (todos os grifos são meus):
Cinco horas da tarde. Vi no jardim, entre duas árvores, uma freira. Parecia estar me esperando. Pensei tratar-se de uma velha conhecida e apressei-me a ir ao seu encontro. De repente, ela desapareceu sem deixar vestígios. (p. 45).
24 de fevereiro — Às quatro da manhã acordo e acendo a luz. Junto à minha cama está Crescência e, a seu lado, aquela desconhecida. Perguntei: “Crescência, querida, donde vens?” — “Do espaço intermediário.” — “Como me encontraste?” Ela fez um gesto como para dizer que veio pelo ar. (p. 52)
23 de março — De noite. Outra vez aquela gente. Dezesseis pessoas. Demoraram longo tempo. Cinco deles eu conheço: Viktor, Maria M..., Perpétua R..., aquele sapateiro que vivia dizendo: “Ai, meu Deus!” , Baptista B...; perguntei-lhes: “O que querem vocês?” Nenhuma resposta. Então eu disse: “Vamos rezar por vocês. Não precisam voltar mais.” Aí, diz o Viktor: "Temos de vir!” “Quem o quer?”, perguntei. Não responderam. Ficaram mais um pouco; todos cravaram os olhos em mim, e se foram. Aparecem noite após noite, mas não posso fazer nada; rezo e depois de pouco tempo, todos eles se retiram. (p. 54)
A primeira citação mostra um fenômeno bastante comum em  sua narrativa: o desaparecimento repentino de imagens de pessoas que Eugênia aprende a distinguir das "pessoas de carne e osso". Isso não acontece em um ambiente reservado (e nem sob invocação, o que seria inaceitável para Eugênia), mas a qualquer horário, que ela prefere seja de dia. Na segunda descrição, a médium recebe uma resposta "Do espaço intermediário" e o Espírito afirma que veio pelo ar. Na terceira citação, Eugênia quer saber porque almas do purgatório a procuram. A resposta de um Espírito chamado Viktor é "temos que vir". Eugênia também descreve a presença de dezesseis Espíritos em seu quarto, que tinha, segundo os editores de (2), cinco metros quadrados!

Apesar de seu caráter católico fervoroso, não existem dúvidas em Eugênia de que ela está, quase sempre, cercadas de "almas em sofrimento", Ou seja, ela jamais interpreta o que vê como uma manifestação "do demônio", opinião que é compartilhada por seu confessor. O fenômeno é espontâneo e intermitente. A médium não tem controle dele, embora reconheça que, em algumas situações, perdeu contato com as almas:
Durante alguns dias, sempre à noite, tive febre. Não conseguia conciliar o sono. Nessas ocasiões, nada via e nada escutava. Agora que estou boa, parece que voltam. (p. 55, grifos meus)
A que se deve isso? A mediunidade, segundo Kardec, encontra-se fundada na estrutura do organismo:
79. A faculdade mediúnica é uma propriedade do organismo e não depende das qualidades morais do médium; ela se nos mostra desenvolvida, tanto nos mais dignos, como nos mais indignos. Não se dá, porém, o mesmo com a preferência que os Espíritos bons dão ao médium. ("O que é o Espiritismo?" Cap. II: qualidade dos médiuns.)
Explica-se assim porque a sensibilidade mediúnica pode se enfraquecer durante as enfermidades  do corpo físico do médium.

Um fato curioso sobre a "sensibilidade" de animais (4b) também é relatado por Eugênia:
Vi sentada no cercado de galinhas aquela mulher. Seu jeito é sempre amável. Mas ela não responde. Tendo ido ao galinheiro, pude observá-la bem. Um gato veio andando em direção a ela. Ao enxergá-la, deu um pulo, assustado, para o lado. Senti-me feliz por constatar que, ao menos, o gato vê o que eu vejo. (p. 60)
Mas, para onde iriam as "almas" que Eugênia ajuda? Lemos o seguinte diálogo entre a médium e uma delas:
20 de junho — Estando eu para me flagelar por Weiss, apareceu ele, ao meu lado, com uma expressão feliz e disse: “Tu me remiste.” — “Não fui eu, foi a misericórdia de Deus.” — “Servindo-se de ti!” — “Aonde vais agora?” — “A uma esfera superior.” (p. 125) 
Licantropia

Algumas descrições recentes em livros espíritas falam do fenômeno da Licantropia - algo que aconteceria a Espíritos desencarnados com delitos graves - como um processo de deformação do perispírito. O livro "Libertação" (5) descreve um caso de um Espírito feminino que assassinou seus filhos e que foi deformado sob sugestão hipnótica "à forma de uma loba". A licantropia não aparece em nenhuma obra de Kardec (6), mas o fenômeno é confirmado nos relatos de Eugênia:
19 de dezembro — Chegou o Monstro. Posso vê-lo distintamente. É mais alto que os homens comuns. Tem cabelos hirsutos, negros; resfolga de um modo asqueroso. Protegi-me com a relíquia da Santa Cruz e aspergi água benta na aparição. Fixou-me o olhar algum tempo e depois foi embora pela janela. Nunca em minha vida tinha visto algo tão nauseabundo, a não ser em jardins zoológicos. E esse Monstro, nojento e asqueroso, esteve no meu aposento! (p. 90)
24 de abril— Faz três dias que me visita toda noite um animal  todo preto, intermediário entre búfalo e carneiro. Fiquei muito assustada. Pulou no meu leito. Para remediar minha covardia, recorri à água batismal e o quadrúpede me deixou em paz. (p. 140)
E não apenas nele. Segundo (2), há outras referências (7):
José de Gorres, o grande especialista em mística da Universidade de Munique, escreve em sua obra "Mística cristã" sobre a Irma Francisca do Santíssimo Sacramento, da Ordem das Carmelitas,  que “apareciam, às vezes, a essa Irmã, pessoas falecidas sob formas terríveis, mais parecendo um animal do que gente". (p. 25)
Concordando com André Luiz,  conforme conclui Eugênia, as "almas" nessas condições cometeram delitos muito graves. Por meio da presença da médium, o Espírito passa por uma transformação pelo qual reassume uma forma humana.

Por que eu? Paralelos com as descrições de Yvonne Pereira.

Uma das grandes questões de Eugênia era: por que ela? Por que as "almas" a procuravam? Em seus contatos, elas estão sempre a fitar profundamente seus olhos. Outros buscam tocá-la:
Algo tocou-me no ombro e senti muito medo. (p. 55) 
Aproximou-se de mim, e antes que o pudesse impedir, o dedo dele tocou na minha mão. (p. 63) 
23 de janeiro — Henrique mudou bastante. Nem sei dizer como ou em que, mas já não me inspira tanto nojo. Estou feliz porque não me tocou. (p. 102)
Disse-lhe: “Prefiro que não me toques, embora eu tenha muita vontade de ajudar-te.” (p. 95)
A impressão que temos é que a médium era uma "fonte" (de fluidos) em contato com a qual as "almas" se beneficiavam e transformavam profundamente.
Yvonne Pereira (1900-1984), a grande 
médium brasileira. Impressiona alguns 
paralelos que se pode fazer entre suas 
descrições com as de Eugênia 
von der Leyen.

É difícil deixar de comparar os contatos de Eugênia com as descrições de Yvonne Pereira. Exemplos encontramos no livro "Recordações da Mediunidade" (em azul abaixo, 8), seguido do equivalente quase idêntico com Eugênia (em verde). De novo, os grifos são meus:
Mesmo assim, como não enlouqueci de pavor, ou não me deixei obsidiar, nos momentos em que via o infeliz suicida deixar o sótão, flutuar no espaço atraído pelas minhas forças afins, sem mesmo disso se aperceber, e atingir o escritório para se deter junto de mim e continuar suas eternas convulsões? (8, Cap. 6, "Testemunho")
22 de junho — Desde à uma hora da noite até depois das cinco, esteve “ele” no meu quarto. Foi medonho. Curvou-se sobre mim diversas vezes e sentava-se junto ao meu leito. Chorei de tanto pavor. (2, p. 60)
O ruído provindo do mundo invisível é muito mais impressionante do que a visão, e senti-me chocada. Ainda hoje prefiro ver os Espíritos, qualquer que seja a sua categoria moral, a ouvir os ruídos que eles produzam, pois quaisquer ruídos ou sons provindos do  Além são assaz diferentes dos conhecidos na Terra, são como que difusos pelo ar, cavos, surdos, ocos. (8, Cap. 6, "Testemunho")
Tenho a sensação de que há muitas almas junto a mim, mas nada vejo; ouço, porém, passos e respiração arquejante pertinho de mim; em seguida, um barulho estranho, como se alguém batesse na parede. Apenas ouço e percebo esses ruídos, o que, para mim, é pior do que ver e assistir seja ao que for. (2, p. 55)
A explicação para a atração dos Espíritas por Eugênia pode ser talvez a mesma descrita pela grande medianeira do Brasil:
Se, outrora, como suicida que também eu teria sido, me vi socorrida por almas generosas do Espaço, as quais me ajudaram o reerguimento moral pelo amor de Deus, a lei suprema de mim exigiria agora que, por minha vez, eu socorresse a outrem, pois sabemos que essa lei determina a solidariedade entre as criaturas de Deus, e jamais receberemos favores ou auxílios de outrem sem que, posteriormente, deixemos de transmiti-los também à pessoa do próximo. (8, Cap. 6, "Testemunho")
...que também aparece em Eugênia:
Aproxima-se uma luta que tenho travado já tantas vezes: devo amar esse pobre coitado e não o consigo. Só quando chegar a amar essa alma embrulhada em execração serei capaz de fazer sacrifícios. (2, p. 94)
9 de agosto — Passei por algo pavoroso. Um estrondo me despertou. Acendi a luz e algo de horripilante se inclinava sobre mim. Constantemente meus pensamentos voltam àquilo: uma cabeça gigantesca com olhos tão apunhalantes que não parecem existir, ou antes: o rosto todo era um só olho que me fixava. “Vai-te!" — exclamei — o que procuras comigo?” — “A paz.” — “Não sou eu quem pode dá-la.” — “Mas tu deves!” — “O que me pode obrigar a isso?” — “Amarás o teu próximo como a ti mesmo. (p. 127)
Há muitas outras semelhanças. Por exemplo, a maior parte dos contatos de Eugênia dá-se durante o período da madrugada. Yvonne Pereira também afirma a mesma coisa e fornece, inclusive, uma explicação para esse fato.

Conclusões

É importante entender que a mediunidade de Eugênia é raríssima. Eugênia cai na categoria de médiuns de vigília, conforme a questão 1 no Cap. VI de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec. A espontaneidade, intermitência e falta de controle da médium demonstram sua mediunidade como de caráter neutro e absolutamente independente da crença de Eugênia ou de qualquer ato ou circunstância capaz de provocar os fenômenos.

Entretanto, Eugenia parece não compreender completamente a dinâmica do fenômeno que hoje podemos analisar graças à chave fornecida pelo Espiritismo e informes mais recentes da literatura espírita. Em particular, a atração das "almas" pela presença de Eugênia se deve a sua mediunidade peculiar, sua crença fervorosa no poder superior e sua inclinação para fazer o bem, não obstante a repulsa que descreve sentir pelos seres que a procuram. Ela convenceu-se gradativamente que era sua obrigação ajudá-los. Pouco a pouco, eles melhoram de condição, conforme ela mesma descreve.

Isso é reforçado por outra conclusão interessante: seus rituais (aspersão de água benta, sinais, presença da relíquia da cruz etc) parecem inócuos (9). O benefício conseguido para as "almas" deve-se à atuação de seu fluido por meio de sua vontade: quanto mais passa a amar os infelizes que a procuram, a interessar-se por eles, tanto mais eles conseguem ter seus sofrimentos abrandados.

É provável que outras descrições (7) existam de testemunhos semelhantes que aguardam melhores análise e estudos. Particularmente interessante também é o contexto católico que aprova e recomenda a leitura do diário de Eugênia. Não se fala em visões infernais ou ação demoníaca. O contexto piedoso e de fé que envolvia Eugênia fez sobreviver seus relatos, que não diferem das descrições de médiuns espíritas. E nem poderia deixar de ser, pois o fenômeno é o mesmo.
Referências e comentários

1 - José Ricardo Basílio a quem agradeço a sugestão do livro que deu origem a este post.

2 - E. von der Leyen (1994). "Conversando com as Almas do Purgatório". AM Edições, São Paulo. ISBN 85-276-0305-5.

3 - "Os vivos e os mortos na sociedade medieval".
4 - Conforme indicado por José Ricardo Basílio.

4b - Ver o Capítulo 22 de "O Livro dos Médiuns" de A. Kardec.

5 - Xavier F. C. (1992) "Libertação". 15a Edição. FEB.

6 - Sobre a possibilidade de Espíritos aparecerem em forma de animais, ver "O Livro dos Médiuns", Cap. VI, "Manifestações visuais", questão 35. Também, ao se ler "A história de um danado", na Revue Spirite de 1860, por exemplo, deparamos com interessantes relatos (grifos meus):
(A São Luís) ─ Teríeis a bondade de nos dar algumas informações sobre este Espírito, já que ele não pode ou não quer dá-las?
─ É um Espírito da pior espécie, um verdadeiro monstro. Fizemo-lo vir, mas não foi possível obrigá-lo a escrever, malgrado tudo quanto lhe foi dito. Ele tem seu livre-arbítrio, do qual o infeliz faz triste uso.
14. ─ Esse Espírito é sofredor e infeliz. Podeis descrever o gênero de sofrimento que experimenta?
─ Ele está persuadido de que terá de ficar eternamente na situação em que se encontra. Vê-se constantemente no momento em que praticou o crime. Qualquer outra lembrança lhe foi apagada e qualquer comunicação com outro Espírito foi interdita. Na Terra, só pode ficar naquela casa, e quando no espaço, nas trevas e na solidão.
62. ─ Podeis descrever seu gênero de suplício?
─ É-lhe atroz. Como sabeis, foi condenado a ficar no local do crime, sem poder dirigir o pensamento a outra coisa senão ao crime, sempre ante os seus olhos, e julga-se eternamente condenado a essa tortura.
Tais descrições se assemelham ao que André Luiz descreveu em outros termos (influência hipnótica etc).

7 - Joseph von Gorres (1840). Mística cristã, v. III, p. 476. Editora Manz, Regensburg. O leitor interessado poderá, talvez, estudar do ponto de vista espírita a vida de outros místicos católicos citados na obra incluem:
  • (S) Catarina de Gênova (1447-1510)
  • (S) Teresa D'Ávila (1515-1582)
  • Crescentia Höss de Kaufbeuren (1682-1744)
  • Maria Ana Lindmayr (1657-1726)
  • Heinrich Seuse (1295-1366)
  • Margarete Schäffner (?-1949)
  • Ana Caterina Emmerich (1774-1824)
8 - Pereira Y. (1992). Recordações da mediunidade. Ditado pelo Espírito de A. B de Menezes. 7a Edição. Feb.

9 - Conforme esclarece A. Kardec: 
Nenhum objeto, medalha ou talismã tem a propriedade de atrair ou repelir os Espíritos; a matéria não tem nenhuma ação sobre eles. Um bom Espírito nunca aconselha semelhantes absurdos. A virtude dos talismãs nunca existiu a não ser na imaginação das pessoas crédulas. ("O Livro dos Médiuns", cap. XXV.)

4 de maio de 2016

Conceitos básicos de Física Quântica VIII

Imagem de uma chama de um fósforo. 
Esse fenômeno extremamente vulgar e macroscópico 
tem sua explicação na Física Quântica.
É comum ouvir relatos de que a física quântica (FQ) foi feita para explicar fenômenos microscópicos e está cercada de mistérios.  Por exemplo, Hélio Schwartsman publicou recentemente (1):
Quando alguém apela a efeitos quânticos para explicar qualquer fenômeno em escala um pouco maior do que a de partículas subatômicas, são grandes as chances de que estejamos diante de um picareta "new age".
Isso é, entretanto, uma afirmação equivocada.

É verdade que existem ainda questões relacionadas a interpretações mais profundas dos fundamentos da FQ. É também verdade, conforme discutimos em posts anteriores (2), que existem fenômenos quânticos que não possuem equivalentes em nosso mundo "clássico". Talvez o formalismo quântico não ajude muito a tirar esse impressão porque as relações entre grandezas na FQ exigem tratamento em espaços matemáticos diferentes daqueles da chamada "Física Clássica". Porém, no nosso entendimento, o problema é pouco motivado por esses mistérios, mas sim por uma visão de mundo simplificada, em que tudo o que é "observável" (3) é considerado "ordinário" e o que não é "misterioso". 

O macroscópico é ordinário, o microscópio é misterioso

Em suma: tudo aquilo que consigo ver, tocar, cheirar etc, e que está sob a classificação de "fenômeno macroscópico", é considerado da alçada das explicações comuns. Isso está bastante difundido em textos populares que tentam explicar física quântica, inclusive na avaliação de Hélio Schwartzman. O que não é visível ou detectável não existe, é mistério ou é assunto para mentes privilegiadas. De acordo com esse raciocínio, a FQ seria aplicada apenas ao que não se vê, como é o caso de átomos ou partículas subatômicas, pequenas demais para serem detectadas pelos sentidos humanos.

Mas, na verdade, isso esconde dificuldades ainda maiores no processo de explicação na ciência. A base da explicação em qualquer ciência não necessariamente envolve aquilo que se vê, porque devemos separar as causas das consequências. Assim, em muitos fenômenos ordinários os efeitos são visíveis, mas as causas não são. Do contrário, crê-se que, para que haja explicação, as causas devem estar igualmente acessíveis, o que raramente é o caso. Exemplos não faltam:
  • Em genética: os efeitos das anomalias, doenças e outras disconformidades observadas facilmente por exame de seres orgânicos está, muitas vezes, nos genes, que são causas inacessíveis diretamente;
  • Em física: a temperatura dos corpos (que podemos sentir por toque) está relacionada à velocidade de partículas minúsculas que compõem o material que são causas inacessíveis diretamente;
  • Na medicina: a temperatura e os sintomas dos pacientes acometidos por uma doença podem ser causados pela influência de minúsculos organismos (bactérias ou vírus) que são inacessíveis diretamente (3b);
  • Em geologia: a explosão de lava observada em vulcões se deve à movimentação oculta de magma nas profundezas da terra, que são inobserváveis. 
É quase que uma regra geral na ciência que causas sejam sempre ocultas, não diretamente observáveis ou apenas inferidas indiretamente por meio de outras medidas, frequentemente envolvendo complexas teorias e relações causais. Isso também é verdade para a FQ.

Já discutimos aqui e em outros trabalhos os diversos níveis de explicação que os fenômenos estão sujeitos. Explicações ordinárias frequentemente envolvem causas simples. Assim, se ocorre um problema no meu carro e acho que pode ser por "superaquecimento da água no radiador", a causa aventada é um evento observável (água aquecida). Em ciência, a maior parte das explicações não são desse tipo. Elas envolvem descer até outras causas, ainda mais fundamentais, que devem ser inferidas indiretamente (3).

A Física Quântica e o problema da consciência.

Como a manifestação da consciência é considerada uma coisa "misteriosa", então somente a FQ, um mistério igual, talvez forneça alguma explicação para a mente. Essa é a linha de raciocínio seguida por uma imensa literatura - frequentemente bastante entusiasta (4) - que busca aplicar conceitos, noções e resultados da FQ em problemas da mente. É uma linha aparentemente natural de inquérito, já que a FQ é uma teoria extremamente bem sucedida (paradigma científico), que fornece explicações para uma ampla classe de fenômenos materiais. Não seria natural que ela também explicasse a mente?

Uma lista de fenômenos macroscópicos (ver abaixo) com causas quânticas (ou seja, explicados pela FQ) pode ser levantada como uma excelente motivação para a crença da generalidade da FQ em contraposição ao que clama o autor da referência (1). Assim, não duvidamos que exista um fundamento microscópio para a movimentação de matéria no cérebro associada aos fenômenos da consciência. Acreditamos ser até mesmo trivialmente verdade que a FQ tenha um papel importante a desempenhar no sistema nervoso, ainda que muitos neurocientistas, por falta de conhecimento no assunto, continuem a propor explicações que dispensem a FQ. Mas, com o desenvolvimento normal da ciência, acreditamos que FQ eventualmente fará parte do currículo de cursos de biologia (5), uma vez que seus fundamentos subsidiam a compreensão de inúmeros fenômenos físicos ordinários.

Porém, isso é bastante diferente de se afirmar que a FQ irá solucionar o problema da consciência. Aqui há dois pontos de vista que vale a pena detalhar:
  1. A noção de que a FQ é importante, que tem uma lógica diferente da ordinária, que não está naturalmente integrada ao senso comum e que não dispõe ainda de uma interpretação absolutamente consensual sobre seus princípios pode despertar nos neurocientistas a ideia de que a consciência necessite de outra abordagem, de um tratamento especial, que não se beneficie tanto de paralelos "clássicos" ou que novas técnicas de medida sejam necessárias para a exploração dos fenômenos da consciência;
  2. A assunção direta de que a FQ seja responsável pela consciência, atropela o debate sobre as diferenças marcantes entre aspectos da matéria e aqueles associadas à "coisa pensante", resultando em uma extrapolação sem bases suficientes em nosso conhecimento presente.   
Um materialismo travestido

A afirmação de que a FQ é responsável pela consciência é uma forma de materialismo que não é considerada de forma correta por espiritualistas que defendem explicações quânticas da consciência como uma maneira de se libertar do materialismo.

De fato, ao se propor que a mente é quântica não se pode deixar de atribuir aos átomos - que têm reconhecidamente natureza quântica - a causa última de sua manifestação. De outra forma, a física quântica apenas introduz uma lógica diferente, onde a incerteza é incorporada nas relações entre seus elementos (função de onda) que se reduzem, quando analisados de forma isolada, a entidades sem nenhum dos atributos reconhecidos publicamente como característicos da mente. Em suma:  o uso puro e simples da FQ no tratamento aparente do problema de consciência, em que pese o formalismo extravagante que introduz, pouco ou nada contribuirá fundamentalmente para o problema da consciência, a menos que se considere essa uma entidade separada do cérebro por princípio, conforme descrevem algumas interpretações quânticas do famoso "problema da medida".

Assim, embora seja bastante comum que espiritualistas defendam abertamente a FQ e sua relação com a mente, não se pode deixar de notar os grandes obstáculos à implementação prática dessa relação e até mesmo as consequências negativas para o desenvolvimento do dualismo. E, retornando ao assunto inicial desse post, propostas de teorias sobre o problema da mente ou da consciência de novo terão que enfrentar um fenômeno cuja causa não é observável, embora os efeitos o sejam. Mas, continuarão céticos a negar a existência do problema ?

Lista de fenômenos ordinários que são explicados pela Física Quântica

A lista abaixo é uma pequena compilação que está longe de ser completa. Explicar como cada um desses fenômenos ocorre obviamente não caberia no espaço deste blog. O leitor deve entender que as causas desses fenômenos caem na classificação de entidades não observáveis. A FQ explica como essas entidades se relacionam (como elas interagem) e criam as impressões que são, por sua vez, observáveis. Assim, por exemplo, a relação entre a temperatura e a cor de uma estrela (que são observáveis) está ligada à estrutura de distribuição de energia das partículas ou átomos que geram a luz. Para uma referência adicional a essa fenomenologia ver (6). 

Astrofísica
  1. Propriedades de estrelas de nêutrons e anãs-brancas;
  2. O funcionamento das estrelas (cor, brilho, dimensão, evolução e idade etc);
Fenômenos luminosos
  1. Cor dos objetos;
  2. Emissão de luz das chamas;
  3. Mudança de cor de reagentes em reações químicas;
  4. Transparência de materiais;
  5. A curva de luz do corpo negro;
Eletricidade e magnetismo
  1. O comportamento de condutores elétricos, isolantes, semicondutores;
  2. O transistor;
Fenômenos térmicos e fluídicos
  1. A supercondutividade elétrica de materiais a baixas temperaturas;
  2. A superfluidez de materiais a baixas temperaturas;
Química
  1. A razão da matéria ordinária (atômica) ser estável;
  2. A estrutura da tabela periódica;
  3. As ligações químicas;
Energia
  1. Tempo de vida de substâncias radioativas;
  2. Reações nucleares;
  3. Usinas atômicas;
Biologia
  1. A eficiência energética da foto síntese (5)
Referências e notas

Agradeço ao Alexandre Caroli pela referência e citação de (1).

1)  H. Schwartsmann. "Mente quântica". Acesso em Fevereiro de 21016. http://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2016/02/1737578-mente-quantica.shtml


3) As inferências envolvem, inclusive, a busca por fenômenos diversos que comprovariam o efeito das causas admitidas;

3b) É verdade que foram desenvolvidos mecanismos ou equipamentos que permitem observar o que não pode ser acessado diretamente pelos sentidos. Mas, aqui, o leitor deve atentar para a arapuca lógica que dispensa a noção de que o funcionamento desses equipamentos exigem a crença em muitas explicações ou teorias. Portanto, esse estado aumentado de observação, embora utilize os sentidos, não dispensa a crença, o que torna inviável a fundamentação de nosso conhecimento exclusivamente nos sentidos humanos.

4) O próprio Helio Schwartsman cita o texto de Wendt, A. (2015), Quantum mind and social science, Cambridge University Press, como "uma obra séria que trata de ontologia sem recorrer a deuses". Outras referências são:
  • Mindell, A. (2012). Quantum mind: The edge between physics and psychology. Deep Democracy Exchange.
  • Lockwood, M. (1989). Mind, brain and the quantum: The compound'I.'. Basil Blackwell.
  • Penrose, R. (1994). Shadows of the Mind (Vol. 4). Oxford: Oxford University Press.
  • Stapp, H. P. (2004). Mind, matter, and quantum mechanics (pp. 81-118). Springer Berlin Heidelberg.
  • Clayton, P. (2004). Mind and emergence: From quantum to consciousness.
  • Stapp, H. P. (2001). Quantum theory and the role of mind in nature. Foundations of Physics, 31(10), 1465-1499.
  • Goswami, A. (1990). Consciousness in quantum physics and the mind-body problem. Journal of Mind and Behavior.
  • Woolf, N. J., & Hameroff, S. R. (2001). A quantum approach to visual consciousness. Trends in cognitive sciences, 5(11), 472-478.
  • Bass, L. (1975). A quantum mechanical mind-body interaction. Foundations of Physics, 5(1), 159-172.
A principal revista que explora essa abordagem é a Neuroquantology (acesso em fevereiro de 2016). 

5) Quantum mechanics explains efficiency of photosynthesis. Ver http://phys.org/news/2014-01-quantum-mechanics-efficiency-photosynthesis.html (acesso em março de 2016)

6) R. Healey. How Quantum Theory Helps us Explain. Disponível em: http://arxiv.org/ftp/arxiv/papers/1110/1110.6554.pdf. Acesso em Fevereiro de 2016.