8 de março de 2015

A questão da encarnação em diferentes mundos: um novo tipo de matéria?

Fig. 1 Lista de potenciais planetas habitáveis recém descobertos. Referência (1)

"Nós, Espíritos, só podemos responder de acordo 
com o grau de adiantamento em que vos achais. 
Quer dizer que não devemos revelar estas 
coisas a todos, porque nem todos estão em estado 
de compreendê-las e semelhante revelação 
os perturbaria." 
(Resposta à questão 182 em "O Livro dos Espíritos")

A principal obra lançada por Allan Kardec foi "O Livro dos Espíritos" (LE). É nesse livro que encontramos um capítulo inteiro (o Cap. IV) destinado à introdução e detalhamento da "pluralidade de existências", que tem como princípio auxiliar outra pluralidade, a dos "mundos habitados". Não é possível compreender o princípio da reencarnação sem assumir que existem muitos mundos no Universo. Descobertas recentes (ver Fig. 1) - dentro do que permite a capacidade técnica atual - tem revelado um número grande de novos planetas (chamados "exoplanetas"), tornando realidade o que havia sido amplamente afirmado pelos Espíritos no LE.

Neste post propomos um estudo da seção "Encarnação nos diferentes mundos" e chamamos a atenção, em particular, para a resposta da questão #181. Há várias motivações para esse estudo. Um deles é o fato de que evidências tangíveis e públicas da existência de vida extraterrestre ainda não existem. Isso é perturbador porque, dada o tamanho do Universo (e mesmo considerando as dimensões envolvidas), as chances de que apenas a Terra abrigue vida é estatisticamente irrelevante.  Isso está representado no famoso "Paradoxo de Fermi". Outras motivações se encontram no conhecimento do próprio LE: a lei da reencarnação seria universal, o que levanta a questão sobre como se daria esse fenômeno em diferentes mundos, dada a necessidade de matéria para acompanhar o Espírito em sua jornada evolutiva.

Compreensivelmente esse é um assunto difícil, onde é muito fácil fazer especulações e chegar a conclusões erradas na tentativa de se detalhar respostas. Aqui apenas comentamos alguns trechos do Cap. IV do LE e usamos a própria lógica interna e relação entre os princípios para tirar algumas conclusões gerais. É importante o leitor atentar para o caráter avançado das revelações contidas no Cap. IV, já que, na época de Kardec, a existência de mundos habitados era considerada uma questão meramente especulativa.

A seção sobre a encarnação nos diferentes mundos.

Essa seção do LE vai da questão 172 até 188. Da questão 172 até 180, Kardec está interessado em obter mais detalhes sobre como a validade geral da leis das múltiplas existências estendida para os muitos mundos do universo.  É explicado nessa parte que:
  • As diversas existências corporais não ocorrem todas na Terra. Portanto, elas não se processariam todas em um mesmo "globo", haveria possibilidade de migração dos Espíritos entre diferentes mundos;
  • A razão para que as múltiplas existências não ocorram todas em um mesmo mundo;
  • O que o Espírito leva consigo quando faz a migração entre diferentes mundos.
Embora a possibilidade de migração para diferentes mundos seja algo considerado "fantástico" para a maioria das pessoas, é importante entender que não se trata de uma "migração física". Da mesma forma que um Espírito pode ocupar diferentes corpos em várias encarnações, não haveria impedimento para que a encarnação ocorresse em diferentes mundos. É uma conclusão tirada a partir dos princípios assumidos, que são muito simples. Confusões e especulações sobre como se daria essa migração (a questão das distâncias imensas entre os mundos, diferenças de densidade, presença do vácuo interestelar etc) surgem por se tomar um elemento por outro, por se considerar como equivalentes "matéria" e "espírito". 

Em particular, o Espírito não precisa levar do mundo anterior o seu corpo anterior. Para isso, ele faz uso dos "elementos" já presentes no novo mundo. Devemos examinar com atenção a questão # 181. Por sua importância, reproduzimos integralmente a pergunta e a resposta:
181. Os seres que habitam os diferentes mundos tem corpos semelhantes aos nossos?
É fora de dúvida que têm corpos, porque o Espírito precisa estar revestido de matéria para atuar sobre a matéria. Esse envoltório, porém, é mais ou menos material, conforme o grau de pureza que chegaram os Espíritos. É isso o que assinala a diferença entre os mundos que temos de percorrer, porquanto muitas moradas há na casa de nosso Pai, sendo, conseguintemente, de muitos graus essas moradas. Alguns o sabem e desse fato têm consciência na Terra: com outros, no entanto, o mesmo não se dá. Grifo nosso, para versão em original em francês, ver (2).
Em primeiro lugar, invoca-se na resposta a necessidade do envoltório material para propiciar a encarnação. Espírito, perispírito e corpo material são três ingredientes gerais que entram na composição de um "encarnado" com descrito pelos princípios do LE. A pergunta feita por Kardec usa a palavra "corpo". Assim, na questão 181 reproduzida acima, não se está a falar do perispírito. Portanto, a resposta afirma que é possível existir "corpos menos materiais" do que o nosso, e que isso é imposto pela existência de uma escala de progresso (pureza) dos Espíritos. Além disso, a resposta caracteriza a diferença entre os mundos muito mais do que simplesmente pelo estado físico deles, é uma diferença entre "densidades".

Muito além do que comentamos acima, essa resposta leva uma conclusão muito mais importante: a de que a matéria pode ser encontrada em diferentes graus de "densidade" - não se trata aqui da densidade ordinária da física ou da química. Existiria, portanto, um tipo de matéria invisível, não acessível aos nossos sentidos ordinários (e nem a dispositivos ou equipamentos que usam esses sentidos).  

Kardec tenta então obter mais detalhes sobre como seria o estado físico e moral desses diferentes mundos, que é a questão #182. Somos então surpreendidos pela resposta, que já reproduzimos na introdução desse post:
Nós, Espíritos, só podemos responder de acordo com o grau de adiantamento em que vos achais. Quer dizer que não devemos revelar estas coisas a todos, porque nem todos estão em estado de compreendê-las e semelhante revelação os perturbaria. Grifo do autor. Original em francês: (3).
Ora, isso soa como uma maneira polida de se negar uma resposta! O que haveria ainda a ser revelado sobre a existência desse novo "elemento material"? Que a questão 181 não trada do perispírito pode ser apreciada ao se ler as questões  # 186 e # 187:
186. Haverá mundos onde o Espírito, deixando de revestir corpos materiais, só tenha por envoltório o perispírito?
Há e mesmo esse envoltório se torna tão etéreo que para vós é como se não existisse. esse o estado dos Espíritos puros.

187. A substância do perispírito é a mesma em todos os mundos?
Não; é mais ou menos etérea. Passando de um mundo a outros, o Espírito se reveste da matéria própria desse outro, operando-se, porém, essa mudança com a rapidez do relâmpago. Originais em francês: ver (4).
Dentro da lógica interna dos princípios do LE, se um encarnado é formado por três elementos, espírito, perispírito e matéria, então é preciso detalhar como se processa essa mudança em cada um desses elementos ao se migrar de um mundo a outro. Por isso temos questões diferentes para cada um deles. A resposta parte do princípio da existência de uma escala de aperfeiçoamento (pureza) que determina o grau de "densidade" para cada outro componente dele dependente: corpo e perispírito seriam adaptados a esse aperfeiçoamento. Vale a pena ler ainda a subquestão da 186 que afirma não haver "saltos" entre os estágios de aperfeiçoamento, esses se dariam de forma contínua.

Fig. 2 Distribuição de tipos de "matéria" existente no universo conhecido. A "nossa matéria" corresponde apenas a 4% do que seria observável. Cerca de 21% é considerado "matéria invisível. Fonte: http://chandra.harvard.edu/
Um apêndice especulativo

A questão da existência de variedades de matéria que seriam inacessíveis aos nossos sentidos é um assunto fascinante. Isso porque, tal "inacessibilidade" até certo grau pode se manifestar. Não seria possível que alguma propriedade da matéria não mudasse ao se passar de uma "densidade" a outra?

Não há como deixar de fazer aqui um paralelo com as descobertas recentes em cosmologia, sobre a existência da "matéria escura" (dark matter) (5), Fig. 2. Já em 1933 se percebeu que o movimento de estrelas em outras galáxias e da matéria visível era discrepante com a quantidade inferida de matéria a partir desse movimento. Havia algo faltando que não pode ser explicado com base nas leis de Newton. Hoje, sabe-se que existem diversos tipos de "matéria", a nossa é chamada "bariônica", sendo que mais de 95% do que existe no Universo é feito de matéria "não-bariônica" e é totalmente invisível (Fi.g 2). Essa matéria apenas "interage" com nossa matéria ordinária por meio da gravidade: portanto, a matéria invisível tem peso.

O debate atual procura saber qual seria a origem dessa matéria. É crença geral de que é preciso primeiro seguir o caminho da física de partículas. A matéria escura seria um tipo de partícula exótica ainda não descoberta, que "preencheria" o espaço e seria responsável por essa gravidade excedente. Entretanto, todos os esforços para se achar tal partícula falharam absolutamente em décadas de pesquisa. Em particular o experimento LUX (6) montou um dos mais sensíveis dispositivos para se detectar partículas desse tipo e não deu resultado algum. Isso abre caminho para que outras trilhas teóricas sejam percorridas, como a da existência de outras dimensões no Universo. 

Há considerável grau de especulação ao se tentar correlacionar esses temas de pesquisa com a revelação de outros tipos de matéria como feita na questão 181 do LE. Seria a "matéria escura" a ponta de uma imensa cadeia de descobertas de outros tipos de matéria que compõem os diferentes mundos "invisíveis" de que falam os Espíritos? Não sabemos. É certo, porém, que um caminho já foi aberto.

Posts relacionados
Referências

181. Les êtres qui habitent les différents mondes ont-ils des corps semblables aux nôtres ?
Sans doute ils ont des corps, parce qu'il faut bien que l'Esprit soit revêtu de matière pour agir sur la matière ; mais cette enveloppe est plus ou moins matérielle selon le degré de pureté où sont arrivés les Esprits, et c'est ce qui fait la différence des mondes que nous devons parcourir ; car il y a plusieurs demeures chez notre Père et pour lors plusieurs degrés. Les uns le savent et en ont conscience sur cette terre, et d'autres ne sont nullement de même.
(3) Ver: http://associationspiritualistedecambrai.asso-web.com/uploaded/PDF/le-livre-des-esprits.pdf
182. Pouvons-nous connaître exactement l'état physique et moral des différents mondes ?
Nous, Esprits, nous ne pouvons répondre que suivant le degré dans lequel vous êtes ; c'est-à-dire que nous ne devons pas révéler ces choses à tous, parce que tous ne sont pas en état de les comprendre et cela les troublerait.
186. Y a-t-il des mondes où l'Esprit, cessant d'habiter un corps matériel, n'a plus pourenveloppe que le périsprit ?
Oui, et cette enveloppe même devient tellement éthérée, que pour vous c'est comme si ellen'existait pas ; c'est alors l'état des purs Esprits. 
187. La substance du périsprit est-elle la même dans tous les globes ?
Non ; elle est plus ou moins éthérée. En passant d'un monde à l'autre, l'Esprit se revêt de la matière propre de chacun ; c'est d'aussi peu de durée que l'éclair.
(5) Interessante o uso do termo "escura" para se designar esse tipo novo de matéria. De fato, "escuro" pode levar a se imaginar essa matéria como algo opaco ou que bloqueie a vista do que está além dela. Mas, isso não é verdade: ela é de fato "invisível".

(6) http://lux.brown.edu/LUX_dark_matter/Experiment.html


17 de fevereiro de 2015

Paisagem de Marte (sobre a visita a Marte em "Cartas de uma Morta")

Fig. 1 Vista da planície Husband (cratera Gusev), um dos sítios de exploração do robô "Spirit" da NASA. Ver também uma imagem panorâmica completa dessa região.
"Não vi montanhas, sendo notáveis as planícies imensas..."
"As águas são muito raras. As chuvas quase que se não verificam, 
mostrando-se o céu geralmente sem nuvens."
(Maria J. de Deus, em "Cartas de uma Morta", psicografia de F. C. Xavier)

Marte é, sem dúvida, o planeta que mais atraiu a curiosidade humana. Por ter algumas características físicas semelhantes à Terra, as primeiras observações telescópicas desse planeta criaram a expectativa de que ele, de fato, seria habitado. No ano de 1935, uma série de mensagens mediúnicas - reunidas na forma de um livro - chamou a atenção na forma de relatos de uma visita feita por um Espírito desencarnado da Terra aquele mundo distante. Na época, é importante que se ressalte, o conhecimento científico (2) acreditava que Marte poderia ser habitado e que sua superfície seria riscada por uma rede de canais, talvez criados por algum tipo de civilização extraterrestre que habitasse o planeta. Interpretava-se as diferenças de albedo da superfície marciana como oriundas da presença de água no planeta ou mudanças de tons na vegetação, ressaltando-se a presença de calotas polares que mostravam variações típicas de mudanças de estação. 

O texto atribuído à Maria João de Deus "Paisagem de Marte", do livro "Cartas de uma Morta" (3), tem uma seção que descreve a paisagem marciana como observada pelo Espírito e interpretada pela mediunidade de Chico Xavier. É importante ressaltar que o livro quase que inteiramente traz observações feitas por um Espírito desencarnado e, portanto, não tratam da contraparte "corpórea" de seu ambiente. Para quem lê o livro com conhecimento espírita, está bastante claro que as descrições são desse ambiente espiritual imediato. Além disso, essas descrições não são as de um geógrafo: trata-se de uma mente "não acadêmica", tentando relatar o que viu, sem os rigores esperados de um cientista. Se no desenvolvimento das ciências comuns dificilmente levamos em consideração observações de "pessoas comuns" com relação à fatos científicos, o estado de emancipação que goza a alma desencarnada não faz dela um cientista também com relação a esses fatos e, menos ainda, aqueles que nos são desconhecidos. Temos aqui o primeiro obstáculo na tentativa de se utilizar os Espíritos como testemunhas para geração de conhecimento científico relacionado às ciências materiais.

Por falta dessa compreensão mais dilatada, muito se tem falado sobre a adequação desse texto ao conhecimento moderno, com base na visita de recentes sondas espacias que foram até aquele planeta. Em particular, mentes céticas e sem o conhecimento espírita interpretam o texto ao "pé da letra" e imputam um caráter de fantasia a ele (4). Ignorando o obstáculo que descrevemos anteriormente, admitem que mensagens espíritas devem conter revelações científicas em pé de igualdade com os rigores dos desenvolvimentos e metodologias do campo científico da matéria. Um exemplo disso pode ser lido no texto (5), onde seu autor declara: 
"As sondas não mostraram nada de oceanos, canalização, vegetação e muito menos homens alados em Marte. Por ironia, lá descobriram, porém as maiores montanhas do Sistema Solar. Ninguém esperava por isso no século XIX, porque se supunha que Marte era um planeta “velho”, desgastado pela erosão."
Além disso, ao se comparar as descrições do Espírito em (3) com o conhecimento material da questão, temos outro problema. Apenas por paralelos é que se pode tentar inferir o que um Espírito desencarnado percebe de sua vizinhança à descrição dessa mesma vizinhança por um encarnado. Ora, no estado de liberdade, a sensibilidade e percepção do Espírito é muito maior (5b) do que a de um encarnado. Portanto, rigorosamente, não se pode tomar as impressões de um Espírito como equivalentes à sua sensibilidade quando encarnado. Temos aqui assim um segundo obstáculo para o uso das mensagens espíritas como representando impressões sensíveis equivalentes a de um encarnado. Em termos simples: se um Espírito e um encarnado fosse colocados em um mesmo ambiente, eles descreveriam a cena e os fenômenos nela de forma completamente diferente e, portanto, dificilmente poderíamos tomar as duas descrições como equivalentes (6). 

Nosso objetivo aqui é fazer uma análise mais adequada do texto em (3) com referência ao que era conhecido no século XIX (o texto, porém, é do ano 1935) e que contrasta com essas análises céticas apressadas que pregam a inverdade dos textos mediúnicos. Para isso, utilizaremos alguns trechos de (3) e referências da rede, tanto da época como atuais, para demonstrar como é possível dizer que (3) contém, de fato, mais pontos de revelação e acordo do que contradições. Isso será feito levando-se em consideração esses problemas de tradução e sensibilidade que podem ser encontrados nas mensagens espíritas.

Um comparação cuidadosa
(Trecho 1) Percebi, perfeitamente, a existência de uma atmosfera parecida com a da Terra, mas  o ar, na sua composição, afigurava-se-me muitíssimo mais leve. Assegurou-me então o Mestre, que me acompanhava, que a densidade em Marte é sobremaneira mais leve, tornando-se a atmosfera muito rarefeita. (3, p. 127)
Fig. 2 Imagem da "Mars Global Surveyor" (2005)
mostrando poucas nuvens em Marte. 

Usamos aqui apenas os trechos em (3) que parecem descrever o ambiente físico (a "aerografia") de Marte. O exemplo do texto acima é desse tipo, embora a percepção da atmosfera que um Espírito possa ter seja bastante diferente daquela de um encarnado. Apenas por um paralelo - comparando-se a impressão de um Espírito da atmosfera terrestre com a de Marte - é que poderíamos sugerir que se trata de uma descrição da densidade atmosférica daquele planeta. Guardando-se essa cautela, concluímos que a descrição apresentada é correta. A diferença é imensa em relação a um encarnado: na Terra podemos respirar perfeitamente, enquanto que em Marte não.  O fato de a atmosfera de Marte ser menos densa do que a da Terra era conhecida desde o século XIX (6b) porque Marte é um planeta menor do que a Terra, tendo, portanto, uma gravidade menor, que não consegue manter sua atmosfera na mesma densidade que a terrestre.

Com relação à questão da água e dos canais, é relevante este trecho em (3, p. 128):
(Trecho 2) Vi oceanos apesar da água se me afigurar menos densa e esses mares muito pouco profundos. Há ali um sistema de canalizações, mas não por obra de engenharia de seus habitantes, e sim por uma determinação natural da topografia do planeta que põe em comunicação contínua todos os mares. 
Esse trecho em particular foi usado em (5) para desqualificar a comunicação. Acontece que, ainda na década de 1930, a questão dos canais em Marte era bastante conhecida, estando a opinião acadêmica não decidida com relação a sua natureza (2) e existência. A maior parte das opiniões era favorável à existência dos canais, que se apresentavam regularmente nas oposições de Marte e que podiam ser observados (conforme mostramos em (2))  sob condições excepcionais de observação. O astrônomo Carl Sagan (1934-1996) em seu livro "Cosmos" (1980) acreditava que ainda existia um segredo relacionado aos canais marcianos, mesmo com as visitas não tripuladas aquele planeta. A comunicação, entretanto, caracteriza os canais como uma "determinação natural da topografia", o que deve ser comparado a diversas imagens recentes (Fig. 3) mostrando a existência de rios antigos ou canalizações em Marte. Ressaltamos que tais estruturas eram impossíveis de serem vistas em 1935 por qualquer tipo de telescópio. É importante ressaltar: por suas dimensões, esses leitos de rios não correspondem aos supostos canais marcianos, popularmente conhecidos até a década de 1960, quando as missões espaciais revelaram uma nova "aerografia".

Fig. 3 Imagens recentes (ver referências 7a a 7c) mostrando a presença do que parecem ser leitos de antigos rios em Marte. Essas estruturas eram inobserváveis com telescópios em 1935 e não correspondem aos supostos canais marcianos popularmente conhecidos na época.

Mas não há água em Marte...

Não obstante a visão de oceanos em Marte, o seguinte trecho traz uma observação diferente (3, p. 128):
(Trecho 3) As águas são muito raras. As chuvas quase que se não verificam, mostrando-se o céu geralmente sem nuvens. Afirmou-me o protetor que  grande parte das águas desse planeta desapareceram nas infiltrações do solo, combinando-se com elementos químicos das rochas, excluindo-se da circulação ordinária do orbe. (grifo nosso)
A que se deve a diferença entre o Trecho 2 e 3? Há várias hipóteses possíveis. Uma delas nos leva ao terceiro problema relacionado à interpretação literal de textos mediúnicos: a influência do médium. É possível que o Trecho 2 tenha sofrido com essa influência, contrastando com a afirmação da inexistência de água em Marte. Outra possibilidade é imaginar que o Espírito interpretou as regiões de menor albedo da superfície do planeta com sendo oceanos.  Isso era, de fato, o que  acreditavam alguns astrônomos até meados da década de 1960, quando as primeiras sondas espaciais mostraram que as regiões escuras não eram oceanos. De qualquer forma, lembrando das ressalvas em relação ao segundo problema com as comunicações mediúnicas, é possível que a água descrita no Trecho 2 não se trate de água no sentido material. Considerando a afirmativa do Trecho 3, a conclusão é que, em 1935, tínhamos uma revelação que afirmava a inexistência de água na superfície de Marte, fato que não estava de acordo com o que se observava na época - lembrando que a presença de calotas polares observáveis ao telescópio indicava que o gelo poderia se converter em vapor d'água ou água líquida. 

Menos conhecida ainda era a possibilidade de que água líquida teria fluido em Marte, mas desaparecido no solo. De fato, apenas muito recentemente é que imagens de alta resolução (como as da Fig. 3) foram obtidas da superfície marciana, indicando que, há muito tempo atrás, água líquida existia na superfície de Marte. Portanto, a afirmação grifada no Trecho 3 é algo verdadeiramente revelador.  Dado o tamanho de Marte, sua gravidade e as condições físicas necessárias para que água líquida exista em sua superfície (pressão, densidade e temperatura), até hoje há quem acredite que água nunca existiu em Marte. Não obstante a pequenez desse planeta, cientistas recentemente têm revisto suas teorias. Por exemplo, em (7c), que data do ano de 2013, podemos ler:
O time da Mars Express da ESA diz que esse rio fluiu com muita água há cerca de 3,5 a 1,8 bilhões de anos, durante o período Hesperiano. Depois disso, a era Amazoniana se iniciou, fazendo com que o Vale Reull fosse invadido por uma geleira. Essa geleira moldou o vale onde o rio estava, empurrando dejetos e gelo e criando os lados bem definidos com se pode ver nessas imagens.
A imagem referenciada é a da Fig. 3(7c). Portanto, M. J. de Deus parece ter revelado em 1935 algo que apenas recentemente (8) foi conhecido. Ressaltamos adicionalmente que, na época datada para a existência de oceanos em Marte (há aproximadamente 3 bilhões de anos), a Terra era um planeta inóspito e sem vida. Com o passar do tempo, a água que existia se infiltrou no solo e se combinou com os materiais da superfície, dando ao planeta a aparência avermelhada (presença de ferro nas rochas). Essa descrição, entretanto, só foi conhecida pelos meios científicos depois que os primeiros robôs pousaram na superfície de Marte. Em (9), por exemplo, podemos ler:
'Essa é uma evidência poderosa de que a água interagiu com rochas e mudou a química e a mineralogia de forma dramática', afirma Steve Squyres da Universidade de Cornell ao jornal New York Times. Ele é lider técnico de um time científico da missão Oportunity. Essa é a evidência mais forte encontrada de um ambiente marciano passado que pôde ter abrigado vida.
Não há montanhas em Marte...

Se um alienígena fosse trazido à Terra e deixado em alguma região do deserto do Saara,  acreditaria que nosso planeta não tem montanhas. Isso é o que provavelmente aconteceu ao Espírito de M. J. de Deus em (3), conforme se deduz desse outro trecho contendo uma "observação geográfica" (3, p. 128)
(Trecho 4) Não vi montanhas, sendo notáveis as planícies imensas onde os felizes habitantes desse orbe desempenham suas atividades consuetudinárias.
O Espírito apenas afirma não ter visto montanhas em Marte. De fato a imagem da Fig. 1, capturada pelo robô "Spirit" da NASA confirma essa visão. Descobertas recentes descrevem Marte essencialmente como um planeta com poucas montanhas. Do ponto de vista geofísico, montanhas são formadas por obra de forças tectônicas ou por vulcanismo, não sendo quaisquer elevações de terreno consideradas como montanhas. Em Marte, a maior parte das montanhas (mons) tem origem vulcânica, sendo o terreno descrito como majoritariamente plano (se comparado à Terra). Por exemplo, Vastitas Borealis é o nome dado a uma grande planície que cobre quase que metade de Marte e que se acredita ter sido leito raso de um antigo oceano (9). Portanto, não é difícil para alguém deixado aleatoriamente em algum ponto da superfície de Marte não registrar a presença dessas estruturas geológicas.

Conclusões

O espírito de prevenção, má fé ou má vontade pode interpretar literalmente qualquer texto. No caso das mensagens espíritas - quando não destinadas a notas sobre a moral e a ética - podem sofrer de pelo menos três problemas que impedem sua interpretação literal. Além do problema de interferência mediúnica, o pouco conhecimento especializado do comunicante aliado a sua alta sensibilidade podem resultar em descrições que apenas em alguns trechos são comparáveis ao que esperaríamos de observações científicas das ciências da matéria.

Vamos finalmente relembrar que as ciências da matéria se escoram em teorias para realizar a descrição dos fenômenos. Essas teorias tem um vocabulário próprio, com semântica altamente específica. Apenas aqueles que detêm conhecimento dessa semântica podem descrever fenômenos físicos aproveitáveis para quem faz ciência da matéria. Seria muito esperar que um comunicante espiritual, desprovido desse vocabulário pudesse trazer descrições que competissem com nossos maiores cientistas. Mesmo assim, algumas conclusões que fizemos parecem indicar que algo foi revelado no que diz respeito a aspectos puramente materiais de Marte em (3).

Outras considerações tecidas pelo cético da referência (5) também merecem mais comentários, o que faremos oportunamente em um próximo artigo.

Agradecimento

Agradeço ao Chrystiann Lavarini pela indicação da ref. (5).

Referências


(2) Artigos científicos da época podem ser acessados na rede hoje em dia. Alguns deles foram referenciados neste post: "O que aconteceu aos canais de marte?" em astronomiapratica.blogspot.com.

(3) F. C. Xavier. "Cartas de uma morta", 4a Edição. FEB.

(4) Para um materialista ou cético, obviamente não existe verdade fora do que ele crê.

(5) Antônio L. M. C. Costa (2008). "Errar é científico, insistir no erro é esotérico". Carta Capital. Ver: http://www.cartacapital.com.br/cultura/errar-e-cientifico-insistir-no-erro-e-esoterico

(5b) A. Kardec, "A Gênese", Cap. 14, II - Explicação de alguns fenômenos considerados sobrenaturais, visão espiritual ou psíquica, dupla vista, sonambulismo, sonhos, parágrafo 23.

(6) Um exemplo trivial disso são as inúmeras descrições de Espíritos de ambientes e cenas onde encarnados nada conseguem ver além de escuridão.

(6b) P. Lowell (1894). "Mars: atmosphere". Popular Astronomy. Vol. 2, pp. 154-160. http://articles.adsabs.harvard.edu/full/1894PA......2..154L

(7a) http://www.dailymail.co.uk/sciencetech/article-2263983/Rivers-red-planet-Astonishing-new-pictures-reveal-1500km-river-ran-Mars.html (acesso, Fevereiro 2015)

(7b) http://www.lpi.usra.edu/education/resources/s_system/mappingMars.shtml (acesso, Fevereiro 2015)

(7c) http://gizmodo.com/5977058/scientists-discover-spectacular-river-on-mars (acesso, Fevereiro 2015)

(7d) http://science.nasa.gov/science-news/science-at-nasa/2001/ast05jan_1/ (acesso, Fevereiro 2015)

(8) É importante dizer que outras marcas de movimentação de fluidos em Marte são atribuídas à movimentação de lava. Evidências recentes, entretanto, mostram que Marte foi coberto por um Oceano. Veja: http://en.wikipedia.org/wiki/Mars_ocean_hypothesis

(9) Ver: http://theconversation.com/ageing-rover-finds-evidence-for-an-early-ocean-on-mars-15057