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1 de junho de 2017

Crenças céticas XXVII: A Navalha de Ockham (e comentários sobre super-psi)

Não é comum, nos embates entre crentes e céticos, que conceitos ou princípios epistemológicos sejam aplicados indiscriminadamente, muitas vezes em apoio de argumentações mal feitas ou inválidas. Um desses princípios - de que se tem abusado bastante - é a famosa "Navalha de Occam" (ou Ockham, em inglês, Occam's razor). A apresentação feita na Wikipedia (1) é suficiente para introduzir o "princípio da parsimônia", como também chamada essa regra, que pode ser usada erroneamente  em defesas pouco válidas de opinião. Há várias maneiras de se enunciar esse princípio:
Se em tudo o mais forem idênticas as várias explicações de um fenômeno, a mais simples é a melhor (1).
Entidades não devem ser multiplicadas sem necessidade (2).
Não se deve admitir mais causas para as coisas naturais do que aquelas que são tanto verdadeiras como suficientes para explicar as aparências. Portanto, aos mesmos efeitos naturais devemos, tanto quanto possível, associar as mesmas causas. (I. Newton, 3)
Colocado dessa forma, as chances de sucesso maior desse princípio pode acontecer com fatos para os quais nenhum paradigma bem estabelecido exista e estamos diante de decisão quanto a melhor explicação inicial. Se um tal paradigma existir, a aplicação da navalha é muito limitada; ela jamais poderá ser invocada para desqualificar o paradigma, que adquire status de verdade até que seja sobrepujado por teoria mais completa.

O princípio pode ser usado diante de embates entre teorias rivais que resultam nas mesmas "evidências experimentais", sem nenhuma garantia que leve à teoria "correta". De fato, há casos que mostram que isso não acontece. Podemos dizer que esse princípio tem alguma chance orientadora, desde que as causas subjacentes sejam realmente simples, o que dificilmente ocorre nos fenômenos naturais ou desconhecidos do homem.

Uma das grandes críticas à aplicação da navalha é o conceito de "simplicidade". Aquilo que nos parece "simples" depende de nossa visão do mundo, daquilo que acreditamos, de onde estamos etc. Portanto, sua aplicação está condicionada a certo preconceito por parte do experimentador. Com certeza, nas ocorrências ordinárias, do dia-a-dia, a navalha não falhará porque as causas subjacentes para os fenômenos são simples, banais ou amplamente conhecidas. Assim, se chego em minha casa e encontro a porta arrombada, com móveis revirados etc, dificilmente concluo que isso foi obra do acaso, de uma "tempestade" e não que, de fato, minha residência tenha sido furtada, que um ou mais indivíduos entraram nela etc.

Mas, o mundo da ocorrências banais dos homens não guarda semelhança com a dos fenômenos da natureza. A Fig. 1 contém um exemplo exagerado de má aplicação do princípio de Ockham. É uma comparação da tabela periódica moderna com a teoria dos quatro elementos, que estaria certa, segundo Occam, por ser a explicação mais simples. O erro aqui está em contrapor visões completamente diferentes da natureza, demonstrando que a noção de simplicidade depende dessa visão ou das circunstâncias que cercam o fenômeno:
Ao ouvir o trotar de cascos, pense em cavalos e não em zebras, a menos que esteja na África, quando então, certamente, trata-se de zebras. 
Fig. 1 Exemplo de aplicação incorreta da navalha de Occam: contrapor a tabela periódica como uma explicação para a origem das propriedades da matéria e a teoria antiga dos quatro elementos. O mais simples nem sempre é o "verdadeiro", mas, também, a noção de simplicidade depende da época e da visão de mundo que se tem.
Ernst Mach formulou uma versão diferente da navalha de Occam pelo seu "princípio de economia":
Cientistas devem usar os meios mais simples para se chegar aos resultados e excluir tudo que não seja percebido pelos sentidos. (2)
A exclusão daquilo que não é "percebido pelos sentidos" é um desastre nas ciências naturais, já que a maior parte das causas dos fenômenos é inacessível aos sentidos humanos comuns. Notamos, porém, que a navalha de Occam nada diz sobre a questão da "percepção pelos sentidos", de forma que essa reformulação de Mach nada tem a ver com o princípio original.

Da aplicação da navalha de Occam aos fenômenos espíritas: a hipótese de super-psi.

A navalha de Occam tem sido uma rota de desqualificação, por parte de céticos da fenomenologia chamada "paranormal" ou dos fenômenos espíritas. Aplicada de forma exagerada, torna-se uma ferramenta de negação sistemática dos fenômenos, que se reduzem a "alucinações", falhas de interpretações ou percepção, exageros psicológicos etc, tudo em nome da simplicidade do mundo.

Como pretensão teórica, busca-se refutar as "entidades desnecessárias", cumprindo aparentemente a regra de Ockham de simplicidade. Trata-se de flagrante desvio do princípio porque reduz uma ocorrência extraordinária a um fenômeno banal. Mas, "afirmações extraordinárias não exigem evidências extraordinárias ?" (4). À parte da questionabilidade desse aforismo - que é uma maneira diferente de se afirmar a navalha de Occam - o núcleo de negação está na própria refutação das evidências que já passaram do ponto e se tornam irrefutáveis. Aqui, o papel da navalha é dar um ar de "sofisticação" a uma reafirmação de uma crença que, em suma, trata esses fenômenos como produtos de uma gigantesca fraude consciente ou não. Não há dúvidas da aplicação incorreta desse princípio aqui, de forma que não há razão para se preocupar com ela.

Mas, há uma famosa controvérsia, entre "Super-Psi" versus "sobrevivência" que forneça um exemplo talvez de aplicação da navalha.  Algumas referências sobre esse embate são (5, 6, 7, 8). Em termos mais simples, trata-se de comparar a explicação espírita (sobrevivência após a morte, existência dos desencarnados como fonte de informação mediúnica etc) com algumas teses que refutam a sobrevivência pela admissão de faculdades quase oniscientes à mente humana (a chamada "tese super-psi"). "Super-psi" é uma causa teoricamente admitida como disseminada em alguns humanos, e que seria responsável por todos os fenômenos chamados "paranormais", sem a necessidade de postular a sobrevivência. De fato, "super-psi" é a única alternativa para os que aceitam a realidade dos fenômenos extraordinários do Espiritismo, sem, entretanto, aceitar sua real causa, o espírito.

Fig. 2 Respostas: "Simples, mas erradas; complexas, mas corretas".

Para os leitores que ainda não se inteiraram completamente do debate, oferecemos um resumo. As referências (6) e (8) são favoráveis a "hipótese super-psi" (HSP) e contrárias à "hipótese da sobrevivência" (HSV), como a chamam. Avançando na apresentação desse refinado ceticismo, adiantamos alguns pontos (ver 6) sobre HSP:
  1. As evidências fornecidas pelos chamados "fenômenos anômalos" são aceitas tais quais são ou, ao menos, acredita-se que uma base de fenômenos verídicos pode ser levantada em torno da qual se dá a disputa pela melhor explicação. O contenda de HSP X HSV não se dá mais em um ambiente cético em relação aos fenômenos, mas em relação a explicação representada por HSV;
  2. Muitos desqualificam a ideia da sobrevivência por considerá-la ininteligível e, portanto, estar além de uma solução científica; 
  3. Como não existe um mecanismo detalhado que explique como se dá a manifestação mediúnica, assume-se que não existiriam limites para a manifestação de "super-psi". Dessa forma, essa faculdade pode produzir qualquer tipo de fenômeno, em qualquer momento, lugar ou intensidade. Essa é a hipótese  mais importante e mais forte feita pelos proponentes de HSP;
  4. A operação de HSP não exige esforço por parte de seu agente, ela sequer exige intenção: é a hipótese da varinha mágica de Braude (6). Essa assunção é importante porque os fenômenos psíquicos são reconhecidamente incontroláveis;
  5. Como consequência disso, não existem "indicadores fenomenológicos" que permitiriam distinguir HSP de outra causa meramente fortuita, isto é, que HSP pode ocorrer de forma generalizada, sem que saibamos disso. É necessário admitir isso, pois, se não fosse assim, seria possível ostensivamente separá-la de ocorrências com causas comuns;
  6. HSV deve ser vista com reservas, porque ela implicitamente requer uma identificação forte entre a personalidade que viveu e aquela que se comunica. Seria importante "provar"  isso antes de se desprezar uma forma mais fraca de sobrevivência, como aquela que diz que a personalidade sobrevive "dissipando-se em um grande todo" ou existindo em uma realidade completamente separada da existência ordinária: é como acreditam alguns cristão com a ideia de céu e inferno. Portanto, não é contra qualquer ideia de sobrevivência que se colocam os adeptos da HSP, mas contra aquela que implica em um fenomenologia especial como produto da sobrevivência e da manifestação da personalidade desencarnada (em suma, é contra o Espiritualismo e o Espiritismo que HSP é proposta);
  7. A operação da faculdade de super-psi é admitida tanto quando o fenômeno manifesta informação que pode ser transmitida entre pessoas (chamado "informação sobre o quê") como com manifestação de habilidades, tendências, gostos típicas do personalidade desencarnada -  a chamada "informação sobre como". Aqui, Braude (6) tece várias considerações sobre isso e busca rejeitar o princípio de que "aquilo que não pode ser comunicado de forma normal, não pode comunicado de forma paranormal". Sua principal explicação para não limitar HSP em "comunicar habilidades" usa o próprio fenômeno paranormal e diz que nossas capacidades (e obstáculos) normais de aprendizado são "suspensas" no estado alterado, como, por exemplo, durante uma hipnose (ver p. 139 em 6). Assim, de novo, HSP seria capaz de fazer qualquer coisa;
  8. Com base em algumas falsas "identificações" de desencarnados em sessões conduzidas por pesquisadores, Braude se pergunta como HSV pode ajudar a entender como o comportamento exibido por algumas personalidades durante o transe se mostra tão diverso daquela historicamente conhecida. Para os proponentes de HSP, isso levanta dúvidas quanto à validade da sobrevivência, já que uma identificação completa não é possível em alguns casos. Dessa forma, HSP não estaria descartada como explicação;
Como podemos resolver a questão? No entendimento dos proponentes de HSP, a sobrevivência é admitida de uma forma muito específica. O que sobrevive necessariamente deve se manifestar como essa ou aquela personalidade pregressa, considerando os registros históricos disponíveis tais quais são. Assim, Braude em (6) rejeita alguns fenômenos notórios de manifestação de desencarnado com base na falta de evidências históricas. Ora, a maioria das ocorrências e personalidades históricas jamais deixaram quaisquer evidências (considere as personalidades históricas de Jesus, Buda, Moisés  etc), o que não é prova da inexistência dessas mesmas personalidades.

A incontrolabilidade e independência dos fenômenos psíquicos se deve à inteligência da fonte. Isso segue de forma natural de HSV, mas é uma hipótese a ser admitida forçosamente e sem justificativas no  cerne de HSP como diz a assunção 4 para se adequar a incontrolabilidade dos fenômenos.

A suspensão dos bloqueios normais de aprendizado das "habilidades como", que é feita na assunção 7 acima, certamente colide com a hipótese de que HSP não precisaria de condições "especiais" (transe etc) para se manifestar. Não há explicação sobre isso.

Ademais, uma leitura  atenda das explicações fornecidas em apoio a HSP mostra que seus proponentes misturam fenômenos que têm origem diferente: uma coisa é a manifestação mediúnica e outra as lembranças de vidas passadas. Em (6) as duas são supostamente explicáveis via HSP, porém, as circunstâncias com que se manifestam (memória de vida passada em crianças X xenoglossia com transe etc) sugerem fortemente que se tratam de fatos com causas diferentes. Isso acontece porque supõem-se que HSP não tem limites de ação, logo, ela pode dar origem a qualquer comportamento "paranormal".

Com relação a problemas de identificação, toda a dificuldade está relacionada com a ideia que se faz sobre como os desencarnados se manifestam: supõe-se sempre que - obrigatoriamente - devam se comportar exatamente como eram antes de sua morte. Como Kardec argumentou, não existem garantias que determinado nome que assine uma mensagem seja exatamente daquela personalidade a qual ele se refira. Aqui, certamente, os detalhes e mecanismos específicos que regem o fenômeno mediúnico têm papel fundamental e a explicação correta está nas mãos daqueles que fizerem melhor ideia sobre esses mecanismos.

Seria possível invocar a navalha de Occam e resolver a questão? Certamente, nesse nível superficial de abordagem, HSP seria a explicação "mais simples", pelo menos no número de causas (ela só postula a existência de "super-psi"), mas à custa de quê? De se imaginar a mente humana produzindo fenômenos aleatoriamente, em substituição a causas naturais, como uma faculdade praticamente onisciente? De se desprezar as circunstâncias e peculiaridades das manifestações, já que não conhecemos os detalhes do fenômeno e, portanto, tudo vale? Não é cômodo admitir HSP como fenomenologicamente indistinguível de uma causa natural para um fenômeno físico banal como diz a assunção 3?  Será mesmo que não existem os tais "indicadores fenomenológicos" de que fale a hipótese 5? Seria mesmo concebível que habilidades e capacidades possam ser "comunicadas" como admite 7? Diante de todas essas hipóteses "ad hoc", é impossível querer aplicar a navalha.

Somos da opinião que é preciso sondar com muito cuidado os fatos e os dados antes de se aceitar teorias baratas como HSP. No nível de esforço presentemente gasto na investigação dos fatos psíquicos, HSP se apresenta como uma alternativa que "salva as aparências" para aqueles que rejeitam a sobrevivência completamente, mas tem o mérito de aceitar os fenômenos. Ela existe graças a essa falta de esforço e por causa da raridade de alguns fatos psíquicos que não receberam a devida atenção ou adequado tratamento, mas que podem hoje ser "explicados" com base nas escarças descrições remanescentes. Nas palavras de A. Conan Doyle:
É um erro capital teorizar antes de se ter dados. Inconscientemente, começamos a torcer os fatos para se acomodar a teorias e não as teorias aos fatos.
Referências

(1) https://pt.wikipedia.org/wiki/Navalha_de_Occam
(2) https://en.wikipedia.org/wiki/Occam%27s_razor
(3) Newton, Isaac (2011) [1726]. "Philosophiæ Naturalis Principia Mathematica" (3a edição). Londres: Henry Pemberton. ISBN 978-1-60386-435-0.
(4) Sobre isso ver nosso post: Crenças Céticas XIV.
(5) H. Hart. "Survival versus Super psi". http://www.survivalafterdeath.info/articles/hart/superpsi.htm
(6) S. Braude (1992). Survival or Super-psi? Journal of Scientific Exploration, 6(2), pp. 127-144. http://www.sgha.net/library/jse_06_2_braude.pdf
(7) J. Beischel e A. J. Rock. Addressing the survival versus psi debate through process-focused mediumship research. http://windbridge.org/papers/JP73BeischelRock2009.pdf
(8) M. Sudduth (2009). Super-Psi and the survivalist interpretation of mediumship. Journal of Scientific Exploration, 23(2), pp. 167-193. http://michaelsudduth.com/wp-content/uploads/2016/01/SurvivalMediumship.pdf

30 de junho de 2014

Mais sobre super-psi.

Conforme referência que nos foi enviada por Chrystian Lavarini (1), o artigo de M. Sudduth "Super-Psi and the Survivalist Interpretation of Mediumship" (2) merece alguns comentários na esteira do que publicamos aqui recentemente (3) sobre a teoria super-psi. À princípio, esse artigo de Sudduth se apresenta como uma defesa bem elaborada da teoria de super-psi, que se coloca como uma alternativa não materialista à teoria espírita.

Para facilitar a discussão que segue, traduzimos o resumo do artigo de Sudduth:
De acordo com a interpretação da sobrevivência da mediunidade, a existência de individualidades desencarnadas é a melhor explicação para os dados associados a mediunidade física e intelectual. Outros - defensores do que é frequentemente chamado de 'hipótese super-psi' - garantem que os dados da mediunidade podem ser explicados, ao menos igualmente bem, em termos de uma agente vivo (ESP ou psicocinese). Muitos defensores da interpretação da sobrevivência tentam esvaziar as virtudes explicativas da hipótese super-psi argumentando que ela é infalsificável e não tem apoio independente nas evidências. Minha linha argumentativa central neste artigo é que as críticas dos adeptos da sobrevivência à hipótese super-psi são auto-destrutivas à defesa da sobrevivência a partir da mediunidade. Para mostrar isso, primeiro argumento em detalhes que a interpretação da sobrevivência da mediunidade está comprometida de tal forma com psi que ela é indistinguível da hipótese super-psi. A partir dessa perspectiva, pode-se mostrar que qualquer tentativa de se negar virtudes explicativas à hipótese super-psi com base em certo grau de psi que isso exige também acaba por enfraquecer o próprio argumento da sobrevivência.
O conceito de psi

Para compreender a linha argumentativa de Sudduth é importante também conhecer o significado de 'psi' como conceito frequentemente usado  na parapsicologia. 'Psi' seria um tipo de habilidade da mente humana que daria a ela capacidade para produzir diversos fenômenos que, na linguagem típica da parapsicológica, se confundem com os fenômenos mediúnicos - tanto de natura 'física' como 'intelectual' (ou mental). Psi seria, de fato, a fonte desses fenômenos (agentes vivos), enquanto que a informação deles produzida teria como origem a mente de outras pessoas. 

Esvaziada de uma teoria (4), a parapsicologia  tenta construir uma linha de explicação para os fenômenos psíquicos que, em sua maior parte, tem horror à qualquer 'hipótese' externa considerada 'anti-científica' (5). Por causa disso, a parapsicologia se esforçou em construir uma linha meramente empírica de argumentação, onde alguns fenômenos são elevados à categoria de princípios fundamentais. Haveria assim 'fenômenos básicos' (6) como blocos unitários em termos dos quais a explicação de outros fenômenos anômalos seria feita. A consequência disso é que as explicações parapsicológicas soam como tautologias para muitos fenômenos (ver tautologia).  

É preciso compreender que as coisas ficaram assim por causa da própria dificuldade em se justificar psi (7) com base na física conhecida de um lado, o horror a hipóteses adicionais e, de outro, ao ambiente francamente hostil aos fenômenos psíquicos do mainstream acadêmico. 

Diferenças entre a interpretação da sobrevivência e a teoria espírita para a mediunidade.

De fato, a interpretação da sobrevivência a que se refere Sudduth apenas diz que a fonte da informação oriunda dos fenômenos psíquicos está na existência dos Espíritos. Não se detalha o mecanismo através do qual isso seria possível. Por isso, a linha argumentativa do autor de (2) é válida:

1. A hipótese super-psi faz uso de psi em certo grau;
2. A interpretação da sobrevivência usa psi em um grau indistinguível de super-psi;
_____________________________________________
C: Portanto, todas as críticas dirigidas a super-psi também valem para a sobrevivência.

Porém, é importante enfatizar que existem grandes diferenças entre a 'interpretação da sobrevivência' a que se refere Sudduth em seu artigo e a teoria espírita elaborada por A. Kardec (8) para a mediunidade. No caso de Kardec, diversos elementos explicativos (existência de fluidos imponderáveis, perispírito, diferenças de densidade entre corpos etc) existem e interagem para explicar uma variedade de fenômenos psíquicos de uma forma bem mais complexa do que a simples assunção da existência dos Espíritos na interpretação da sobrevivência em questão. Por causa disso, a crítica que Sudduth tece à falta de imunidade da tese da sobrevivência em relação à hipótese de 'super-psi' não se aplica à teoria de Kardec como é fácil perceber. 

Obviamente, o debate entre a  'sobrevivência' e 'super-psi' passa longe de Kardec, já que grande parte dos pesquisadores modernos dos fenômenos psíquicos (e que são favoráveis à sobrevivência) desconhecem a teoria de Kardec em detalhes.

Fenômenos de experiências de quase morte e visão de leito de morte não são fenômenos mediúnicos. Aplicar super-psi em tais casos é claramente problemático. De fato, tais fenômenos indicam, de forma independente da mediunidade, a existência do Espírito e sua sobrevivência.

Um problema ainda maior para super-psi

Os leitores não terão dificuldade em perceber a limitação do argumento de Sudduth a partir do próprio título de seu artigo: 'Super-psi e a interpretação da sobrevivência para a mediunidade' (grifo nosso). Em suma, seu argumento só se aplica à mediunidade. Entretanto, existem inúmeras ocorrências que são fenomenologicamente diferentes da mediunidade:
  • Lembranças e fenômenos associados a vidas anteriores em crianças (9);
  • Lembranças de vidas anteriores em adultos submetidos à regressão de memória;
  • Experiências de quase morte, EQM (10);
  • Visões no leito de morte (11);
Aplicar a ideia de super-psi nesses casos seria proibitivamente desonesto como é fácil perceber. Seria esticar em demasiado uma explicação customizada para um tipo de fenômeno. Inúmeros detalhes concorrem para demonstrar que a ideia da sobrevivência se sustenta de forma independente:
  • Por exemplo, no caso das lembranças de vidas anteriores em crianças, o que 'sobreviveu' de uma existência para outra? Como explicar marcas de nascença associada a vidas anteriores usando super-psi?
  • No caso de experiências de quase morte, o que continua a existir enquanto o cérebro está sem oxigênio? 
  • Porque a imensa maioria das lembranças em EQM diz respeito ao encontro com pessoas já falecidas? Nas visões de leito de morte, porque são reportadas imagens de pessoas falecidas?
O leitor interessado identificará facilmente outros detalhes na fenomenologia psíquica 'não mediúnica', que permite facilmente perceber a simplicidade e amplitude explicativa da tese da sobrevivência. Dessa forma, invocando-se a 'Navalha de Occam' (simplicidade), a tese da sobrevivência apresenta-se como a teoria que deve ser escolhida.

Esse é um assunto interessante que merece ser melhor explorado futuramente, principalmente no que diz respeito às consequências da tese da sobrevivência com base em evidências não mediúnicas.

Notas e Referências

(1) Ver post "Geografia(s) do mundo espiritual" de Chrystian Lavarini.

(2) M. Sudduth (2009) "Super-Psi and the Survivalist Interpretation of Mediumship", Journal of Scientifi c Exploration, Vol. 23, No. 2, pp. 167–193.

(3) Ver tradução comentada do texto de M. Prescott "As duas opções".

(4) Sobre isso ver a tradução do artigo de P. Churchland, "Como a Parapsicologia poderia se tornar uma ciência" que foi publicada em uma série de quatro posts.

(5) A existência dos Espíritos é uma dessas hipóteses. 

(6) ESP ou a chamada 'percepção extra sensorial' e psicocinese são esses blocos constituintes.


(7) Ou seja, como seria possível explicar 'psi'? A interação entre mentes (no caso, por exemplo, da telepatia) não pode ser explicada com base em nenhum elemento mais fundamental. Tentativas foram feitas, porém, o fenômeno não se deixa controlar a ponto de se poder testar facilmente.

(8) Uma boa parte dessa teoria, no que diz respeito à mediunidade, pode ser encontrada em "O Livro dos Médiuns".

(9) J. B. Tucker. (2008). Life Before Life: Children's Memories of Previous Lives.  St. Martin's Griffin, primeira edição.

(10) Ver post: Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte. Artigo de Michael Nahm (2011).

10 de junho de 2014

As duas opções (por Michael Prescott)


Apresentamos uma tradução para o português do texto de Michael Prescott "The two options" (1) que discorre de uma forma lógica sobre teorias que competem com as explicações espíritas para os fenômenos mediúnicos. Em particular, o que me chamou a atenção neste texto foi a brilhante classificação das 'teorias de super-psi' como uma variedade de "teoria da conspiração" e, portanto, sua impossibilidade de refutação. Pedimos autorização ao autor para a tradução apresentada em azul. Adicionamos alguns comentários na parte final. 

Como os leitores assíduos desse blog sabem, existe uma variedade sugestiva de evidências da sobrevivência da consciência depois da morte. Algumas delas, naturalmente, são mais persuasivas do que outras, mas, quando se olha para a totalidade da pesquisa, é fascinante ver como várias investigações convergem para a mesma conclusão.

Entre tais evidências estão as experiências de quase morte, experiências fora do corpo induzidas, aparições e assombrações, comunicações espontâneas e induzidas após a morte, mediunidade, memórias espontâneas de vidas anteriores reportadas por crianças, alegadas memórias de vidas passadas e de existência entre vidas descritas por adultos hipnotizados e fenômenos de vozes eletrônicas. Isso não é uma lista que pretenda ser completa. Tenho certeza que deixei de lado poucas coisas.  

De novo, não digo que todas essas linhas de investigação são igualmente convincentes: por exemplo, a regressão hipnótica pode ser problemática porque sujeitos hipnotizados tem a tendência de confabular. E muito dos fenômenos de vozes eletrônicas se parecem mais com ruído do que com vozes de fato, pelo menos para mim. Mesmo assim, quando olhamos tudo de uma perspectiva maior, acho que apenas duas alternativas podem explicar a totalidade dessas evidências. 

A primeira e mais óbvia explicação é que a consciência realmente sobrevive à morte, ao menos por certo tempo e, em alguns casos, reencarna (2).

A segunda explicação possível é que existe um tipo de conspiração cósmica em operação - um esforço orquestrado pelo subconsciente coletivo da humanidade, ou por demônios enganadores, ou por qualquer outra força preternatural - uma conspiração para nos convencer de que sobreviveremos à morte quando, de fato, isso não irá acontecer. 

As alternativas não materialistas à sobrevivência se classificam todas de certa forma nessa segunda categoria. Defensores de superpsi (ou super ESP, 3) essencialmente dizem que poderes desconhecidos da mente (4) estão nos enganando (Fig. 1) para diminuir nosso medo de morrer. Alguns fundamentalistas religiosos dizem que a mediunidade e experiências de quase morte são obra do demônio para nos afastar da ortodoxia. 

Agora, o ponto sobre teorias de conspiração é que elas são impossíveis de se refutar. Não importa quanta evidência for reunida, elas sempre irão reforçar a ideia; o devotado teórico conspiracionista simplesmente dirá que a evidência é parte da conspiração. Por exemplo, algumas pessoas acreditam que a aterrissagem na lua foi uma fraude feita em estúdio (5). Se se afirmar que astrônomos no mundo inteiro rastrearam a trajetória da espaçonave Apolo, eles irão afirmar que tais astrônomos fazem parte do jogo conspiratório. Se for mostrado que rochas foram trazidas da Lua e analisadas por especialistas, será dito que tais especialistas, por sua vez, também fazem parte da conspiração. Quanto mais evidência for apresentada, tanto maior terá que ser a conspiração, o que não é um problema para o teórico da conspiração, que se encanta com a ideia de que ele é a voz solitária da verdade e lucidez a lutar contra chances improváveis. 

Não estou a dizer que conspirações nunca ocorrem. Obviamente, houve conspirações ao longo da história. Por exemplo, uma conspiração foi feita para assassinar o imperador Júlio César. Mas, ela não permaneceu oculta por muito tempo e não envolveu um número grande de pessoas. Houve um tipo de conspiração para evitar que o público soubesse de benefícios recebidos por Franklin Roosevelt durante o seu mandato e que o casamento de John Kennedy era basicamente uma farsa. De novo, tais montagens envolveram um número limitado de pessoas e foram eventualmente descobertas depois.  

O problema das teorias de conspiração com explicações de tudo é que, não somente elas nunca podem ser refutadas, mas também elas invocam um sentido de incapacidade, passividade ou cinismo. Se o mundo todo existe para nos consumir, então, nada podemos fazer para escapar, a não ser alimentar o desespero.  

Quando nos voltamos para uma ideia como super-psi, encontramos uma teoria de conspiração que é ainda mais difícil de refutar do que qualquer outra. Por definição, super-psi envolve potencialmente o subconsciente de todo mundo - qualquer pensamento ou sentimento que quem quer que seja tenha tido ou irá ter um dia. 

Mas, é possível ter muito mais que isso! Se recursos combinados de mentes subconscientes de todos os seres humanos estão envolvidos em perpetrar uma charada, e se tais recursos não reconhecidos são imensamente maiores do que se pode imaginar, então, tal conspiração será capaz de produzir literalmente qualquer evidência necessária, ao mesmo tempo que suprimirá qualquer outra que lhe seja contrária. 
Fig. 1  Pe O. G. Quevedo que se especializou em usar hipóteses da superpsi e fraudes em seu combate ao Espiritismo. O grosso de sua argumentação sustentava-se na ideia de que a mente tem recursos desconhecidos ou que não é confiável. Como M. Prescott pondera, tais explicações não têm caráter científico porque são irrefutáveis, sendo melhor classificadas como variedades de teorias de conspiração.
Isso não apenas significa que nunca poderemos saber a verdade sobre a vida após a morte. Significa que jamais saberemos a verdade a respeito de qualquer coisa. Não podemos confiar em nossas mentes, já que, no nível mais profundo, ela foi criada para nos enganar. Não podemos confiar na percepção de ninguém, incluindo na nossa própria. Se levarmos super-psi a sério ou, de outra forma, se acreditarmos que qualquer evidência que contradiga nosso sistema de crenças foi fabricado por demônios para testar nossa fé, ou criado por 'fantasmas devoradores de almas' para nos entorpecer antes do abate final, ou por alienígenas desejosos de nos observar em tubos de ensaio, então, nunca haverá chance alguma de usar tanto nossa faculdade de raciocínio como recorrer às evidências para saber a verdade. 

Então, ficamos assim. Assumindo que encontramos evidências da sobrevivência que são razoavelmente convincentes e que não podem ser explicadas de outra forma como observações incorretas, fraudes, lendas urbanas ou 'wishful thinking' etc, estamos diante de uma escolha básica. Podemos aceitar a evidência pelo seu valor de face, na hipótese de que o Universo é essencialmente benigno (6)  e que nossas mentes são, em princípio, capazes de discernir a verdade a respeito das coisas (7). Ou, podemos assumir que a evidência é o resultado de gigantesco trabalho conspiratório, sendo que o Universo é essencialmente maligno e nossa consciência e mente racional são, em princípio, incapazes de saber a verdade de qualquer coisa.

Concordo que não há jeito de se, definitivamente, decidir entre as duas alternativas (8). De alguma forma, ela depende de nossa visão sobre a existência ser basicamente otimista ou pessimista. Seria o Universo amigável ou será que ele existe para nos consumir? Seria a vida uma aventura ou um pesadelo? Haveria espaço para esperança ou somente o medo?

Isso está de certa forma relacionado ao que William James chamou de 'desejo de acreditar', o seja, a necessidade de se tomar um ato de fé no ponto onde o raciocínio não consegue mais ir além. Cada um de nós deve tomar esse passo a mais em uma ou outra direção, por nós mesmos.

Referências e comentários

(1) Michael Prescott's blog: http://michaelprescott.typepad.com/michael_prescotts_blog/

(2) Numa visão puramente empírica, isto é, ditada pelas 'evidências', não há bases para se afirmar que todos reencarnam e nem que todos reencarnam.

(3) Com explicado por Prescott em seu texto, a teoria de 'super-psi' é uma das alternativas 'não espíritas' e 'não materialistas' aos fenômenos psíquicos. Resulta de um desenvolvimento de teorias do subconsciente que chegam ao extremo de refutar a sobrevivência usando da ideia de 'orquestração inconsciente' e 'super-mente'. Como também explicado por Prescott, essas teorias caem na categoria de 'teorias de conspiração' e são incapazes de produzir qualquer previsão de fenômeno. 

(4) No Brasil, nos anos 80-90 foi bastante conhecida a campanha do clérigo jesuíta Oscar G. Quevedo contra o Espiritismo usando essencialmente conspiração de super-psi nos casos mais difíceis de se refutar e uma variedade de explicações do tipo 'fraude' nos considerados 'mais fáceis'. Por isso, a importância do texto de Prescott. A 'teoria do demônio' é tratada com brilhantismo por Allan Kardec em "O Livro dos Médiuns", Primeira Parte - Noções preliminares, Capítulo IV - Dos sistemas.

(5) Sobre isso, ver também nosso texto: "Crenças Céticas XXI: Será que o homem pousou na Lua?".

(6) O texto de Prescott torna possível perceber a visão puramente empírica que alguns espiritualistas considerados 'científicos' sustentam. Para eles, a verdade deve vir, por indução, a partir da mera observação dos fenômenos. Porém, a fenomenologia psíquica representa uma espécie de 'esquina' para o pensamento, uma vez que, para sua correta explicação, exige a adoção de uma postura filosófica sobre o Universo que é dispensável nas explicações dos fenômenos materiais. Para a física, química etc, não é necessário que o Universo seja 'benigno', mas apenas que ele seja 'racional'.  Prescott torna evidente porque Kardec iniciou a apresentação das questões aos Espíritos em 'O Livro dos Espíritos' - que é a obra fundamental do Espiritismo - pela questão 'O que é Deus?' 

(7) Esse é o ponto de vista da ciência. O Universo pode ser explicado racionalmente, isto é, conhecendo-se as causas, é possível explicar os efeitos e nossas mentes não estão sendo enganadas.

(8) Na visão empírica do autor, deveria ser possível colher evidências adicionais sobre esse caráter, que torne discernível qual é a opção correta. Obviamente, a discussão aqui toca questões metafísicas que estão além da busca meramente empírica e que são, na Doutrina Espírita, tratadas de forma conveniente pela contraparte filosófica. O Universo é benigno porque Deus - como causa primária de todas as coisas - é bom.