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2 de abril de 2016

Ruprecht Schulz: estranho caso de uma suposta "reencarnação"

Seria isto um porco voador?
Pesquisas em reencarnação são ainda consideradas "temas tabus" entre as linhas acadêmicas, justamente por implicarem em algo que não está de acordo com o consenso geral sobre o ser humano e sua existência no mundo, uma criatura que fatalmente morre e aparentemente desaparece. As diversas áreas da ciência não preveem nenhum objeto de estudo onde se possa incorporar o assunto "reencarnação", logo a imensa maioria dos acadêmicos torce o nariz para algo que identificam como não "científico" e que lhes parece uma ideia excêntrica.

Não se admira assim que relatos e evidências de reencarnação caiam na categoria de "anomalias". Mas, não é uma tarefa simples separar o "joio do trigo" em se tratando de qualquer anomalia, o que se aplica obviamente à reencarnação.  Há casos descritos como anomalias que são prejudiciais a própria tese, por se apresentarem como "anomalias dentro de anomalias". Naturalmente, essas ocorrência animam céticos que rapidamente "throw the baby out with the bathwater" (1) e invalidam toda a tese com base em alguns casos mais que suspeitos.

Evidências sobre reencarnação como anomalia têm origem em duas fontes principais: i) informes de crianças que se lembram de vidas anteriores e ii) relatos de memórias via regressão hipnótica. Se o primeiro caso é considerado bastante forte pelo caráter "acima de qualquer suspeita" dos relatos infantis, o mesmo não se pode dizer do segundo, onde a total inexistência de uma "teoria da mente" dificulta separar lembranças de sonhos de eventuais memórias anteriores, inviabilizando a aceitação das descrições. Além disso, ocasionalmente, existem relatos excepcionais de adultos que dizem se recordar de vidas anteriores mesmo em estado de vigília, isto é, sem nenhum apelo ao hipnotismo ou sonhos.

Tudo isso indica que é preciso redobrado cuidado por parte daqueles que pretendem "provar" a tese da reencarnação - ou extrair regras para seu mecanismo - com base na busca exaustiva e empilhamento sistemático de casos. Em particular, salta aos olhos a necessidade de se estabelecer métodos de pesquisa apropriados, de examinar se os dados obtidos são confiáveis e sobre a consistência metodológica aplicada à pesquisa. Mais ainda, partindo-se de uma contexto ateórico (ou seja, sem a orientação de uma teoria), é provável que evidências sejam mal interpretadas, uma vez que já se mostrou há muito que uma evidência é contaminada pela visão que se tem de seu contexto (2).

O cenário é bastante complicado porque, como dissemos, inexiste uma "teoria da mente" que permita estabelecer claramente as origens e as consequências para eventos mentais com base em evidências colhidas de memórias de longo prazo sequer dentro de uma existência, quem dirá entre existências.

O caso Ruprecht Schulz (RS)

Os pesquisadores de reencarnação mais conhecidos na atualidade são I. Stevenson (1918-2007) e Jim Tucker (ver nosso post sobre ele aqui). Entre as inúmeras evidências estudadas por Stevenson, o livro "Casos Europeus" (3) descreve ocorrências tiradas de relatos não orientais, numa tentativa por Stevenson de mostrar que a reencarnação é um fenômeno "universal" (4).

Em particular, nessa obra existe um caso que exorbita dos relatos quase uniformes de crianças que se lembram de vidas anteriores. Trata-se do "caso Ruprecht Schulz" (ver também 5) que está longamente descrito no livro. Aqui apresentamos um resumo por simplicidade e destacamos os prontos problemáticos do caso.
Ruprecht Schulz, nascido em Berlim, a 19/10/1887, comerciante, declarou a I. Stevenson, em entrevista feita em agosto de 1960, ter tido memórias (ver abaixo) de uma vida pregressa por volta do início da década de 1940 (início da II Guerra Mundial). Nessa descrição, via-se como um rico comerciante, ligado a atividades portuárias, que cometeu suicídio. A força dessas lembranças fez RS escrever a diversas cidades portuárias da Alemanha, a partir de julho de 1952. Uma resposta veio da cidade de Wilhelmshaven afirmando ter sido palco do suicídio de um tal Helmut Kohler (HK), corretor marítimo, em 23/11/1887. Segundo informações colidas por RS com parentes de HK, este teria se suicidado depois de se ver em condições econômicas difíceis e de ter sido roubado por um funcionário mais próximo que fugiu para os Estados Unidos. 
As informações tabuladas por Stevenson nas páginas 272-274 de (3) são parte de um relatório construído parcialmente com as informações que RS conseguiu de Wilhelmshaven, quando ele já estava com mais de 50 anos de idade. O que chama a atenção no caso RS é a inconsistência entre a data do suicídio de HK e o nascimento de RS, indicando uma aparente violação da relação "causa efeito" - a personalidade anterior ainda estava encarnada quando seu novo corpo já vivia em outro lugar.

Natureza peculiar das "memórias" de RS.

Longe do problema das datas, o que mais me chamou a atenção no caso RS é o caráter muito especial de suas memórias. O que se espera de alguém que se lembre de sua vida passada? Que suas memórias - se se referem realmente a algo experimentado - acompanhem o sujeito e não dependam de onde ele se encontra. Mas isso não aconteceu com RS.

Antes, porém, consideremos como RS descreve suas "memórias". Na p. 266, no final de sua descrição de como teria se vestido e se matado ele afirma:
"Podem chamar essas imagens de clarividência, mas para mim elas são lembranças". (grifos nossos)
RS parece confundir lembranças com visão de imagens pois, no meio da descrição declara:
"O sentimento foi ficando mais forte e então - não em um transe ou estado de sono - como algo quase visível aos olhos, pude me observar como eu naquela época." (grifos meus)
Tomando com base que ele não tenha inventado nada, sua descrição aparentemente em terceira pessoa não deixa dúvidas que ele teve uma "visão". E mais ainda, essa visão apenas ocorria se ele estivesse em contato com determinado ambiente. Conforme atestam as anotações de I. Stevenson sobre as memórias de RS, em 2 de maio de 1964 (p. 266 e 267):
"Ele nunca as tinha a não ser quando estava no escritório durante o seu turno aos domingos. Estava completamente acordado nessas vezes. Ele experimentou novamente as emoções da situação lembrada e viu as lembranças como uma imagem interior, não como uma visão projetada." (Grifos meus)
Depois enfatizar que RS não estaria em um estado "alterado" de consciência, Stevenson parece ter "reinterpretado" a descrição ao anotar que o sujeito "via lembranças como uma imagem interior" (admitindo nenhum erro de tradução em relação ao original). Esse ponto é de fundamental importância, pois fica clara aqui o papel das ideias preconcebidas do pesquisador. Por que é importante afirmar que RS teve as "lembranças" em estado de vigília? A razão é simples: Stevenson (e provavelmente RS) acreditava que lembranças comuns só podem ocorrer se o sujeito não estiver em "estado alterado de consciência" (leia-se, "mediunidade" ou "hipnotismo").

Mas seria esse o caso? O Espiritismo abre um leque grande de possibilidades. Primeiro porque não se pode afirmar absolutamente o caráter "normal" da consciência de RS uma vez excitada por certos detalhes do ambiente.  Ao contrário, o fato do "fenômeno" apenas ocorrer quando em contato com certo objetos, cria fortemente a impressão de mudança desse estado. Depois porque acessar as lembranças como algo "quase visível aos olhos" permite inúmeras interpretações dentro da fenomenologia mediúnica. Finalmente, a exigência de "estado alterado" não é condição sequer necessária para a mediunidade ou "obtenção de informação anômala". Em "O Livro dos Médiuns", II Parte, Capítulo 15, Parágrafo 182, "Médiuns inspirados", podemos ler:
Todo aquele que, tanto no estado normal, como no de êxtase, recebe, pelo pensamento, comunicações estranhas às suas idéias preconcebidas, pode ser incluído na categoria dos médiuns inspirados. Estes, como se vê, formam uma variedade da mediunidade intuitiva, com a diferença de que a intervenção de uma força oculta é aí muito menos sensível, por isso que, ao inspirado, ainda é mais difícil distinguir o pensamento próprio do que lhe é sugerido. A espontaneidade é o que, sobretudo, caracteriza o pensamento deste último gênero. (grifos nossos)
São registradas descrições de "sensitivos", com variados graus de faculdade, que podem "ver imagens" ao contato com objetos, inclusive tendo sensações relacionadas aos envolvidos na "cena" (o que implica em algum grau de "psicometria"). Contra isso seria possível antepor o argumento de que RS não era médium ou não teria manifestado nenhum tipo de mediunidade em sua vida (o que também é avançado por Stevenson). Mas isso se fundamenta exclusivamente na palavra do sujeito como o próprio Stevenson reconhece (ver abaixo). Ou de outra forma, é possível que RS tivesse tido outras experiências "anômalas" em sua vida, mas deixou-se influenciar por aquela que mais lhe atraiu dentro de sua crença em reencarnação.

De qualquer forma, estamos diante de um problema metodológico que depende da existência de outra teoria sobre memórias e visões. Stevenson desprezou certos detalhes que a ele não pareciam relevantes, mas que, na verdade, são cruciais para determina a "origem" das informações.

Inconsistências em algumas afirmações

Parece que Stevenson deixou de considerar a consistência entre os relatos dispersos como declarados por RS. Por exemplo, na p. 265 de (3, edição em Português), podemos ler a declaração dada por RS a Stevenson em 1960:
"As memórias começaram a surgir para mim na época dos ataques de bombardeios em Berlim durante a guerra."
De acordo com Stevenson, RS cita a data de 1942, quando ele estaria com mais de 50 anos. Porém, na p. 268 da mesma referência, há a citação de uma carta de RS ao filho de Kohler (datada de 1952), dizendo que suas lembranças começaram na infância, "desde muito novo". Qual das versões corresponde ao que teria acontecido?

Com relação às memórias alegadamente atribuídas à infância, elas podem ter sido criadas à posteriori, depois que RS se convenceu que era mesmo a reencarnação de HK. Por exemplo, sobre a cidade de sua alegada desencarnação, RS afirma na carta "me pareceu mais tarde e mais claramente, que essa cidade era Wilhelmshaven" (ainda na p. 268). Só que, segundo Stevenson (conforme está na p. 263), ele apenas tivera a impressão de que sua suposta vida anterior teria sido em "uma pequena cidade portuária", tendo escrito para várias cidades (existiam poucas "pequenas cidades portuárias" na Alemanha no final do Século XIX, e teria sido óbvio incluir Wilhelmshaven). De qualquer forma, o caso RS, no quesito "memória", é muito diferente se comparado a outros estudados por Stevenson.
Wilhelmshaven, cidade da suposta vida anterior de RS. Nela, RS afirmou ter "reconhecido" prédios (de sua vida no Séc. XIX), mesmo tendo sido destruída na II Guerra Mundial. 
Outra afirmações de RS aceitas sem contestação por Stevenson é o "reconhecimento" de prédios em Wilhemlshaven:
Em outubro de 1956, Ruprecht e Emma Schulz foram até Wilhelmshaven, onde se encontraram com Ludwig Kohler. A cidade tinha sido muito danificada pelos bombardeios durante a então recente guerra. Ruprect acreditou reconhecer a Prefeitura e um antigo arco. 
Sem que se garanta que as construções "reconhecidas" por RS tenham sido reconstruídas, é difícil acreditar que isso pudesse acontecer com um cenário que foi destruído com a guerra. Com relação ao seu comportamento "ex suicida" de infância, o caso se contamina pela ausência de "comprovações" (como Stevenson tipicamente insiste em outros casos) por parte de terceiros já que, segundo o pesquisador (p. 277):
"Ruprecht permanece quase que totalmente o único informante das declarações antes de elas serem confirmadas" (grifos nossos).   
O problema da quebra da relação "causa-efeito"

No nosso entendimento, o problema teórico mais grave levantado pelo caso RS é a aparente quebra de causalidade no relaxamento da relação entre Espírito e seu corpo por uma questão de problema de data. Vê-se que essas extrapolações levam a imaginar que um Espírito possa reencarnar nos moldes de uma "possessão", depois que seu outro corpo já esteja formado e vivo.  Existem três caminhos ilógicos possíveis :
  1. Aceitar isso como uma possibilidade "de fato", o que implica em acreditar em que até o momento da "possessão", o corpo existente tenha vida meramente material ou;
  2. Imaginar algum cenário mais exótico (e, por isso, esdrúxulo) de "quebra de causalidade" (tipo "viagem no tempo"). Incluo essa consideração aqui, pois acho difícil que alguém não tente "salvar as aparências" com explicações desse tipo.
  3. "Divisão do Espírito" (conforme se acredita na ref. 5). Durante as cinco semanas que separam o nascimento de RS e a desencarnação de HK, o Espírito de HK estaria ao mesmo tempo reencarnado em dois corpos (!)
Então, o preço a se pagar por aceitar o caso RS como reencarnação é relaxar a coerência e lógica da ideia das vidas sucessivas, com prejuízo grande para toda a tese e reforço considerável das explicações céticas. Seria realmente esse o caso?

Nossas conclusões
  1. Tão só com base nos relatos levantados por I. Stevenson, não é possível afirmar a identificação de HK como a reencarnação anterior de RS;
  2. Isso é, de fato, manifestado por Stevenson, que classifica seus casos como "sugestivos", dentro de sua prudência acadêmica;
  3. Ao contrário, a impressão que temos é de 'algo faltando' no caso, possivelmente associado às alegadas "memórias" de RS que mais se parecem com "visões";
  4. O maior problema do caso RS é a caracterização de suas "memórias". Por dependerem de um "lugar" e "horário", é provável que estejam associadas à informação externa que lhe foi passada por outro agente "psíquico";
  5. É provável que o caso RS tenha sido interpretado forçadamente por Stevenson como de reencarnação. Stevenson chega a falar em um dos mais "fortes" que investigou, a despeito da marcante diferença na maneira como as "evidências" foram obtidas, na inconsistência nas datas e do tipo de relato feito por RS; 
  6. Por que Stevenson teria feito isso? Aventamos a hipótese de que ele não quisesse descartar - segundo sua abordagem - casos europeus, que se mostraram escassos frente aos orientais. A busca por tais casos era uma questão "de honra" para Stevenson, que enfrentou heroicamente ataques do ceticismo. Ou, de outra forma, é provável que, no contexto oriental, algo parecido ao caso RS tivesse sido facilmente descartado por Stevenson;
  7. A data de nascimento do suposto reencarnante é anterior à desencarnação da personalidade pregressa. Isso constitui uma contradição à lei de causa e efeito e cria uma anomalia dentro de outra que é facilmente explorada (com razão) por céticos;
  8. Por uma questão de consistência com todos os outros casos e como resultado lógico da "conservação" da personalidade em outro corpo, não faz sentido sustentar uma "hipótese ad-hoc" (6) que permita ao Espírito desencarnar tempo depois que seu "corpo físico" esteja vivo ou coisa ainda mais fantástica. Stevenson não se preocupou muito com essas consequências e isso faz eco com outras críticas (céticas) às conclusões de Stevenson;
  9.  A "força" desse caso é maior para crentes que colocam fatos mal interpretados acima da importância da teoria e sua consistência interna;
  10. A suposto reencarnante não teve sequelas do suicídio: indiretamente isso cria um problema na aceitação do método de Stevenson porque ele mesmo descreve casos em que mínimas marcas de nascença seriam provocadas por agressões físicas no corpo do indivíduo no instante da morte. Stevenson considera a existência dessas marcas importantes sinais de validação de seu método. Se uma agressão compulsória pode deixar uma marca, como é possível um caso em que o suposto reencarnante tenha se matado com um tiro na cabeça e não tenha nenhuma marca, mas apenas lembranças que se parecem com "visões"? 
  11. Uma vez aceito o caso RS, resta evidente questionar todos os outros em que marcas de nascença são observadas, já que, se inexiste relação "causa-efeito" em apenas um caso, fica fácil desqualificar essa necessidade nos outros;
  12. Outras causas podem ter sido responsáveis pelas "visões" alegadas por RS e associadas a suas lembranças posteriormente.  Com a confirmação dessas visões, RS conseguiu levantar uma personalidade equivalente em sua busca obsessiva (quiça impulsionada por essas causas), que deu origem a todas as outras "evidências" que Stevenson ressalta a apoiar o caso;
  13. O caso RS ressalta a importância de uma teoria que integre tanto informações de fatos históricos associados a existências anteriores como memórias em diversos estados da consciência. A pesquisa da reencarnação não terá êxito se desacompanhada de considerações sobre a fenomenologia psíquica, que representa outra fonte para a aquisição "anômala" de informação.
Referências

(1)  "Jogam o bebê fora junto com a água do banho".

(2) Fácil entender isso. Para um cético, alguém que afirme ter uma vida anterior será interpretado como doente mental, seus sonhos como criações da fantasia etc. Como se vê neste post, a interpretação de qualquer relato como "prova" de vida anterior não considera a possibilidade da informação anômala ter sido obtida por outras vias psíquicas, que não a da memória propriamente dita. Isso só é possível se se dispuser de uma teoria abrangente, que permita separar os fatos em categorias que devem ser, elas próprias, previstas na teoria.

(3) Stevenson, I. (2003). European cases of the reincarnation type. McFarland. No Brasil, há uma edição traduzida desse livro com o título "Casos Europeus de Reencarnação". Ed. Vida e Consciência. 1a, Edição, 2010. No que é citado neste post, seguimos a versão em Português.

(4) Uma das críticas levantadas contra a ideia de reencarnação com base em evidência de fatos é o número muito grande de casos (de crianças) em países que aceitam tacitamente a noção como a Índia. Críticos levantaram a hipótese de uma raiz "cultural" para o fenômeno, o que reduziria sua importância como evidência.


(6) Uma "hipótese ad-hoc" é uma explicação criada com um determinado objetivo. No caso aqui, aceitar a possibilidade de que o Espírito possa ter um corpo em outro lugar enquanto ainda não desencarnado é uma explicação criada para "salvar as aparências" ou acomodar os dados disponíveis com a tese principal.  O que supostamente dizem "os fatos", interpretados de acordo com determinados pressupostos e sob risco de falhas (erro de data, falsas memórias etc), é salvo pela adoção da hipótese.


11 de julho de 2014

Questões preocupantes em relação à regressão hipnótica (Por Ian Stevenson*)

Espíritas já conhecem a opinião de muitas autoridades espirituais com relação à regressão de memória usada em buscas por vidas anteriores. Aqui apresentamos a tradução para o português de uma declaração do Dr. Ian Stevenson sobre o tema que vale a pena também ser considerada. As recomendações de Stevenson mostram seu interesse na pesquisa séria com regressão hipnóticas e são céticas com relação a resultados reportados usualmente.

Fonte: "Concerns about Hypnotic Regression. Hypnotic Regression to Previous Lives. A Short Statement by Ian Stevenson", M.D;.:
Regressão hipnótica a vidas anteriores: uma breve declaração.
Ian Stevenson, M. D.
O seguinte texto foi escrito num esforço de resposta a um grande número de cartas que recebi de pessoas desejosas de serem levadas por mim, via hipnose, a vidas anteriores, que gostariam que eu as recomendasse a um hipnólogo ou que eu investigasse materiais que eventualmente tenham emergido de tais experiências.
Muitas pessoas que não dão qualquer importância ao que ocorrem em seus sonhos (imaginando não serem nada mais que imagens da mente subconsciente, sem correspondência com qualquer outra realidade) acreditam bastante que qualquer coisa que emerja durante uma sessão de hipnose pode ser tomado em seu valor de face. De fato, o estado de uma pessoa durante uma hipnose se assemelha bastante - embora não completamente - ao de uma pessoa enquanto sonha. Partes subconscientes da mente são liberadas das inibições ordinárias e podem se apresentar de forma dramática como uma nova "personalidade". Se o paciente foi instruído pelo hipnotista - explicita ou implicitamente - a "voltar para um outro lugar e tempo" ou coisa parecida, a nova "personalidade" parecerá voltar a algum período da história. Tais "personalidades evocadas" podem se mostrarem bastante plausíveis tanto para a pessoa tendo a experiência com para aqueles que a assistem. Experimentos feitos por Baker [1] e Nicholas Spanos et al [2] mostraram como é fácil que sugestões diferentes do hipnotista influenciem as características da "outra personalidade".

De fato, quase todas essas "personalidades anteriores" são totalmente imaginárias, assim como o conteúdo da maioria dos sonhos. Podem talvez retornar detalhes históricos precisos, mas esses são derivados da informação que o sujeito tinha de suas leituras, de programas de rádio e televisão, além de outras fontes. O sujeito pode não se lembrar onde ele obteve aquela informação, mas, muitas vezes, isso pode ser conseguido em outras sessões de hipnose feitas para buscar por tais fontes de informação. Experimentos feito por E. Zolic [3], R. Kampman e R. Hirvenoja [4] demonstraram esse fenômeno. 

Uma experiência emocional marcante durante a regressão hipnótica não garante que as memórias de vidas anteriores tenham sido readquiridas. A impressão subjetiva de lembrança de uma existência anterior pode ser marcante para a pessoa que a experimenta, e, mesmo assim, a "vida anterior" uma fantasia, assim como muitos sonhos. Também, o benefício (mesmo na forma de uma melhora dramática) em sintomas físicos e psicológicos não é evidência que uma vida anterior tenha sido acessada. 

Pessoas com sintomas psicossomáticos e psiconeuroses podem se reabilitar ao seguir uma grande variedade de procedimentos psicoterapêuticos. Há muitos efeitos relacionados a procedimentos psicoterapêuticos. Melhoras podem ser decorrentes exclusivamente dessas medidas e pouco se relacionarem com uma técnica específica, seja regressão hipnótica, psicoanálise ou qualquer outra aplicada pelo psicoterapeuta. 

Vale a pena enfatizar que crianças muito novas que se lembram de vidas anteriores frequentemente apresentam fobias, tais como medo de água e se lembram do evento que parece ter gerado essa fobia, tal como morte por afogamento. Mesmo assim, a simples lembrança da causa de uma fobia ou outro sintoma não necessariamente irá removê-lo. 

Pessoas que pretendem realizar regressão hipnótica devem se perguntar: que benefícios irei colher ao tentar facear minhas presentes dificuldades se eu me lembrasse de algo de alguma forma a ela relacionado em uma vida anterior? Será que minha lembrança, ainda que real, removeria essas dificuldades?

Após essa breve introdução, que não cobre completamente todos os aspectos complexos da questão, eu gostaria de mencionar que, muito raramente, algo de valor emerge de experimentos com regressão hipnótica a "vidas anteriores". Exemplos são quando o indivíduo mostra ser capaz de falar em uma língua estrangeira que ele não aprendeu.

O procedimento de regressão hipnótica a "vidas anteriores" não acontece sem algum risco. Ocasiões houve em que a "personalidade anterior" não "foi embora" quando assim instruída, e o indivíduo permaneceu em um estado alterado de consciência por muitos dias ou mais antes de voltar ao seu estado normal.

Não estou presentemente engajado em experimentos de regressão hipnótica a vidas anteriores. Não faço recomendação de hipnólogos a pessoas que pretendem passar por tais experiências. Não aprovo a conduta de hipnotistas que fazem promessas a seus clientes de que esses voltarão a vidas anteriores reais sob tais procedimentos. Não aprovo quem quer que seja que cobre e se faça passar por um hipnotista para realizar tais experimentos. 

Não realizo verificações de detalhes que emerjam de tais experiências, exceto em casos extremamente raros que me mostrem evidência clara de um processo paranormal. Ocasiões de xenoglossia responsiva (falar uma língua não aprendida) estão incluídos nesse pequeno número de casos que estou interessado em investigar. 

Embora me oponha à exploração comercial de reivindicações sem garantias da regressão hipnótica, sou favorável à pesquisa séria com regressão hipnótica. 

As observações acima aplicam-se com algumas modificações a experimentos amadores com pranchetas e escrita automática. Em tais experiências, as pessoas envolvidas nada mais fazem do que tocar as camadas subconscientes da mente de um ou mais participantes. A chance de engano ou auto engano são talvez maiores do que com experimentos de hipnose, especialmente quando as pessoas que fazem isso se convencem que estão sendo guiadas por personalidades desencarnadas. Aqui, de novo, em alguns casos, um processo paranormal está envolvido nos resultados e, raramente, produzem evidência sugestiva de contato com personalidades desencarnadas. Mas, na maioria dos casos, tais evidências estão ausentes.

Para mais informações e referências a artigos e livros baseados em investigações científica em apoio a minha posição com relação a tais casos, indico o meu livro "Children Who Remember Previous Lives" [5]. Também publiquei "A Case of the Psychotherapist's Fallacy: Hypnotic Regression to 'Previous Lives" [6]. Cópias desses artigos estão disponíveis em várias publicações.

Se este texto não responder adequadamente as questões do leitor, teremos prazer em responder cartas requisitando mais informação. Por favor, as questões devem ser escritas de forma bem específica.  
_____________________________
Referências

[1] Baker, R.A. "The effect of suggestion on past-lives regression." American Journal of Clinical Hypnosis, 25(1), 71-76, July 1982.
[2] Spanos, N.P., Menary, E., Gabora, N.J., DuBreuil, S.C., Dewhirst, B. "Secondary identity enactments during hypnotic past-life regression: A sociocognitive perspective." Journal of Personality and Social Psychology, 61(2), 308-320, 1991.
[3] Zolik, E. "Reincarnation' phenomena in hypnotic states." International Journal of Parapsychology, 4(3), 66-78, 1962.
[4] Kampman, R. and Hirvenoja, R. "Dynamic relation of the secondary personality induced by hypnosis to the present personality" in Hypnosis at Its Bicentennial, edited by F.H. Frankel & H.S. Zamansky. New York: Plenum Press. 1978
[5] Jefferson, North Carolina: McFarland & Company, 2001.
[6] American Journal of Clinical Hypnosis. Volume 36, pages 188-193, 1994

(*) O Dr. Ian Stevenson (1918-2007) foi um psiquiatra que trabalhou para a School of Medicine da Universidade de Virgínia por 50 anos. Ele foi chair do departamento de psiquiatria de 1957 a 1967, professor Carson de psiquiatria de 1967 a 2001 e professor pesquisador em psiquiatria a partir de 2002 até sua morte. Foi fundador e diretor da "Divisão de estudos de percepção" da Universidade de Virgínia, que investiga fenômenos paranormais tais como reencarnação, experiências de quase morte, experiências fora do corpo, comunicações mediúnicas, visões de leito de morte, estados alterados de consciência e psi. Tornou-se internacionalmente reconhecido por sua pesquisa em reencarnação, ao descobrir evidências sugestivas de memórias e marcas de nascença que podem ser transferidas de uma vida a outra. Viajou bastante, por um período de 40 anos, investigando 3000 casos de crianças em todo o mundo que se lembram de suas vidas anteriores. Sua pesquisa meticulosa apresentou evidências que tais  crianças têm habilidades incomuns, doenças, fobias e gostos que não podem ser explicados pelo ambiente ou pela hereditariedade. (fonte: Kevin Williams)



19 de fevereiro de 2014

Sobre a reencarnação e o Judaísmo (comentários a um artigo de Sara Y. Rigler)


"A reencarnação é uma lente poderosa através da qual o amor e a misericórdia de Deus podem ser percebidos por entre as catástrofes da vida". (Sara Y. Rigler)

"Deus faz as coisas de tal forma que as chances do homem alcançar a salvação são maximizadas. Uma alma pode reencarnar inúmeras vezes em diferentes corpos e, dessa forma, corrigir os erros feitos em vidas anteriores. Da mesma forma, ela pode alcançar a perfeição que não foi atingida nas vidas pregressas." (Ramchal, "The way of God", Sec. XIX)

O site Aish.com publicou recentemente o artigo (1) "A reencarnação e o Holocausto: porque alguns Judeus suspeitam que estão de volta", por Sara Yoheved Rigler, sobre a reencarnação (2) na visão judaica. Esse assunto deve render muitos comentários no futuro, já que uma linha dentro de tradições místicas do Judaísmo sempre ensinou a existência de reencarnação. Segundo Sara:
Judeus certamente nunca aprendem sobre reencarnação na escola hebraica. Mas, se procurarmos, descobriremos que há traços de reencarnação na Bíblia e nos primeiros comentaristas (*), enquanto que, na Cabala, a tradição mística do Judaísmo, são abundantes as referências à reencarnação. O Zohar, texto básico do misticismo Judaico (atribuído a Rabbi Shimon Bar Yochai, um sábio do primeiro século) assume a existência do gilgul neshamot (reciclagem das almas) como certo, e Ari (3), o grande cabalista, cujos ensinos no Século XVI estão registrados no Shaar HaGilgulikm, chegou a traçar a reencarnação de vários personagens da Bíblia. Enquanto que algumas autoridades como Saadia Gaon (Século X) negam a reencarnação como um conceito judaico, a partir do Século XVII, rabinos de destaque do Judaísmo normativo, tal como Gaon de Vilna e Chafetz Chaim (**), referem-se ao gilgul neshamot como um fato. 
Ramchal, um acadêmico universalmente admirado do Século XIX, explica em seu clássico O Caminho de Deus que "Deus faz as coisas de tal forma que as chances do homem alcançar a salvação são maximizadas. Uma alma pode reencarnar inúmeras vezes em diferentes corpos e, dessa forma, corrigir os erros feitos em vidas anteriores. Da mesma forma, ela pode alcançar a perfeição que não foi atingida nas vidas pregressas".
(*)Ver Deut 33:6,  Targum Onkeles e Targun Yonosson sobre essa passagem. Ver também Isaías 22:14. (**) Mishnah Berurah 23:5 e Shaar HaTzion 622:6. (notas da autora) 
Como é bem conhecido, a reencarnação se distingue de certos preceitos religiosos por não se tratar meramente de um dogma de fé. Existem evidências fortes para a 'reciclagem de almas' (4) como a própria Sara Rigler comenta em seu artigo.

A ressurreição é um tempo de recompensa;
a reencarnação um tempo de reparar. 
A ressurreição é um tempo de colher; 
a reencarnação um tempo de semear. (5)

Lembranças do Holocausto

Sara descreve diversos acontecimentos de sua infância - passados na década de 1950 - que sempre lhe pareceram suspeitos para uma criança. A começar por sutil repulsa a tudo que fosse de origem germânica. Ela se lembra de ter se recusado a ser filmada pelo pai ao saber que a câmera era de origem alemã. Depois, quando aprendeu algumas frases em alemão (sua escolha no curso de idiomas, 'para conhecer melhor o inimigo' segundo ela), passou a ter pesadelos relacionados aos episódios sombrios do Holocausto. Como poderia uma criança manifestar memórias de episódios históricos que não eram divulgados na época?

Sara ainda registra no artigo sonhos recorrentes, de outras pessoas, igualmente de cultura judaica e ligadas aos acontecimentos do Holocausto. Por exemplo, Nechama Borstein, uma judia nascida na Dinamarca em 1963, relembra um sonho já na fase adulta:
No sonho, caminhava com um grupo de pessoas através de uma passagem escura. No final dela, havia uma parede feita de vigas de madeira de cor marrom. O teto era baixo. A parede à esquerda era feita de tijolos pintados de branco... Sabia que estávamos sendo conduzidos a uma punição. Fizemos algo terrível de acordo com os Nazistas. Estávamos sendo agrupados, colocados bem próximos uns dos outros...Então, no final da entrada, à direita, uma porta estava semi-aberta. Fomos empurrados em direção a ela e entramos em uma sala bem ampla. Estava iluminada, mas não conseguia ver nenhuma fonte de luz...
Essas visões do sonho foram posteriormente relembradas quando Nechama Borstein visitou uma exposição de fotos de Auschwitz. Nela, ela reconheceu muitas das imagens que surgiram em seus sonhos. 

Foto do interior de uma câmera de gás. Fonte: Garret Tziegler.
Sara Rigler se pergunta se esse grupo de judeus exterminados não teriam tido outra oportunidade como grupo reencarnado em terras Norte Americanas ou Europeias no início da década que se seguiu ao terror tanto em Auschwitz como em Babi Yar:
A reencarnação transformou as câmaras de gás em Auschwitz e os fossos de Babi Yar em terríveis finais de capítulo, ao invés de representarem uma conclusão final na estória da alma. Todo grande épico inclui alguns capítulos tenebrosos onde, por exemplo, a heroína é raptada pelo vilão e submetida a certas punições. Se esse fosse o final, a saga bem poderia ser chamada de tragédia. Mas, e se houver um capítulo subsequente, quando o vilão é derrotado e a heroína - agora mais sábia e bondosa com os sofrimentos de seu martírio - fosse reunida a sua família e passasse a viver uma vida plenamente feliz? Seria difícil chamar isso de tragédia.
Ou seja, a autora corretamente conseguiu traçar o quadro das consequências morais resultantes de se admitir a reencarnação como processo de aprimoramento das almas.

Importa lembrar o que disse Kardec (6), à guisa de conclusão para nosso post:
...segundo um dos dogmas fundamentais que decorrem da não-reencarnação, a sorte das almas se acha irrevogavelmente determinada, após uma só existência. A fixação definitiva da sorte implica a cessação de todo progresso, pois desde que haja qualquer progresso já não há sorte definitiva. Conforme tenham vivido bem ou mal, elas vão imediatamente para a mansão dos bem-aventurados, ou para o inferno eterno. Ficam assim, imediatamente e para sempre, separadas e sem esperança de tornarem a juntar-se, de forma que pais, mães e filhos, maridos e mulheres, irmãos, irmãs e amigos jamais podem estar certos de se verem novamente; é a ruptura absoluta dos laços de família. 
Com a reencarnação e o progresso a que dá lugar, todos os que se amaram tornam a encontrar-se na Terra e no espaço e juntos gravitam para Deus. Se alguns fraquejam no caminho, esses retardam o seu adiantamento e a sua felicidade, mas não há para eles perda de toda esperança. Ajudados, encorajados e amparados pelos que os amam, um dia sairão do lodaçal em que se enterraram. Com a reencarnação, finalmente, há perpétua solidariedade entre os encarnados e os desencarnados, e, daí, estreitamento dos laços de afeição. 
(grifos nossos)
Vale a pena ler o artigo integral de Sara Rigler. Ele mostra que a "reciclagem das almas" é um tema antigo e que tem um grande futuro. Ele é também um tema que pode aproximar membros de culturas e religiões distintas, cientes de que os caminhos de Deus são tais que as "chances de salvação do homem são maximizadas"...

Notas e referências

(1) S. Rigler (2014). "Reincarnation and the Holocaust: Why some Jews suspect they've returned.http://www.aish.com/sp/so/Reincarnation-and-the-Holocaust.html (Acesso em 2014)

(2) Em Hebraico a ideia de reencarnação é chamada Gilgul neshamot ou gilgulei ha neshamot. Para referências sobre isso ver http://robert-zucker.com/qabalah/gilgul/index.html

(3) Trata-se do rabino Isaac Luria (1534 – 1572).

(4) Por completeza, traduzimos aqui o conceito de reencaranção (gilgul) segundo a doutrina cabalística criada por Luria. Para tanto, fazemos uso da referência da wikipedia (ver primeiro parágrafo da seção "Expression of Divine Compassion").
Na noção cabalística de gilgul, a reencarnação não é nem fatal ou automática, nem é essencialmente uma punição pelo pecado ou gratificação pela virtude. No Judaísmo, os reinos celestes podem cumprir o "princípio de fé na recompensa e punição" de Maimonides. Ao invés disso, a reencarnação está relacionado ao processo individual de Tikkun (retificação) da alma. Na interpretação cabalística, cada alma judia reencarna-se um número suficiente de vezes apenas para cumprir as 613 Mitzvot. As almas dos justos dentre as Nações podem ser auxiliadas no gilgulim a cumprir as Sete Leis de Noé. Dessa forma, o gilgul é uma expressão da compaixão Divina e é visto como um acordo celeste com a alma do indivíduo para que ele baixe novamente. Essa ênfase no desempenho físico e na perfeição de cada Mitzvah está relacionado com a doutrina Lúrica do Tikkun cósmico da Criação. Nesses novos ensinos, uma catástrofe cósmica ocorreu no começo do Mundo chamado "Despedaçamento dos vasos de Sefirot" no "Mundo de Tohu" (caos). Os vasos de Sefirot quebraram-se e desceram a partir do Mundo Espiritual  até se manifestarem em nosso mundo físico como "centelhas de santidade" (Nitzutzot). A razão porque, na cabala de Lúria, todos os Mitzvot envolvem ações física é que, pela sua realização, eles elevam cada centelha particular de santidade associada a um mandamento. Uma vez redimidas todas as centelhas até sua fonte espiritual, a Era Messiânica começa. Tal teologia metafísica dá sentido cósmico à vida de cada pessoa, uma vez que cada indivíduo tem tarefas específicas que apenas ele podem cumprir. Assim, o gilgum ajuda a alma do indivíduo no plano cósmico.  Isso também explica a razão porque, na Cabala, a utopia escatológica será neste mundo, uma vez que apenas até o plano mais baixo, físico, os objetivos da Criação serão cumpridos.
(5) Ver texto "Reencarnação e Ressurreição" em:
(6) A. Kardec. "O Evangelho segundo o Espiritismo", Capítulo IV - "Ninguém poderá ver o reino de Deus se não nascer de novo",  "A reencarnação fortalece os laços de família", Parágrafo 22. (www. ipeak.com.br)



12 de janeiro de 2014

A ciência da reencarnação (segundo Jim Tucker)

Embora a ideia de múltiplas existências esteja presente em muitas religiões ao redor do mundo, ela também esteve presente no conjunto de manifestações mediúnicas que reafirmaram a ideia - dessa vez totalmente despida de sobrenatural e maravilhoso - no conjunto de textos que compõem a codificação do Espiritismo.

Entretanto, existe uma possibilidade real de se diretamente pesquisar reencarnação através do acesso à memória de pessoas (seja por meio de estado de transe) ou de crianças em tenra idade. O último processo é considerado mais confiável e foi o caminho seguido pelo famoso pesquisador I. Stevenson (1). Recentemente, o trabalho de Stevenson tem sido continuado por meio de um corajoso pesquisador Norte Americano chamado Jim Tucker (2, Fig. 2). Tucker possui um arquivo com cerca de 2500 casos de crianças que tiveram lembranças de vidas anteriores. Tucker trabalha como professor associado de psiquiatria no Centro Médico da Divisão de Estudos de Percepção (3)  da Universidade de Virgínia (4) . O trabalho de Tucker já dura 15 anos, com base em entrevista de crianças de várias idades.

Um dos casos reportados por Tucker é o do menino Ryan Hammons (Fig. 1) que, com quatro anos de idade, começou a ter lembranças fortes de uma existência anterior como ator em Hollywood, afirmando ter três filhos cujos nomes não conseguia lembrar. Seus pais, céticos inicialmente, o levaram ao médico que predisse o fim de suas crises noturnas com o passar do tempo. Um dia, enquanto folheavam um livro sobre atores de Hollywood, Ryan conseguiu se identificar entre os atores da década de 1930. Vários foram os dados fornecidos por Ryan que o identificam de forma unívoca com Marty Martin, famoso ator de Hollywood na década de 30. Ryan é um dos autênticos casos de lembranças de vida anterior, como descreve Tucker.
Fig. 1 Ryan e sua existência anterior como o ator Marty  Martin (~1930). 

Estatística dos casos.

Parte do trabalho de Tucker, ao lidar com grandes massa de dados, já resultou na compilação de alguns números que demonstram os padrões estatísticos observados nos casos (5):
  • A maior parte das crianças que se lembram de vidas anteriores tem entre dois e seis anos de idade.
  • A idade média com que ocorreu a desencarnação da personalidade na vida anterior é de 28 anos;
  • 60% das crianças que se lembram de vidas anteriores são meninos;
  • Aproximadamente 70% das crianças afirmam ter desencarnado de morte violenta ou não natural;
  • Nos casos de falecimento por morte violenta, algo mais de 70%  são meninos;
  • 90% das crianças afirmam pertencer ao mesmo gênero da existência anterior (ou seja, 10% trocam de sexo);
  • O tempo médio entre existências (6) é de 16 meses (ou quase um ano e meio);
  • 20% das crianças afirmam se lembrar do que ocorreu no intervalo de erraticidade (quando estão desencarnadas).
Este trabalho faz eco a um estudo que fizemos para o 7o. ENLIHPE chamado "Uma abordagem estatística para a determinação do tempo de vida entre encarnações sucessivas" (6), quando discutimos diversas medidas associadas à dinâmica entre reencarnações que são prevista pelos princípios espíritas. Como exposto então, o trabalho de Stevenson e, agora, de Tucker, pode fornecer mais parâmetros para o refinamento do modelo apresentado.

Entretanto, é preciso cuidado com as generalizações. Os dados de Tucker parecem ser tendenciosos, no sentido de conterem mais lembranças de personalidades que tiveram morte violenta. Ou seja, a estatística fornecida está 'contaminada' com tais casos. Portanto, não é possível extrapolar esses resultados para toda uma população - pelo menos no caso do intervalo de erraticidade. Isso justamente acontece porque parece haver uma correlação entre o afloramento das memórias e o tipo de morte (algo que ainda deve ser pesquisado).

Além disso, ainda há que se mostrar que fatores culturais não influenciam também a dinâmica reencarnacionista. Por isso queremos dizer que, por causa de variações de cultura - que impõem vínculos de comportamento e, portanto, podem limitar o livre-arbítrio das pessoas - a maneira como o fenômeno ocorre pode ter ligeiras variações de uma região (ou cultura) a outra.
Fig. 2 Dr. Jim Tucker.

De qualquer forma, é preciso reconhecer a coragem do Dr. Jim Tucker  em expor sua carreira e reputação ao estudar esses casos. Embora vivamos numa época de maior liberdade, há ainda muito a ser confrontado com aqueles que consideram esse estudo sem "valor científico" (como se o que é ou não ciência pudesse ser definido à priori) ou que não conseguem ver a importância da noção de reencarnação para o futura da Humanidade.  Essa é uma realidade que diz respeito a todos, independente de crença ou posiconamento filosófico, uma vez que todos estamos sujeitos a mesma lei natural, e a reencarnação nada mais é do que uma manifestação dessa lei, nada tendo a ver com questões religiosas.

Para conhecer mais dos casos de Tucker, recomendamos também um dos seus livros (7) que foi recentemente publicado.

Referências e notas

(1) Ver:
  • Stevenson I. (2010a) Reencarnação, vinte casos. São Paulo: Vida e Consciência.
  • Stevenson, I. (2010b) Reencarnação: estudos científicos de casos reais na Europa. São Paulo: Vida e Consciência.
  • Stevenson I (997a). Where Reincarnation and Biology Intersect. Ed. Praeger Publishing.
  • Stevenson I. (1997b) Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects Volume 1: Birthmarks, Ed. Praeger Publishing.
  • Stevenson I. (1997c) Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects Volume 2: Birth Defects and Other Anomalies. Ed. Praeger Publishing.
(2) Site de Jim Tucker (acesso em 2014)



(5) Ver: A ciência da reencarnação (Revista da U. Virgínia, acesso em 2014). Sobre o caso de Ryan ver: 

(7) "Return to Life - extraordinary cases of children who remember past lives" (ou Retorno à Vida, casos extraordinários de crianças que lembram vidas passadas - ainda sem tradução para o Português).

29 de junho de 2013

2/2 - Memória Genética e Reencarnação


Artigo publicado na Revista Espiritismo & Ciência nº. 90, São Paulo: Mythos Editora, nov/2011, páginas 34 a 42. Ir para a primeira parte.

Acesse a parte 1/2 aqui.

3 - Consequências da tese da memória genética para a visão espiritualista do ser humano.

Adotando-se uma visão espiritualista - sem considerar a existência ou não da reencarnação, mas apenas continuidade da personalidade após a morte (o que é aceito por quase todas as religiões), não é difícil ver que se criam problemas insolúveis as diversas teologias ao se misturar a tese da memória genética para refutar a noção da reencarnação: 
  1. Problemas com a noção de Justiça Divina: onde se poderia estabelecer a Justiça Divina se, por exemplo, o comportamento assassino estivesse estabelecido em traços herdados? Qualquer criminoso poderia, em um nível fundamental, culpar seus pais por parte ou toda a culpa de seus crimes;
  2. Se caracteres de personalidade e memórias podem ser herdados geneticamente, não é possível defender qualquer noção de livre-arbítrio que é base para diversos sistemas de recompensas e punições nas mais diferentes religiões: haveria um gene responsável pelo comportamento altruísta ou devocional, que levaria certas pessoas a aceitar os princípios religiosos ligados à salvação, enquanto que outros, desprovidos de tal gene, estariam eternamente condenados ao inferno; haveria genes responsáveis pelos comportamentos pecaminosos etc;
  3. Diante de 1 e 2, a razão de ser das religiões desapareceria, pois os que teriam que ser salvos já o estariam desde o nascimento por uma programação genética. Mas, qual o sentido da existência da alma ou de qualquer 'algo' que deva sobreviver à morte do corpo diante da herança genética colocada dessa forma? Nesse panorama, a alma não existe e, portanto, não existe salvação. Tal é a questão inexorável de se aceitar a tese. Trata-se de verdadeira 'aberração filosófica' defender a tese da memória genética e se dizer espiritualista, independente de se acreditar ou não em reencarnação. 
Ainda assim, não é difícil encontrar manifestações de religiosos a aceitar a ideia da memória genética para refutar a reencarnação.  No blog 'Bíblia Insólita' seu autor escreve:
E além da memória normal de cada individuo, ainda existe a memória genética, que é aquela que programa reações imediatas ao meio ambiente. Uma criança já sabe chorar para pedir alimento, isso é uma reação programada pela memória genética. Muitas coisas que o espiritismo tenta explicar, a ciência já explica através do processo de memória genética. Não existe nada que prove que até coisas mais complexas como um talento para pintura ou algo similar não seja absorvido pela memória genética.
Ao se utilizar argumentos como esse, não se percebe que eles podem ser aplicados de maneira muito mais abrangente do que o crítico pretende fazer.  Pode-se por exemplo, aplicá-lo a própria fé intolerante que teria uma memória específica armazenada em um gene fazendo com que comportamentos de intolerância de todos os tipos sejam possíveis.

Mesmo entre espiritualistas (não cristão), encontra-se a defesa sem discernimento de tal tese (Ver blog Hari-Om, post inacessível em 2013): 
Nós trazemos uma memória genética que tem registrada a experiência de todos os tempos, essa memória independe da cultura, credo, cor, etc…, ela determina características essenciais e comportamentais de uma espécie.
Há vários outros exemplos na Web (em 2011) que mostram que a ideia de memória genética constitui uma fonte rica de inspiração (e confusão) para as mais variadas 'explicações' do ser humano. Sua maior aplicação é, de longe, para refutar a reencarnação ou informação anômala colhida em eventos psíquicos (mediunidade e fatos correlacionados).

4 - Qual é a situação atual?

Obviamente, acadêmicos rejeitam (em sua maioria) qualquer noção de memória extrafísica. Ninguém melhor do que C. Sagan (1980) para sintetizar a visão moderna sobre o assunto: 
Quando nossos cérebros não conseguem armazenar toda a informação necessária para a sobrevivência, lentamente inventamos cérebros. Então veio o tempo, talvez há dez mil anos, quando necessitávamos saber mais do que podia ser convenientemente contido nos cérebros, e aprendemos a estocar quantidades enormes de informação fora de nossos corpos.
Em outras palavras, para o materialismo, 'aquilo que somos', incluindo nossas 'memórias', perde-se nos emaranhados de complexidades das estruturas neurais do cérebro. O último reduto do materialismo é o argumento da complexidade: uma vez que o cérebro é muito complexo, então qualquer coisa pode resultar dele, incluindo nós mesmos.  Segundo a Wiki: 
O mecanismo utilizado para o armazenamento de memórias em seres vivos ainda não é conhecido. Estudos indicam a LTP (long-term potential) ou potencial de longa duração como a principal candidata para tal mecanismo.  A LTP foi descoberta por Tim Bliss e Terje Lomo num estudo sobre a capacidade das sinapses entre os neurônios do hipocampo de armazenarem informações. 
Ainda segundo M. Blanc (1994): 
Na verdade, nenhum estudo demonstrou que existe um determinismo genético de algum traço, mesmo que seja da personalidade humana.
A questão da memória genética foi abandonada por causa das consequências previsíveis gera com gêmeos univitelinos. Esses são indivíduos que contém em si exatamente a mesma 'carga genética', cada um deles é exato clone do outro.  Portanto, eles deveriam apresentar comportamentos semelhantes ainda que fossem separados em idade prematura. Embora se possa defender ou observar muitas similaridades nos traços de comportamento de gêmeos univitelinos (muitas que não podem ser distinguidas de comportamentos semelhantes observados entre irmãos comuns), a ortodoxia presente acredita que ao 'ambiente' determina em nível fundamental o comportamento.  Para saber mais ver: 'O determinismo do comportamento humano existe?' em Blanc (1994), p. 202-205.
Assim, saímos de uma visão de comportamento determinado por entidades microscópicas como os genes, para outra determinada por entidades muito diferentes como o 'ambiente'. Toda essa situação indica que não existem fundamentos seguros para a determinação das causas para os fenômenos psicológicos em uma abordagem materialista do ser humano.

O problema dos gêmeos idênticos; como explicar que, tendo a mesma carga genética e, frequentemente, vivendo no mesmo ambiente, eles tenham personalidades tão diferentes?

5 - Considerações finais

A ideia de 'memória genética' lança mão de dois termos com grande apelo à maioria das pessoas instruídas, independente de suas crenças: o da 'memória', que é algo que temos conhecimento privado (íntimo), e 'genética' que é uma disciplina científica que revolucionou nossa concepção sobre a vida e a Natureza.

A maior aplicação para a ideia de 'memória genética' mesmo é como argumento de refutação à reencarnação.  Na verdade, a 'memória genética' tem pouco valor heurístico já que qualquer tipo de conhecimento, personalidade, lembrança ou comportamento poderia ser 'explicado' por ela. Para ser um pouco mais específico, em todos esses assuntos há frequentemente problemas de linguagem. É bastante certo que o termo 'memória' usado em psicologia não tem o mesmo significado daquele usado em ciência da computação. Ao se analisar argumentos e contra argumentos é preciso estar atento ao significado das palavras.

A verdadeira origem do que somos encontra-se encerrado no princípio espiritual que trazemos conosco. Ao se aceitar a reencarnação, não se está a refutar qualquer influência da parte material sobre nosso comportamento. É mais do que razoável esperar que o homem seja o produto de inúmeros fatores: daquilo que ele herdou de seus pais em seu corpo; de seu ambiente, a partir dos exemplos que contou ao longo de sua existência e que teve a chance de imitar, sejam eles bons ou maus; e de suas tendências interiores, trazidas de séculos de experiências sucessivas, que se fundiram e formaram sua personalidade integral. Como não somos seres 'terminados', temos ainda muito a aprender com o ambiente em que vivemos. Essa é uma das razões da reencarnação. Porém, também não somos seres criados instantaneamente por ato arbitrário no momento da fecundação. Temos sim uma 'memória espiritual', que define aquilo que somos e que constitui nossa bagagem, aquilo que daqui levamos e de lá trazemos, junto com outras inúmeras influências materiais e comportamentais.  Mas, acima de tudo, somos livres para escolher e responsáveis por nossos atos, não estando sujeito a qualquer tipo de determinismo externo ou interno, independente de nossas vontades, embora nos reconheçamos limitados em muitas de nossas capacidades.

Agradecimentos Agradeço ao Paulo Neto (www.paulosnetos.net) por muitas referências a casos de reencarnação na web e sugestões ao texto.

Referências

ATENÇÃO!  muitos dos links abaixo não estão mais disponíveis em 2013, mas estão aqui registrados porque constam no artigo original de 2011.

Andrade, H. G. (2002) Você e a reencarnação.  Bauru, SP: CEAC Editora.  p.  100-101.
Blanc M. (1994) Os Herdeiros de Darwin.  Cap 9.  Ed. Página Aberta.
Côrtes, C. e Morais (2002), R. De volta do passado.  IstoÉ n°. 1710, São Paulo: Editora Três, julho, p.  76-78).
Dawkins R.  (1990) The selfish Gene.  2ª. edição.  Oxford University Press.
Kardec A (1991) O Livro dos Espíritos, Ed. FEB, Capítulo IV.  71ª. edição.
Sagan C. (1980) Cosmos.  Cap. XI.  Ed. Francisco Alves.
Stevenson I.  (2010a) Reencarnação, vinte casos.  São Paulo: Vida e Consciência.
Stevenson, I. (2010b) Reencarnação: estudos científicos de casos reais na Europa.  São Paulo: Vida e Consciência.
Stevenson I (997a).  Where Reincarnation and Biology Intersect.  Ed.  Praeger Publishing.
Stevenson I. (1997b) Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects Volume 1: Birthmarks, Ed.  Praeger Publishing.
Stevenson I. (1997c) Reincarnation and Biology: A Contribution to the Etiology of Birthmarks and Birth Defects Volume 2: Birth Defects and Other Anomalies.  Ed.  Praeger Publishing.
Wiki: http://pt.wikipedia.org/wiki/Neurofisiologia_da_memória
Wilson E.  (2000) O.  Sociobiology: the new synthesis.  Ed.  Belknap Press da Harvard University Press.  Não obstante ser considerada uma teoria defunta, a prestigiosa Universidade de Harvard recentemente relançou uma edição comemorativa desta obra.

Para pesquisa na Web (Blogs)

Bíblia Insólita:

Di Bernardi R:

Hari-Om:

Paulo Neto.  Artigo: 'Reencarnação e as pesquisas científicas'.

Casos:

20 de junho de 2013

1/2 - Memória Genética e Reencarnação


Artigo publicado na Revista Espiritismo & Ciência nº. 90, São Paulo: Mythos Editora, nov/2011, páginas 34 a 42. Todas as referências estão no segundo post a ser publicado na sequência.

Acesse a parte 2/2 aqui.

1 - Introdução

É comum que, nos grandes debates entre ideias concorrentes, não se dê suficiente atenção para as consequências 'secundárias' (ou colaterais) da adoção de certas posturas, por causa do afã dos debatedores em se ver reconhecido o mais rapidamente possível como do lado da verdade. Tal é o caso das inúmeras explicações que encontramos do lado dos que criticam a reencarnação. O objetivo principal deste texto, entretanto, não é defender a ideia de reencarnação, mas chamar a atenção para a precariedade de um tipo de argumento que é lançado contra essa ideia.

Reencarnação, de forma muito simples, é entendida como o retorno da 'personalidade' à vida corporal. O Espírito é, na verdade, o ser verdadeiro que tem apenas uma vida: a espiritual. Entretanto, para que possa progredir, é preciso que ele se una à matéria, de onde extrai suas experiências e realiza seu aprendizado.  Assim, a reencarnação não é uma lei fundamental, mas uma consequência de um princípio anterior e mais fundamental que ela. Porém, antes de se aceitar a ideia de reencarnação, pressupõe-se um conjunto de outros princípios tais como: a sobrevivência de 'algo' no ser humano além da morte do corpo físico, que esse 'algo' carrega consigo informação a respeito de sua vida pregressa, mas não só isso, que carrega também toda sua personalidade e memórias de sua vida anterior. É natural que muitos rejeitem a reencarnação como princípio, por falta de uma visão inicial de todos esses conceitos auxiliares.

Para se gerar conhecimento científico de qualidade é preciso, antes de tudo, definir termos e esclarecer conceitos. Ora, nada é mais complexo e difícil de ser definido do que a personalidade humana, sua psicologia, seus traços morais, suas inclinações e sua memória. Ninguém conseguiu até hoje criar um 'medidor de personalidade' por uma razão simples: a personalidade humana é um objeto que não se presta a mensurações por equipamentos ou aparelhos, como é o caso da matéria. Portanto, na discussão e tratamento de fenômenos relacionado a memórias profundas e outras anomalias psicológicas, estamos diante de um assunto para o qual não é tão simples defender determinados pontos de vista a partir, única e exclusivamente, de evidências empíricas. Mesmo assim, muitos pretendam lançar mão de provas conclusivas que, segundo eles, resolveriam o debate.

Existem vários caminhos para se conhecer o princípio da reencarnação:
  1. Via 'filosófica': trata-se da via adotada pela Doutrina Espírita (Kardec, 1991). A reencarnação é aceita como um postulado através do qual é possível prever certas consequências para a vida humana e sua relação com noções de Justiça Divina. É bastante claro que essa via não será aquela trilhada por quem sequer aceita a existência de Deus. Entretanto, os maiores opositores deste caminho são, na sua maioria, religiosos que fundamentam suas crenças na autoridade, tanto da tradição quanto em interpretações particulares de livros considerados sagrados; 
  2. Via 'Empírica'. Diante da fragilidade e falta de concordância (universal) entre especialistas sobre definições do que seja a personalidade humana, trata-se da tentativa de se obter evidências comprobatórias para existência ou não de vidas anteriores. Por essa via se estabelece um debate, entre pesquisadores reencarnacionistas e seus opositores, em sua maior parte materialistas. O materialismo não prevê que algo deva sobreviver à morte do corpo físico. Portanto, as evidências clamadas para a reencarnação, segundo eles, devem ser explicadas a partir de uma variedade de hipóteses tais como: fraude, alucinação, coincidência, clarividência, criptomnésia ou 'memória genética' - termo que será objeto de análise neste texto.
  3. Crença pura: é a via religiosas, ancorada na tradição de textos antigos como os do Hinduísmo e no Budismo, com interpretações diversas daquela expressa pela Doutrina Espírita. 
No século 20, o maior expoente do caminho 2 descrito acima foi o Dr. Ian Stevenson. Ele reuniu uma quantidade fabulosa de casos considerados anomalias psicológicas, sobre pessoas que se lembram de vidas anteriores. Em seus quase meio século de pesquisas, conseguiu juntar 2.600 casos de crianças que se lembraram espontaneamente de outras vidas, tendo publicado várias obras, entre elas: 20 Casos sugestivos de Reencarnação (Stevenson, 2010a, 2010b) e os ainda sem tradução para o português (Stevenson,1997a, 1997b, 1997c; Andrade, 2002; Côrtes, 2002). Essas obras de Stevenson em 2 tomos tem 1200 e 1100 páginas, respectivamente, e representam compêndios com muitos dados sobre evidências de reencarnação.  Obviamente, muitos de seus críticos julgam-se no direito de criticar os trabalhos de Stevenson sem dar nenhuma atenção a essa montanha de dados, o que não é uma atitude razoável e, muito menos, científica. Também fazem parte do grupo 2 inúmeros terapeutas de vidas passadas (TVP). Para consultar diversos casos, ver "Casos" em "Web (blogs)" e o artigo de Paulo Neto Reencarnação e as pesquisas científicas. 

Frequentemente, opositores da reencarnação invocam argumentos de grupos de 'mesmo objetivo' para refutar a reencarnação. Assim, vamos encontrar grupos cristãos sectários que fazem uso de ideias materialistas para refutar a reencarnação, sem se dar conta da postura absurda que acabam envergando.

2 - Memória genética e Eugenia

Da mesma forma que existe claramente descendência de caracteres morfológicos e funcionais entre todas as espécies de seres vivos (incluindo plantas), a memória genética é concebida como uma suposta capacidade de se herdar não só memórias dos antepassados, mas também traços de suas personalidades. Afinal, quem herda a memória, também haveria de herdar o resto, segundo a visão puramente material do ser humano. Não há como separar as duas coisas, o ser humano é um todo integral.

Como dissemos, existe uma dificuldade intrínseca no objeto de estudo: a personalidade humana. Por si só, tal fato seria suficiente para eliminar qualquer tentativa de se explicar o comportamento humano com base em equivalentes de laboratório como ratos ou mesmo planárias (Di Bernardi, ver blog 'Portal do Infinito'). Mesmo assim, a tradição de pesquisa em laboratório e o positivismo costuma extrapolar comportamento de ratos e outros animais para os seres humanos. Mesmo diante de tais dificuldades, alguns biólogos e geneticistas acreditam (Dawkins, 1990; Wilson, 2000) que seria possível relacionar tais traços a informação gravada em nível atômico nos genes. Tal postura tem sua razão de ser na crença materialista para a qual o ser humano, assim como todos os animais, é apenas produto da organização genética. Os genes, segundo essa visão, carregariam toda informação necessária para se 'fazer' um ser humano, o que inclui eventuais 'memórias' passadas, que poderiam induzir determinados comportamentos. Obviamente, essa herança genética seria a responsável não só pela perpetuação de supostas memórias armazenadas nos genes como também traços da personalidade e explicaria as evidências encontradas a favor da reencarnação.

É preciso relembrar a história da ciência frequentemente esquecida, que nos instruí a respeito de debates semelhantes ocorridos no passado não muito distante. Na década de 1970 ficou famosa a teoria de E.  Wilson conhecida posteriormente como Darwinismo Social ou Sociobiologia. Ela pregava um determinismo estrito pelos genes e foi acusada de levar ao racismo científico. Não é difícil ver que, se o ser humano é produto de seus genes, então a competição entre populações de espécies leva inexoravelmente à perpetuação dos mais aptos em todos os sentidos. Assim, não só caracteres físicos e funcionais essenciais para a manutenção da vida são perpetuados, mas também caracteres não físicos tais como: traços da personalidade, caráter, inteligência e até cultura.

A Sociobiologia parte do princípio de que deveriam existir genes que programem os seres humanos para tais traços não físicos.  Assim, existiriam genes para a bondade ou maldade, para a perseverança ou falta de caráter, para o espírito ditatorial ou democrático, ou seja, para toda e qualquer tipo de personalidade, nas mais variadas gradações e disposições.  Esses genes seriam herdados dos antepassados e utilizariam o ser humano como um 'recipiente', fazendo valer seus interesses de perpetuação (Dawkins, 1990).

Se caracteres não físicos podem ser herdados, então existem, de fato, 'raças superiores e inferiores' por uma questão de definição: as 'superiores' seriam aquelas que teriam, em seu conteúdo genético, a maior carga de genes considerados superiores. Tais raças seriam as mais aptas por terem maior inteligência e cultura.  Sociobiologia, Darwinismo Social e memória genética são todos conceitos irmãos que levam diretamente à Eugenia e ao racismo científico (Blanc, 1994). Não são teses aceitas hoje no meio acadêmico, embora possam ser encontrados defensores isolados que tentam abrandar as críticas com um discurso de que a evolução 'é cega' para superioridade ou inferioridade entendida como conceitos com raízes culturais. Discutimos a situação atual na Seção 4.

Continua no próximo post.

22 de outubro de 2011

Memória Genética e Reencarnação

Cada da revista 'Espiritismo & Ciência' (número 90), 
com texto de nossa autoria . Editado pela Mythos.

Seções do artigo

1 - Introdução;
2 - Memória Genética e Eugenia;
3 - Consequências da tese da memória genética para a visão espiritualista do ser humano;
4 - Qual é a situação atual?

5 - Considerações finais.
Agradecimentos
Referências

Descrição

A matéria de capa da revista Espiritismo & Ciência 90 fala sobre memória genética e reencarnação. Esse conceito de memória genética refere-se à suposta capacidade de herdarmos não apenas memórias dos antepassados, mas também suas personalidades. Ele tem sido utilizado para tentar refutar o conceito de reencarnação, mas sem sucesso. A matéria é assinada pelo físico Ademir Xavier. Os passarinhos do bem de Marcio Baraldi, os Vapt&Vupt continuam firmes com suas mensagens de paz e reflexão. A edição também traz comentários e sinopses de livros espíritas, para você escolher sua leitura preferida. José Sola continua com a série de textos a respeito dos livros de Chico Xavier, agora com a obra Há 2000 Anos, uma das mais populares escritas pelo Espírito Emmanuel. Na seção "Desmistificando o Dogma da Reencarnação", o doutor Wladimyr Sanchez responde perguntas dos leitores, aqui com uma longa explanação sobre o conceito de reencarnação que surge no livro Missionários da Luz, de André Luiz. Paulo Neto traz um interessante texto explicando qual a primeira obra espírita que deve ser lida, baseando em informações fornecidas pelo próprio Alan Kardec. Carlos e Carmen Imbassahy abordam as pesquisas científicas que permitem dizer-se que o universo não é criação do Deus religioso que conhecemos. No texto de Rogério Coelho, você poderá ler a respeito da relação entre ciência e religião, a partir do ponto de vista de Allan Kardec e de Joanna de Ângelis.

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13 de setembro de 2011

Uma abordagem estatística para a determinação do tempo de vida entre encarnações sucessivas.


Durante o 7 ENLIHPE (20/8/2011), tivemos a oportunidade de apresentar o trabalho: "Uma abordagem estatística para a determinação do tempo de vida entre encarnações sucessivas."

Como se sabe, o Espiritismo introduzido por A. Kardec foi o primeiro movimento espiritualista no ocidente a compreender a importância da reencarnação. Este é o único mecanismo que pode explicar tanto anomalias observadas na personalidade humana com também fornecer uma visão do mundo mais de acordo com os princípios de justiça natural e equidade. Portanto, é importante compreender as consequências da reencarnação não somente para cada um de nós como indivíduos, mas também como um fenômeno social e, principalmente, demográfico. Assumindo a reencarnação como uma das leis da Natureza que é válida para todos os seres humanos, ela certamente tem consequências coletivas que apenas começamos a vislumbrar.

O objetivo do trabalho foi construir um modelo numérico para calcular o intervalo de tempo entre reencarnações sucessivas de uma individualidade humana O trabalho baseou-se nos seguintes princípios:
  1. Existe uma base de tempo única que pode ser usada para determinar o intervalo de tempo entre duas existências (o que chamamos de 'tempo de erraticidade');
  2. Existe conservação da 'individualidade', isto é, a personalidade humana sobrevive à morte física e conserva sua consciência (que é, de fato, a fonte dessa personalidade). A consciência é conservada em uma unidade não material (ou incorpórea) chamada 'Espírito' (note a letra maiúscula 'E');
  3. O Espírito não pode ser 'destruído' (não existe uma 'segunda morte');
  4. Para cada Espírito está associado um único corpo durante uma encarnação;
  5. A reencarnação implica na existência de competição entre populações desencarnadas distintas no mundo espiritual (que distinguimos entre uma vizinhança no 'plano físico' e de 'outros planos' ou zonas espirituais distantes da Terra);
  6. No plano físico (mundo terreno), cada indivíduo nasce de outros dois. Entretanto, no que concerne à origem dos Espíritos, não se conhece o mecanismo de seu nascimento. De fato, a origem dos Espíritos é um mistério. Para todos os efeitos, podemos assumir que existe um reservatório infinito de individualidades desencarnadas no mundo espiritual (desde que o Universo é infinito);
  7. A existência humana no plano físico é limitada à vida do corpo físico. Não existe um limite para a existência do Espírito (conforme o princípio #3);
Os princípios estabelecidos acima são baseados em questões dadas pelos próprios Espíritos conforme o 'Livro dos Espíritos' (LE). Por exemplo: o princípio #1 está baseado na questão LE#224; o princípio #2  em LE-Q#92 e 150; o princípio #3 em LE-Q#83; o princípio #4 em LE-Q#137; princípio #5 em LE-Q#172 e 173; o princípio #6 em LE-Q#81 e, finalmente, o princípio #7 em LE-Q#68.

No trabalho, fizemos várias predições concernentes à maneira como as populações em ambos os planos físico e espiritual interagem, utilizando um conjunto de assunções adicionais sobre o estado atual da população total. Nós finalmente fizemos alguns cálculos numéricos mostrando que o 'tempo de erraticidade' está oculto na taxa de natalidade da população do plano físico.

O gráfico abaixo mostra a evolução temporal da expectativa de vida no plano físico (esquerda) e o tempo de erraticiadde (direita) em anos para a população brasileira segundo nosso modelo.  Ambos intervalos são dados como função do tempo desde 1970 a 2000.


Como tais predições poderiam ser validadas? Se for possível rastrear uma vida anterior para um grupo de indivíduos (uma população, digamos de 100 pessoas), encontrando-se a data de falecimento anterior - o que, de certa forma, pode ser feito conforme demonstrou I. Stevenson (1966) - o tempo de erraticidade poderia ser estatisticamente calculado uma vez que a data de nascimento da vida presente é conhecida. Isso abriria a possibilidade de se testar nossas assunções, o que caracterizaria uma extensão das teorias de dinâmica populacional (só que agora englobando componentes desencarnadas).

Tais resultados mostram a fertilidade heurística dos princípios espíritas, que não somente admitem a sobrevivência da personalidade à morte física, mas também que ela evolui ao longo de muitas vidas no plano físico.

Referências
  • Kardec A. (1857). 'O Livro dos Espíritos'. Há muitas edições (inclusive eletrônicas) desta obra;
  • Stevenson I. (1966) Twenty Cases Suggestive of Reincarnation. (1966). (Second revised and enlarged edition 1974), University of Virginia Press, ISBN 0813908728.