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1 de dezembro de 2022

Bens, direitos, deveres e obrigações da alma


Nada do que se expressa sobre Jesus nos Evangelhos se refere a coisas terrenas​, ​mas a um conjunto de “negócios espirituais” da alma, seus direitos e obrigações. Emmanuel referiu-se a isso quando comentou em “Vê como vives” [1]:
Com a precisa madureza do raciocínio, compreenderá o homem que toda a sua existência é um grande conjunto de negócios espirituais e que a vida, em si, não passa de ato religioso permanente, com vistas aos deveres divinos que nos prendem a Deus.
Guardados os inúmeros problemas de tradução, textos apócrifos e interpolações mal-intencionadas feitas ao longo do tempo ​que modificaram os Evangelhos originais, é a única interpretação possível para muitos dos ensinos de Jesus no Novo Testamento.

Entretanto, nunca foi intenção de Jesus “reformar” o sistema legal de seu tempo, que tinha regulamento próprio, pois tudo o que Jesus ensinou dizia respeito aos interesses da alma. Assim, por trazer uma nova revelação, seus ensinamentos frequentemente usavam recursos alegóricos. Esses recursos se mostraram eficientes, pois os ensinos morais atravessaram quase que intactos as inumeras versões do Novo Testamento. Neste post, tecemos algumas observações sobre parte da revelação da Justiça Divina trazido por Jesus conforme se pode ler em Mateus 5.

Interpretação espírita de alguns ensinamentos em Mateus 5.

Atenção: para unificar as referências aos textos do Evangelho, em complementação aos versículos extraídos da versão "Almeida revisada", citamos alguns termos equivalentes conforme versão em latim da Vulgata: http://www.drbo.org/lvb/chapter/47005.htm
Qualquer, pois, que violar um destes mandamentos, por menor que seja, e assim ensinar aos homens, será chamado o menor no reino dos céus; aquele, porém, que os cumprir e ensinar será chamado grande no reino dos céus. (Mateus 5:19)
A vida futura da alma é o “reino dos céus” não como lugar, mas como conjunto de bens e direitos a que o Espírito tem acesso após muitos estágios de sua vida encarnada.

Os bens ou direitos ​resultam do cumprimento de obrigações da alma que também são de natureza espiritual. Assim, o “será chamado o menor no reino dos céus” (minimus vocabitur in regno caelorum) ​é um estado possível da alma na vida futura. É “situação processual” perante a Lei Maior de onde se derivam os bens a que tem direito, bem como seus deveres e obrigações.

Com o tempo mudam os interesses e as ações da alma. Seus direitos e deveres precisam refletir suas decisões, conforme ela se aproximar ou se afastar da Lei.  Assim, os que “violam um destes mandamentos, por menor que seja” (qui ergo solverit unum de mandatis istis minimis) e “assim ensinam aos homens” (et docuerit sic homines), ou seja, dão testemunho do erro, são rebaixados por Jesus.   Por outro lado, ele eleva de posição aqueles que os cumprem e que também assim “ensinam aos homens”, ou seja, que os defendem como verdade. E “ensinar aos homens” não é mais relevante que realizar a ação: para Jesus, por óbvio, não basta simplesmente dizer o que deve ser feito, mas dar o exemplo pelo cumprimento correto da lei (qui autem fecerit et docuerit).

As Bem-aventuranças compõem a parte principal de seus mandamentos anunciados por ele no Sermão do Monte. Se a posição pode ser abaixada ou elevada é porque não há posições absolutamente eternas e imutáveis nos estágios da alma. Disso resulta que não há penas eternas igualmente.
Porque vos digo que, se a vossa justiça não exceder a dos escribas e fariseus, de modo nenhum entrareis no reino dos céus. (Mateus 5:20)
A justiça dos “escritas e fariseus” (scribarum et pharisaeorum) representa o sistema jurídico de todos os tempos, tomado por Jesus como comparação para a Justiça Divina. Mas, essa justiça se baseava na lei de Moises que supostamente provinha do próprio Deus. Ela é, porém, imperfeita e incompleta. E mais: não corresponde à lei Divina anunciada em parte como revelação por Jesus. Portanto, adverte que a nova justiça entre seus reais seguidores deve “exceder” àquela dos escribas (quia nisi abundaverit justitia vestra plus quam scribarum), ainda que essa última fosse considerada de origem divina. 
Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás; mas qualquer que matar será réu de juízo. (Mateus 5:21)
O cânone existente proibia o assassinato (non occides). Ocorrendo esse e verificado os fatos, o indivíduo culpado se tornava “réu no juízo” (reus erit judicio) e deveria ser julgado pela justiça. Mas qual justiça? Exatamente a dos “escritas e fariseus”, ou o sistema jurídico que define tipos de punição conforme o crime realizado.
Eu, porém, vos digo que qualquer que, sem motivo, se encolerizar contra seu irmão, será réu de juízo; e qualquer que disser a seu irmão: Raca, será réu do sinédrio; e qualquer que lhe disser: Louco, será réu do fogo do inferno. (Mateus 5:22)
Assim interpôs três possíveis “penas” a três crimes que, na verdade, resume-se a um só a partir da postura mental do Espírito. O rol das “transgressões imputáveis” é expandido na lei Divina, ainda que a morte não lhes suceda como consequência.  Posteriormente, essas transgressões seriam estendidas por Jesus ao incluir o pensamento no mal

As violações enumeradas e suas penas crescem a partir de um impulso violento de oposição: a cólera “contra seu irmão” (quia omnis qui irascitur fratri suo), a agressão verbal simbolizada pelo “Raca” e, depois, “Louco” (fatue).  E, para cada uma delas, os julgamentos: 
réu no juízo (reus erit judicio), 
réu no sinédrio (reus erit concilio) e 
réu no fogo do inferno (reus erit gehennae ignis). 
Essa última comporta a tradução opcional “réu no fogo do Geena”, entendido como uma localidade na Jerusalém antiga que havia se tornado um depósito de lixo. É uma referência ao lugar “mais ínfimo” de uma cidade, não necessariamente ao “fogo eterno”, mesmo porque Jesus posteriormente esclarece como sair de lá (ver mais adiante). Quem preferir a interpretação da eternidade das penas está preparado para o “fogo eterno” ao chamar seu irmão de “Louco”? O Geena correspondia ao Vale de Hinom (Geh Ben-Hinom) na Jerusalém dos tempos de Jesus [2]. Esse era o local onde, em uma época mais remota, crianças eram sacrificadas no fogo em adoração ao deus Moloch [2][3]. 
Portanto, se trouxeres a tua oferta ao altar, e aí te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti. (Mateus 5:23)
Reconciliar-se com o próximo é a primeira obrigação antes de se buscar adorar a Deus. Importa se lembrar se “teu irmão tem alguma coisa contra ti” (quia frater tuus habet aliquid adversum te), do contrário de nada valem as oferendas. É estado da mente que pede o exame da consciência: há alguém que tenha algo contra mim? E o "opositor" não é menos que um irmão (frater) para Jesus, pois não pode haver oposição senão em razão de um desentendimento transitório. Portanto, como todos são irmãos em essência, todos deverão agir como irmãos. Mas quando? Depois da reparação.
Deixa ali diante do altar a tua oferta, e vai reconciliar-te primeiro com teu irmão e, depois, vem e apresenta a tua oferta. (Mateus 5:24)
O “deixa ali diante do altar a tua oferta” (relinque ibi munus tuum ante altare) é mera ação ritual ou mecânica se apartada do cuidado com os próprios atos e suas consequências para quem quer que seja.
Concilia-te depressa com o teu adversário, enquanto estás no caminho com ele, para que não aconteça que o adversário te entregue ao juiz, e o juiz te entregue ao oficial, e te encerrem na prisão. (Mateus 5:25)
Trecho de relevância ímpar, pois confere a alma o poder de se "livrar do julgamento" ao se reconciliar "depressa" com seu adversário. Não só implicitamente não condena o homem a qualquer eternidade penal, mas o exime de juízo verificado sua capacidade de congraçamento e concórdia com seu irmão transformado em inimigo. A alegoria é clara na imagem do "adversário que te entrega ao juiz, e o juiz te entrega ao oficial" (ne forte tradat te adversarius judici, et judex tradat te ministro).
Em verdade te digo que de maneira nenhuma sairás dali enquanto não pagares o último ceitil. (Mateus 5:26)
Porém, uma vez "condenado", tão pouco Jesus afirma ser impossível sair de lá, mas que a saída se condiciona ao pagamento do “último ceitil” (novissimum quadrantem), desde que, como visto, não se reconcilie antes com o adversário.

Portanto, não há penas eternas, mas multa calculável e exigível como pagamento pelos delitos listados, até o último “ceitil”, ou seja, “até o último centavo”. É obrigação executada de forma parcelada, em caráter compulsório embora possa ser abrandada conforme o grau de reconciliação. 
Eu, porém, vos digo, que qualquer que olhar para uma mulher com intenção impura, em seu coração, já cometeu adultério com ela. (Mateus 5:28)
O regramento da época instituía uma pena para o adultério (non moechaberis). Jesus porém anuncia que o mero pensamento de cobiça já é adultério, um princípio que pode ser estendido para todo o sentimento no mal que se abriga no coração (in corde suo). Porém, qualquer código de justiça moderno considera inimputáteis quem cometer delitos "apenas pelo pensamento". Uma vez mais os reais seguidores de Jesus devem "exceder" a justiça comum da sociedade em que vivem.
Portanto, se o teu olho direito te escandalizar, arranca-o e atira-o para longe de ti; pois te é melhor que se perca um dos teus membros do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:29) 
E, se a tua mão direita te escandalizar, corta-a e atira-a para longe de ti, porque te é melhor que um dos teus membros se perca do que seja todo o teu corpo lançado no inferno. (Mateus 5:30)
Note-se bem: essa não é uma pena imposta sobre a alma. Do contrário, é o corpo que sofre quando Jesus afirma que "todo o teu corpo (seja) lançado no inferno" (totus corpus tuum mittatur in gehennam). É o Vale de Hinom novamente figurado como local de julgamento e pena, tal como nos delitos de Mateus 5:22. Se o corpo sofre é porque a pena é aplicada durante a vida, mas quantos crimes ficaram impunes pela finitude da vida humana se considerada como uma só? 

Sobre essas passagens, comenta Kardec [4]:
Figura enérgica esta, que seria absurda se tomada ao pé da letra, e que apenas significa que cada um deve destruir em si toda causa de escândalo, isto é, de mal; arrancar do coração todo sentimento impuro e toda tendência viciosa. Quer dizer também que, para o homem, mais vale ter cortada uma das mãos, antes que servir essa mão de instrumento para uma ação má; ficar privado da vista, antes que lhe servirem os olhos para conceber maus pensamentos. Jesus nada disse de absurdo, para quem quer que apreenda o sentido alegórico e profundo de suas palavras. Muitas coisas, entretanto, não podem ser compreendidas sem a chave que para as decifrar o Espiritismo faculta. (grifos nossos)
O vale de Hinom da Jerusalém moderna.
Foto: wikipedia.
Os judeus do tempo de Jesus tinham como lei a necessidade de  conceder divórcio (libellum repudii) à esposa abandonada, numa época em que a mulher era considerada propriedade do marido. Em oposição a isso, Jesus ensina:
Eu, porém, vos digo que qualquer que repudiar sua mulher, a não ser por causa de prostituição, faz que ela cometa adultério. (Mateus 5:32)
pelo que se aprende que o delito se inicia no repúdio (rejeição, desprezo, desamparo), muito mais sutil, e não pelo abandono. Como Jesus sabia que os homens não se casavam em regime de amor incondicional, assinalou uma exceção "a não ser por causa de prostituição" (excepta fornicationis causa). 

Até que a sociedade aprendesse o regime de reciprocidade que existe no casamento como produto de direitos e obrigações iguais entre os cônjuges, 2000 anos se passariam. Porém, a recomendação de Jesus continua intacta: o repúdio ao parceiro, sistemático e talvez diário, é produto de um estado mental que se inicia muito antes da separação.

O regramento judaico proibia o "falso testemunho" (non perjurabis), e exigia o fiel cumprimento do que fosse prometido "diante do Senhor" (autem Domino).
Outrossim, ouvistes que foi dito aos antigos: Não perjurarás, mas cumprirás os teus juramentos ao Senhor. (Mateus 5:33)
Jesus elimina a necessidade desse juramento e simplifica consideravelmente a atitude  do indivíduo diante dos outros:
Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto provém do mal. (Mateus 5:37)
Além de condenação da mentira, é uma lição difícil aos que se consideram em "íntimo contato com Deus" e que o tomam como fiador nas ações ordinárias da vida.

O ápex da Lei Divida sintetizado por um novo mandamento.

E assim se chega ao topo dos ensinamentos de Jesus em Mateus 5:44:
Eu, porém, vos digo: amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem, (Mateus 5:44)
que é lição em flagrante oposição ao que se aprende seja desde o berço ou por instinto: "amar nosso próximo e odiar nossos inimigos" (diliges proximum tuum, et odio habebis inimicum tuum). É novísima e suprema lei áurea revelada aos homens e justificada por Jesus como esforço necessário para se "aproximar de Deus":
Sede vós, pois, perfeitos,como é perfeito o vosso Pai, que está nos céus. (Mateus 5:48)
Mas, no "sede vós, pois, perfeitos" (estote ergo vos perfecti) ninguém atinge o estado final de uma hora para outra. Por trás dessa imagem está o imenso caminho que a alma percorre até alcançar seu destino. Kardec comenta seu verdadeiro significado na medida do grau de caridade contido nas ações da alma [5]:
Não podendo o amor do próximo, levado até ao amor dos inimigos, aliar-se a nenhum defeito contrário à caridade, aquele amor é sempre, portanto, indício de maior ou menor superioridade moral, donde decorre que o grau da perfeição está na razão direta da sua extensão. 
Cumprir a lei de caridade  é suprema obrigação que a alma não se livra em sua vida maior, pois essa lei condensa em si todos os mandamentos. É um princípio universal que regula a vida do Espírito.

Em conclusão

Ao se (re)encarnar, participa-se de uma nova vida na Terra, sem que a vida real (a "vida eterna" do Espírito) deixe de exercer seus efeitos sobre a alma. 

Assim, dois regramentos sujeitam as ações: o dos homens (de natureza terrena) e a do "céu" (de natureza Divina).  No primeiro caso, extinta a vida do corpo, extintos são os bens e os direitos, deveres e obrigações. No segundo, bens, direitos, deveres e obrigações subsistem, mas de uma natureza inteiramente diversa daquela concebida pela justiça de qualquer época da Humanidade.

Em seus ensinamentos e por meios figurados, Jesus revelou parte das regras dessa nova justiça maior. Antes de tudo, ensinou ele que, para agir conforme tais princípios (ainda que de modo imperfeito), é necessário "exceder" à justiça dos homens. 

Dentre as lições está a da oposição ao "pensamento no mal". Mas, é impensável, em qualquer regramento jurídico humano, pretender punir alguém por simplesmente pensar mal de outrem. Pensar no mal, mesmo sem agir, indica natureza ainda pouco adiantada da alma (o que é verdade para a imensa maioria dos humanos!). Porém, é quando o pensamento no mal se torna ação no mal que o próximo é comprometido e se adquire uma nova obrigação. Surge então o dever de reparação, que é ensinada por Jesus na alegoria do pagamento posterior a um julgamento conforme a gravidade da pena.

Mas, sejamos claros: faz Jesus referência a um pagamento pecuniário?  Obviamente que não, antes isso é uma confirmação do caráter figurado das comparações que usou e que foram captadas quase que sem distorções pelos evangelistas. Esse pagamento é obrigação de natureza espiritual, que não se extingue, portanto, "na vida eterna" –  entendida como a própria vida maior e imperecível da alma em oposição a sua vida terrena ou encarnada – até que seja quitada em sua totalidade.

Naturalmente, só é possível compreender esse sistema de bens, direitos, deveres e obrigações transcendentes em um juízo mais dilatado da existência humana. 

Nesses termos Jesus ensinou como geralmente se sai do terrível Geena. Ao cumprir seus ensinamentos, porém, instruiu a seus seguidores como nunca entrar lá. 

Na nova revelação trazida pelo Espiritismo, o pagamento é realizado em inúmeras existências e o Geena e seu fogo são aqui mesmo na Terra. Dessa forma se regulam na eternidade da vida das almas os crimes, dos mais simples aos mais complexos e graves, já cometidos em toda a Humanidade.

Referências

[1] Emmanuel. Vinha de Luz. Psicografia de F. C. Xavier Ed. FEB, 
[2] Negev, A e Gibson, S. (2001). Hinnom (Valley of). Archaeological Encyclopedia of the Holy Land. Nova Iorque e Londres: Continuum. p. 230. ISBN 0-8264-1316-1.
[3] Wikipedia. Valley of Hinnom (Gehenna). https://en.wikipedia.org/wiki/Valley_of_Hinnom_(Gehenna)
[4] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Bem-aventurados os que têm puro o coração: escândalos). Parágrafo 17. Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/pt/6479
[5] Kardec. O Evangelho segundo o Espiritismo. Capítulo VIII (Sede Perfeitos. Caracteres da perfeição). Versão IPEAK: https://www.ipeak.net/site/estudo_janela_conteudo.php?origem=6518&&idioma=1

1 de junho de 2020

A que se deve muito do excesso de desgraças dos últimos tempos (*)

Uma parte de "Cristo carregando a cruz" de
Hieronymus Bosch (1490)


























 
Ai do mundo por causa dos escândalos; pois é necessário que venham escândalos; mas, ai do homem por quem o escândalo venha. (Mateus 18:6)

Não nos dirigimos nem aos curiosos nem aos apreciadores de escândalo, mas àqueles que querem seriamente instruir-se. (A. Kardec "O Céu e o Inferno", Capítulo 1, "A passagem").

É difícil hoje em dia não se comover com os dramas, desgraças e análises pessimistas destilados todos os dias por inúmeros meios de informação. Em parte esses resumos diários, excessivamente ruidosos e carregados de infortúnios alheios, revelam um excesso de sensacionalismo, potencializado pelo alcance e rapidez das mídias sociais, dos meios de comunicação digital em um mundo cada vez mais conectado. Nunca foi tão fácil e rápido noticiar. Um verdadeiro exército de jornalistas improvisados bombardeiam todos os dias as pessoas com informações, na sua maioria sem qualquer utilidade prática, mas que servem para definir a pauta do ânimo de cada dia.

Grupos com interesses altamente específicos, indivíduos desqualificados e propagandistas sem escrúpulos têm seus multiplicadores em uma guerra silenciosa, cujo objetivo é captar o máximo interesse do público e atingir grupos e inimigos diversos. O analfabetismo filosófico e a incapacidade de perceber mesmo as mais grosseiras fraudes argumentativas acabam ressoando entre multidões imensas, sedentas de informação, mas cativas de sua própria falta de formação e equilíbrio. 

Em comum os informantes seguem o mais puro materialismo, a ausência completa de discernimento sobre a vida futura. A noção de justiça que transmitem é quase sempre a do aqui agora, a dos ânimos embrutecidos na revolta pelo não cumprimento aparente de uma justiça idealizada, que muda conforme os interesses.  De fato, não faz sentido, entre os que nada creem, exigir justiça: se nada existe para além dessa vida, por que se preocupar? A justiça por eles cobrada é uma convenção transitória em um universo brutal em que os desejos, aspirações e mais nobres intenções humanas desfazem-se lentamente como espuma para cada criatura que morre…  

Diante desse quadro em que o nada é propaganda velada de todos os dias, faz bastante sentido ver se espalharem os crimes, as mais torpes transgressões, as mais incríveis iniquidades e o aumento do suicídio entre os que não conseguem suportar.  É como se estivesse em curso uma gigantesca catástrofe anunciada, em que cada um pensa poder sobreviver, faz o que pode para garantir os seus  direitos, e passa por cima de qualquer um, no salve-se quem puder de cada dia.

Afogados nesse verdadeiro apocalipse de desgraças, nunca foi tão necessário o discernimento - separar o joio da verdade do trigo da ilusão - e o equilíbrio moral - não se deixar abater pela revolta, que cria o estado de desânimo e pode trazer para nossas vidas problemas que são dos outros. Ainda mais porque, muitos dos que clamam por justiça, porque querem ser vistos, pregam o ódio como método. Ora, é bastante óbvio que nada de bom pode resultar de meios que pregam o ódio de forma sistemática, ou que acreditam poder gerar o bem fazendo o mal.

A antítese da combinação mórbida do ódio com o nada é o amor e a certeza da vida futura. Contra essas duas crenças, por que se impõe a dúvida? Porque a certeza da eficácia dessas duas verdades é também um bem que o indivíduo deve conquistar todos os dias, se a ele falta os recursos internos. Esses recursos são semeados ao longo de sucessivas vidas, razão porque eles se encontram tão desigualmente distribuídos entre as pessoas. Não se trata, portanto, de uma injustiça desde o nascimento. Aqui vemos um sujeito que em nada acredita, que nutre rancor contra seu semelhante ou que segue amargurado, sem ânimo para a vida. Mas eis que, ao seu lado, alguém o suporta bravamente, escorando-se na fé ou em pequenos atos de gratidão, muitas vezes desapercebidos, mas que pouco a pouco surtem efeito.  Esse quadro multiplica-se aos milhões em todas as partes do globo.

Essa é também a principal razão porque a Humanidade, não obstante todas as conquistas tecnológicas, continua em sua maioria crente em Deus através das inúmeras religiões, que têm suas próprias formas de conceber a vida futura. O que seria do mundo se não fosse a fé que conforta e permite viver? Independente de como concebem Deus e o futuro no além túmulo, essa é a principal razão porque todas as religiões, em certo sentido profundo, estão certas ao mesmo tempo. Investem  a seu modo na certeza da vida maior, adaptadas conforme a formação e o grau de discernimento de cada pessoa. Não se deve imputar às religiões (ou seja, às doutrinas que professam) a culpa pelos males praticados em seu nome: de fato, tratam-se de aberrações que surgem quando a incúria e a iniquidade reinterpretam do seu jeito as lições da vida superior. As distorções observadas se explicam porque alguns religiosos apenas se apegam intelectualmente a uma verdade maior e continuam a viver do mesmo jeito. Ainda assim, quem poderia garantir que não seriam muito piores se não fosse a parca luz que pregam? 

Em resumo, temos como certo que é "necessário o escândalo", pois ele faz parte do processo de aprendizado a que cada pessoa está sujeito neste mundo de testes morais incessantes. Mas, entre ser afetado pela onda do mal e viver com serenidade, podemos escolher semear a certeza de que o amor e a vida futura são patrimônios inalienáveis da alma dos quais somos todos herdeiros no futuro. O quão distante esse futuro se encontra, depende inteiramente de nós. 

5 de fevereiro de 2016

O texto mais importante do "Evangelho segundo o Espiritismo"

"A luz do Tabor". C. H. Bloch (1800).
O consolador... ele vos ensinará todas as 
coisas e vos fará lembrar tudo o que disse. (João, 14:26)

O que o homem destroi ou mata, 
a lei de Deus (que é a lei da Natureza) 
recria e reconstrói em outro lugar.

Qual é o texto mais importante no "Evangelho segundo o Espiritismo" (ESE)? Por "importância" entendemos um grau de relevância que certamente depende do momento que vivemos. Sugerimos aqui a leitura de um texto exemplar, motivado não só pelos ataques terroristas recentes em nome da religião, mas também pelos sempre presentes problemas humanos da sobrevivência e significado da vida.

Lançado por Allan Kardec em 1864 como uma nova interpretação dos Evangelhos, o "Evangelho segundo o Espiritismo" (ESE) (em frances L'Évangile Selon le Spiritisme) é um compêndio de máxima de Cristo interpretadas de acordo com o ensinamento dos Espíritos no contexto dos movimentos espírita e espiritualista que apareceram na Europa no último quartel do século XIX.  

Mas aqui um situação curiosa se nos apresenta. Os ensinos dos Espíritos sempre foram rejeitados pela imensa maioria das denominações cristãs (protestantes e católicas), tanto com base nas implicações desses ensinos (aceitação da reencarnação, por exemplo, é vista como a negação desses credos), como nas proibições existentes no Velho Testamento de se invocar Espíritos. Se Espíritos não podem ser invocados é porque eles existem, mas, ainda assim, a proibição foi mantida como um dogma que contrasta claramente com tantos outros abandonados pela sociedade moderna. Além disso, a internet complicou ainda mais a situação porque agora podemos contactar muitas outras pessoas ao redor do planeta, pessoas que pertencem a culturas com ideias muito diferentes em questão de religião, o que reduz ainda mais a importância de se manter uma postura dogmática.

Ao invés disso, o ensino dos Espíritos expõe o ridículo e o erro das interpretações presentes dos ensinos de Cristo e de muitas outras religiões dogmáticas que vieram depois. O Espiritismo é o novo consolador, o "advogado" que veio para restabelecer todas as coisas e relembrar o que Cristo disse, mas que foi esquecido. Avanços na ciência tornaram tópicos como mediunidade e reencarnação possibilidades tangíveis a continuamente ameaçar religiões estabelecidas de base dogmática. Que visão religiosa poderia atualizar o pensamento diante das conquistas da ciência? Que nova doutrina pode fornecer bases sólidas para a aceitação dos ensinos de Cristo depois de tantas interpretações equivocadas? 

ESE Capítulo 2: Meu Reino não é deste Mundo. "Um ponto de vista". 

Na seção que abre o Capítulo 2 ("Meu Reino não é deste Mundo"), "A Vida Futura", Kardec esclarece porque o assunto desse capítulo é de maior importância:
Esse princípio pode, portanto, ser tomado como o eixo do ensino do Cristo, pelo que foi colocado num dos primeiros lugares a frente desta obra. É que ele tem de ser o ponto de mira de todos os homens; só ele justifica as anomalias da vida terrena e se mostra de acordo com a justiça de Deus. 
Aceitar e entender bem a vida futura é um ponto crucial, uma "bifurcação" de pensamento que está destinada a mudar a Humanidade para sempre. Sem considerar a falta de aceitação universal desse princípio, a sobrevivência é a única possibilidade de acordo com a Justiça Divina ("Ninguém poderá ver o Reino de Deus se não nascer de novo", ESE Capítulo 4 e Fig. 1).  A outra opção é o materialismo e a não existência eterna. Com a certeza na vida futura - assim como os detalhes de sua realidade ("de uma maneira clara e precisa") - fornecida de forma científica, a Humanidade alcança um novo patamar, uma nova compreensão da vida bem como outro objetivo.

Fig. 1 A noção da reencarnação é a chave para se reestabelecer o significado original dos ensinamentos de Cristo e para se sustentar a ideia básica da justiça Divina, não importa sua consequência para o dogma estabelecido. Ver ESE, Capítulo 4. O que o homem destrói e mata, a lei de Deus (que é a lei natural) recria e reconstrói em outra parte. 

O texto abaixo intitulado "Ponto de Vista" foi escrito por Kardec e representa uma argumentação brilhante que sumariza as consequências e as implicações lógicas da sobrevivência. Lembramos que esse texto foi escrito antes de 1864, portanto antes da fundação da "Sociedade de Pesquisa Psíquica" em Londres pelos pais fundadores da pesquisa psíquica ou do movimento teosófico. Esse trecho do ESE testifica a profundidade de pensamento de Kardec já no terceiro quartel do século XIX como conclusão de sua própria pesquisa no assunto.
A ideia clara e precisa que se faça da vida futura proporciona inabalável fé no porvir, fé que acarreta enormes consequências sobre a moralização dos homens, porque muda completamente o ponto de vista sob o qual encaram eles a vida terrena. Para quem se coloca, pelo pensamento, na vida espiritual, que é indefinida, a vida corpórea se torna simples passagem, breve estada num país ingrato. As vicissitudes e tribulações dessa vida não passam de incidentes que ele suporta com paciência, por sabê-las de curta duração, devendo seguir-se-lhes um estado mais ditoso. À morte nada mais restará de aterrador; deixa de ser a porta que se abre para o nada e torna-se a que dá para a libertação, pela qual entra o exilado numa mansão de bem-aventurança e de paz. Sabendo temporária e não definitiva a sua estada no lugar onde se encontra, menos atenção presta às preocupações da vida, resultando-lhe daí uma calma de espírito que tira àquela muito do seu amargor. 
Pelo simples fato de duvidar da vida futura, o homem dirige todos os seus pensamentos para a vida terrestre. Sem nenhuma certeza quanto ao porvir, dá tudo ao presente. Nenhum bem divisando mais precioso do que os da Terra, torna-se qual a criança que nada mais vê além de seus brinquedos. E não há o que não faça para conseguir os únicos bens que se lhe afiguram reais. A perda do menor deles lhe ocasiona causticante pesar; um engano, uma decepção, uma ambição insatisfeita, uma injustiça de que seja vítima, o orgulho ou a vaidade feridos são outros tantos tormentos, que lhe transformam a existência numa perene angústia, infligindo-se ele, desse modo, a si próprio, verdadeira tortura de todos os instantes. Colocando o ponto de vista, de onde considera a vida corpórea, no lugar mesmo em que ele aí se encontra, vastas proporções assume tudo o que o rodeia. O mal que o atinja, como o bem que toque aos outros, grande importância adquire aos seus olhos. Àquele que se acha no interior de uma cidade, tudo lhe parece grande: assim os homens que ocupem as altas posições, como os monumentos. Suba ele, porém, a uma montanha, e logo bem pequenos lhe parecerão homens e coisas. 
É o que sucede ao que encara a vida terrestre do ponto de vista da vida futura; a Humanidade, tanto quanto as estrelas do firmamento, perde-se na imensidade. Percebe então que grandes e pequenos estão confundidos, como formigas sobre um montículo de terra; que proletários e potentados são da mesma estatura, e lamenta que essas criaturas efêmeras a tantas canseiras se entreguem para conquistar um lugar que tão pouco as elevará e que por tão pouco tempo conservarão. Daí se segue que a importância dada aos bens terrenos está sempre em razão inversa da fé na vida futura.
Mas "se toda a gente pensasse dessa maneira, dir-se-ia, tudo na Terra periclitaria, porquanto ninguém mais se iria ocupar com as coisas terrenas" continua Kardec, como que prevendo uma contra-argumentação na forma de um moderno mergulho na "idade das trevas" com a aceitação da sobrevivência. Contra isso, Kardec considera: 
Não; o homem instintivamente, procura o seu bem-estar e, embora certo de que só por pouco tempo permanecerá no lugar em que se encontra, cuida de estar aí o melhor ou o menos mal que lhe seja possível. Ninguém há que, dando com um espinho debaixo de sua mão não a retire, para se não picar. Ora, o desejo do bem-estar força o homem a tudo melhorar, impelido que é pelo instinto do progresso e da conservação, que está nas leis da Natureza. Ele, pois, trabalha por necessidade, por gosto e por dever, obedecendo, desse modo, aos desígnios da Providência que, para tal fim, o pôs na Terra. Simplesmente, aquele que se preocupa com o futuro não liga ao presente mais do que relativa importância e facilmente se consola dos seus insucessos, pensando no destino que o aguarda. (Parágrafo 6)
Além da defesa de Kardec do bem estar do homem citado acima, poderíamos acrescentar a importância de se compreender bem as condições operacionais da vida futura. Pois ela não é um estado conseguido de graça, não pode ser igualada à entrada em um paraíso ou, do contrário, a um estado de eterna separação do bem eterno conforme ainda ensinam muitas concepções cristãs. O esforço contínuo que a alma deve fazer para progredir torna cada segundo bem gasto nesta vida material uma benção e uma oportunidade que nunca deve ser desprezada. Para Espíritos ainda em evolução - uma condição de praticamente toda a Humanidade - a vida futura é, de certa forma, uma garantia de retorno à vida material, de forma que quanto mais o ser se dedica a melhorar a si mesmo, ajudando os outros, tanto mais rápido ele é capaz de se libertar deste mundo. Do contrário, quanto mais uma pessoa susta o progresso destruindo, matando ou prejudicando seu próximo, tanto mais lenta será sua capacidade de lidar com a vida futura: ele terá que restituir tudo o que destruiu porque assim exige a lei Natural.

Não existe avanço instantâneo da alma, não há entrada fácil na "Glória Eterna" e isso é, compreensivelmente, bastante combatido pelo pensamento cristão tradicional. Entretanto, é ainda mais claro que a vida futura, entendida em dimensão mais dilatada, dificilmente imporá à Humanidade um retorno a uma idade de descuidados com a vida material. Ao invés disso, a evolução requer cuidado e atenção com a presente vida em todos os aspectos, tanto morais como materiais. 

Referências

(1) A. Kardec. "O Evangelho segundo o Espiritismo. As citações do ESE apresentadas neste texto foram reproduzidas de versões do site www.ipeak.com.br.