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2 de março de 2024

Por que educação ambiental e ecologia são relevantes para o movimento espírita? (Parte I)

 
Isso parece simples: já não cantamos nosso amor por e como obrigação para com a terra dos livres e a morada dos bravos? Sim, mas exatamente o que e quem amamos? Certamente não o solo, que sem qualquer ordenamento despachamos rio abaixo. Certamente não as águas, que assumimos não ter qualquer função a não ser para girar turbinas, flutuar barcaças e transportar esgoto. Certamente não as plantas, das quais exterminamos comunidades inteiras sem pestanejar. Certamente não os animais, cujas maiores e mais belas espécies extirpamos. Uma ética da terra, é claro, não pode impedir a alteração, gestão e uso desses "recursos", mas afirma seu direito à existência continuada, e, pelo menos em alguns pontos, sua existência continuada em seu estado natural. (A. Leopold, “A ética da terra”).
Pode-se considerar a interação do indivíduo - espírito encarnado, no estágio de desenvolvimento moral do ser humano - como um conjunto de relações que ele tem consigo mesmo, com Deus e com o que está fora dele. Em termos mais específicos:
  • A relação do indivíduo com ele mesmo: o que sei sobre mim, quem penso que sou e como devo regular minhas ações para me beneficiar em inúmeros sentidos, por exemplo, moralmente. É a ética do "conhece-te a ti mesmo".
  • A relação do indivíduo com outrem: com o meu próximo; como devo me portar diante dos outros e quais são meus direitos e deveres. É a ética da "lei áurea" e do "Sermão das Bem-aventuranças" [2], que governa minhas ações para com o próximo, e de onde se origina a verdadeira felicidade, ainda que não reconhecida pela jurisprudência humana da atualidade.
  • A relação do indivíduo com a sociedade: qual o meu papel em minha comunidade e país? Quais são meus direitos e deveres do ponto de vista social? Democracia, direito à vida, ao trabalho e as diferentes obrigações (pagamento de impostos etc) refletem essa relação.
  • A relação do indivíduo com Deus: Como minha crença em um poder superior (qualquer que ele seja), regula minhas expectativas em relação ao futuro e diferem em intensidade e teor daqueles que não creem nesse poder? É o domínio da ética da espiritualidade e da Religião.
  • E a relação do indivíduo com o ambiente que o cerca.
À medida que progride moralmente, modifica-se a maneira como essas relações ocorrem. O indivíduo se sente cada vez menos dono do que tem a sua volta. Evoluimos com relação à como nos entendemos, a como tratamos nossos semelhantes, a como vivemos em sociedade e sobre como entedemos e nos relacionamos com Deus. Porém, como temos evoluído em relação ao meio ambiente? Falta ainda, no dizer de Aldo Leopold, uma "Ética da terra" [1], que regularia nossa relação com o meio natural.

Isso porque o ambiente que cerca o homem sempre foi visto como sua propriedade. Mesmo há pouco tempo, como propriedades também foram consideradas vidas de agrupamentos humanos inteiros escravizados por uma minoria dominante. 

Ora, é evidente que a evolução espiritual deve levar a uma mudança radical na maneira como consideramos esse ambiente. Passaremos a considerar a Natureza e suas vastas reservas de energia, matéria e vida, como entidades a serem respeitadas. Os animais, vegetais e todos os recursos abióticos não são apenas "propriedades" a serem exploradas e exauridas, mas recursos que devem ser aproveitados com a menor interferência e com o maior respeito possíveis. Essa não interferência leva a duas obrigações: utilizar-se da Natureza apenas naquilo que é necessário e repor o que for retirado. 

Essas obrigações se vinculam em torno dos conceito de sustentabilidade: 
  • é qualquer sistema capaz de subsistir indefinidamente a partir de seus próprios recuros ou, pelo menos, por um longo período de tempo. 
  • Ser sustentável significa abastecer-se conforme a medida do necessário - porque necessário é minimizar o impacto da interferência no ambiente natural - sem subprodutos que levem à deteriorização desse ambiente. 
Qualquer coisa que exceda ao necessário é consequência da ignorância e do egoísmo. E o egoísmo é marca de Espíritos ainda inferiores. Assim, ascender espiritualmente é desvencilhar-se do apego que leva à tentativa de dominação de tudo que é externo a nós.

Apenas muito recentemente a necessidade de preservação começou a ser valorizada pelas sociedades mais desenvolvidas. Na esteira dos impactos negativos sobre o clima e das ameaças evidentes ao equilíbrio econômico, setores mais esclarecidos passaram a considerar a necessidade de coordenação global para se preservar o meio-ambiente.  

Naturalmente, a discussão em torno da "ética da Terra" pode ganhar muito com a visão espiritualista, além do que a argumentação materialista pode fazer (como em [3]). Se, do ponto de vista materialista é necessário respeitar a Natureza por uma "necessidade ecológica'', "considerações morais" ou "valor intrínseco da vida", para os espiritualistas a vida deve ser respeitada simplesmente porque nossa essência é espiritual e compartilhamos com os seres vivos uma fraternidade universal. 

Assim, para os espíritas, ações de preservação ambiental não podem ter por base apenas a constação de degradação e ameaças ao clima. Elas são o resultado de: 
  • Uma concepção mais dilatadas que vê o homem como uma parte ínfima da Natureza e não seu senhor. 
  • Logo, o mesmo respeito que devemos aos semelhantes, devemos ao ambiente que nos cerca. É uma extensão da lei do amor ao próximo.
Esse respeito se fundamenta na grande irmandade que liga todos os seres, inclusive aqueles que vivem em outros mundos. Pois essa grande "fraternidade universal" é formada por uma vasta cadeia de ecosistemas e seres que se extendem por todo o Universo em marcha progressiva em direção à angelitude e a Deus.

Referências

[1] LEOPOLD, A. A ética da terra. Appris Editora; 1ª edição,, 2020. ISBN-13 ‏ : ‎ 978-6555231410

[2] Ver o post "Bens, direitos, deveres e obrigações da alma",  https://eradoespirito.blogspot.com/2022/12/bens-direitos-deveres-e-obrigacoes-da.html

[3]  CARDOSO, André. Os Fundamentos da Ética da Terra e o Problema do Ecofascismo. Sofia, v. 12, n. 1, 2023. https://doi.org/10.47456/sofia.v12i1.40454.


22 de fevereiro de 2023

Experiências fora do corpo na Epilepsia


A epilepsia é uma doença que afeta o sistema nervoso e que se caracteriza pela existência de crises recorrentes [1]. Durante essas convulsões epiléticas pode haver perda da consciência concomitante a episódios de movimentos descontrolado do corpo. Em geral, as crises têm curta duração mas, se excederem 5 minutos, necessitam de cuidado médico especial. Crises epiléticas podem resultar em acidentes severos, basta imaginar sua ocorrência no trânsito, por exemplo. Não obstante a existência de muitas drogas avançadas, 30% dos pacientes não tem controle sobre as crises.

As causas para a epilepsia são inúmeras [2]: influência genética, traumas, anormalidades no cérebro, infecções, desordens no desenvolvimento etc. Sua ocorrência está ligada a mudanças na estrutura neural do cérebro. Também existem complicadores tais como a idade, o histórico familiar, a incidência de acidentes vasculares, infecções e demência.

O que acontece à consciência durante a crise epilética é um assunto de interesse científico recente. Há crises em que não ocorre perda da consciência e outras em que ela é afetada. Durante as crises [2], pacientes podem experimentar a sensação de dejà-vu - quando têm a nítida impressão de já terem vivenciado a situação. Ou o seu oposto ocorre: um "jamais vu", em que perdem a capacidade de reconhecer o ambiente em que estão. 

Por causa da natureza espiritual do ser humano, existem, entretanto, outras experiências "anômalas" registradas durante as crises epiléticas. Exemplos interessantes são descritos por Greyson et al (2014) [3], artigo que encontramos depois das indicações em Muito além dos Neurônios [4] do dr. Nubor O. Facure. Ao se encontrar o primeiro artigo, é possível achar outros como [5] e [6].

Experiências fora do corpo são conhecidas na literatura médica como um "fenômeno autoscópico". Nele o paciente vê a si mesmo como se estivesse fora de seu corpo. No artigo [3], os autores encontraram que, em uma amostra de 100 pacientes, 7 descreveram experiências que podem ser consideradas autoscopias em crises epiléticas. Não há correlação sobre a incidência dessas experiências com outros fatores como demografia, histórico médico, idade, frequência e duração das crises. Para cada paciente que teve a experiência, a taxa de incidência é baixa, da ordem de uma ou duas ao longo de vários anos. Dessa forma, não se pode associar sua ocorrência a outros fatores tais como medicamentos usados ou mudanças nas condições de saúde.

Recorremos a [3] para conhecer algumas das experiências vividas em crises epiléticas. Depois de descrever detalhes do quadro clínico dos casos reportados, os autores passam a sumarizar suas autoscopias:

1) Uma paciente de 28 anos que apresentou o maior número de experiências e percepções verificáveis:
Ela relatou deixar seu corpo durante cada convulsão parcial complexa: enquanto seu corpo ficava imóvel, ela sentia que estava flutuando acima dele, e que podia ver seu corpo e os arredores desde cima. No entanto, ela relatou uma dupla consciência em que, embora parecendo pairar acima de seu corpo, também permanecia consciente das sensações corporais. Relatou que, se alguém tocasse seu corpo, tinha a sensação de se "encaixar" de volta nele, o que resultava no fim da convulsão. A experiência de estar fora de seu corpo foi desagradável e alarmante, já que temia que algo pudesse acontecer ao seu corpo por estar fora de seu controle. Acreditava que suas percepções visuais extracorpóreas eram precisas e que se encontrava fisicamente separada de seu corpo. Mas não atribuiu qualquer significado espiritual a esse evento, considerando-o  "apenas algo que acontece" quando seu cérebro falha.
2) Uma paciente de 30 anos com cerca de 300 crises por mês desde os 15 anos:
Ela relatou 2–3 experiências extracorpóreas associadas a convulsões, que duraram entre 10 e 20 segundos. Afirmou que se sentiu levantar, olhando para baixo e vendo seu corpo inerte, e que podia ver e ouvir outras pessoas. Declarou se sentir leve durante a experiência que foi para ela assustadora. 
Embora a impressão realística, a experiência passada parece a ela rebuscada e vaga, confundindo-se com sua imaginação.
3) Um paciente de 43 anos que apresentou quadro de crises depois de um trauma cerebral aos 25 anos:
Ele relatou uma (única) experiência extracorpórea associada a uma convulsão: afirmou que estava acordado durante a convulsão e se viu passando por ela, inclinado sobre um dos joelhos. Percebeu que seu irmão entrou na sala e tentou dizer algo ao irmão para impedir (sua crise). Alegou ter tido dupla consciência, pois sentiu as sensações corporais de passar pela convulsão, mas também se observou passando por ela.
Esse paciente também declarou que a memória da experiência se apresenta a ele agora como um sonho.
A sensação de bicorporiedade é evidente por esses relatos, uma vez que as percepções entram por duas vias: a do corpo físico e a do corpo espiritual desdobrado durante os breves momentos de crise epilética.  Os autores em [3] consideram que, ainda que não seja "clinicamente" possível distinguir tais experiências de meras ilusões, é possível corroborar os fatos descritos pelos pacientes na experiência extracorpórea com o que de fato ocorreu durante as crises. 

Uma importante conclusão é feita pelos autores em [3] sobre o que parecem sugerir os dados de tais experiências produzidos por pacientes de crises epiléticas (grifo nosso):
No entanto, pode ser prematuro concluir dessas correlações sugestivas que as experiências extracorpóreas são um epifenômeno de condições neurofisiológicas particulares. Conforme observado acima, as distorções da imagem corporal provocadas pela estimulação elétrica ou magnética do cérebro diferem relevantemente e fenomenologicamente das experiências fora do corpo espontâneas. Os dados deste estudo sugerem que experiências extracorpóreas associadas a convulsões não estão ligadas a nenhuma região do cérebro. Além disso, as descobertas de que experiências fora do corpo foram relatadas com menos frequência em pacientes com epilepsia do que na população em geral, e que pacientes com epilepsia as descrevem em apenas uma pequena minoria de suas convulsões, alertam que a inferência de um nexo causal entre a atividade convulsiva e as experiências fora do corpo é problemática.
Colocando-se de outra forma:
  1. As experiências fora do corpo em crises epiléticas não são meros "epifenômenos" gerados por condições fisiológicas particulares;
  2. Não se pode associar os relatos dessas anomalias percepticas a regiões específicas do cérebro. No caso de pacientes epiléticos, as lesões ocorrem em diversas partes. Isso enfraquece a tese de que os desdobramentos seriam "gerados em regiões específicas do cérebro" e, de novo, meros epifenômenos;
  3. Não se pode ter pressa em afirmar nexo causal entre as crises e as experiências fora do corpo porque elas não ocorrem sempre, não há controle nem repetição do evento a cada crise, o que difere de outras alterações na consciência muito mais comuns durante as crises.

Mais detalhes sobre esse e outros estudos interessantes, o leitor poderá obter ao ler os trabalhos sugeridos [3-6].

Referências

[1] Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Epilepsia 

[2] Mayo Clinic (2023). Explaining epilepsy. https://www.mayoclinic.org/diseases-conditions/epilepsy/symptoms-causes/syc-20350093  (acesso em fevereiro de 2023)

[3] Greyson, B., Fountain, N. B., Derr, L. L., & Broshek, D. K. (2014). Out-of-body experiences associated with seizures. Frontiers in human neuroscience, 8, 65. Ver: https://www.frontiersin.org/articles/10.3389/fnhum.2014.00065/full (acesso em fevereiro de 2023)

[4] Facure N (2009). Muito além dos neurônios. Ed: São Paulo, FE Editora Jornalística, 5a edição.

[5] Devinsky, O., Feldmann, E., Burrowes, K., & Bromfield, E. (1989). Autoscopic phenomena with seizures. Archives of Neurology, 46(10), 1080-1088. https://jamanetwork.com/journals/jamaneurology/article-abstract/589440 

[6] Greyson, B., Broshek, D. K., Derr, L. L., & Fountain, N. B. (2015). Mystical experiences associated with seizures. Religion, Brain & Behavior, 5(3), 182-196. https://med.virginia.edu/perceptual-studies/wp-content/uploads/sites/360/2018/06/Mystical-experiences-associated-with-seizures.pdf

2 de dezembro de 2015

Conceitos básicos de Física Quântica VII


A noção de "emaranhamento" ou "entrelaçamento" (entanglement) é estranha do ponto de vista usual ou "clássico" do mundo. De forma vaga, emaranhamento implica que existe uma ligação "causal" entre dois objetos, algo que se supõe responsável por uma ligação entre todas as coisas do Universo. Na física quântica, é possível preparar uma entidade ou objeto quântico em um estado e, depois, separar esse objeto no espaço por uma distância arbitrária, de forma que uma característica dele pode ser escolhida depois de sua criação propriamente dita. As características do objeto quântico existem em estado latente e se manifestam de forma aleatória apenas depois da realização de uma medida.

Antes de conhecer as implicações da física quântica, é oportuno considerar o que seria "emaranhar" algo do ponto de vista clássico. Há muitas discussões na rede sobre "entanglement", mas é difícil apreciar seu significado sem um mergulho profundo no formalismo quântico. Felizmente, acredito que isso pode ser feito com a ajuda de um exemplo simples que, embora artificial, tem a vantagem de captar os aspectos relevantes da questão.

O problema do emaranhamento nasceu no contexto do chamado "Paradoxo EPR". A sigla representa o nome de três físicos que o conceberam:  Albert Einstein, Boris Podolsky, e Nathan Rosen (1) que, em um importante artigo em 1935, tentaram deixar explícitas sua crença de que a física quântica seria ainda uma teoria inacabada da Natureza física. Para entender a razão disso, apresentamos o equivalente "não quântico" do emaranhamento.

Emaranhamento "não quântico"

Imaginamos uma linha de produção de objetos pareados (2), por exemplo, calçados ou luvas, onde cada elemento segue esteiras em direções opostas como mostra a Fig. 1. Por alguma bizarrice de um empregado, os pares produzidos no centro da linha são separados de forma aleatória quanto ao tipo, mas sempre de forma a se ter ordenadamente um par no final das linhas. Para poder despachar os pares, dois empregados nas pontas I e II  (ver Fig. 1) são obrigados a abrir a caixa onde cada elemento está colocado e anotar se um sapato esquerdo ou direito foi encontrado.
Fig. 1 Exemplo de "emaranhamento" não quântico. Um funcionário louco separa sapatos aleatoriamente, de forma a enviar a dois destinos, I e II, como pares completos. Dessa forma, ao se abri em I e descobrir que um sapato esquerdo foi encontrado, em II, um direito será encontrado com certeza. A correlação pode ser explicada por uma causa pre-existente, quando os pares de sapatos foram separados.
Ao se abrir uma caixa na linha I, o empregado sabe que, se um sapato esquerdo for encontrado, na linha II, distante vários quilômetros de I, um direito com certeza será revelado. Ainda que o conteúdo da caixa seja desconhecido antes de se abrir, o fato de o arranjo ter sido preparado em sua origem de forma pareada, garante uma grande correlação entre o que se encontra em cada uma das linhas I e II. Dessa forma, depois de algum tempo, o resultado da abertura das caixas fica registrado como mostrado a tabela da Fig. 2.
Fig. 2 Resultado da abertura das caixas para uma sequência de chegada de sapatos. "D - Direito" e "E - Esquerdo" representam os tipos encontrados. 

Versão quântica

Vejamos agora a versão "quântica". Ao invés de sapatos, pares de elétrons, produzidos de alguma forma e correlacionados quanticamente (ver Fig. 3), são disparados em direções contrárias por vários quilômetros e, em cada ponta, dispositivos medem propriedades escolhidas dessas partículas. Uma dessas propriedades é, por exemplo, o seu momento angular intrínseco, também chamado "spin". Essa propriedade é medida em um sistema de referência orientado no espaço. Pode-se, por exemplo, escolher medir a componente na direção "z". Por ser um número quântico, o spin somente admite dois valores, que chamamos aqui "+1" e "-1". O spin fornece um equivalente para a propriedade "direito" ou "esquerdo" no exemplo dos sapatos (Fig. 1).
Fig. 3 Esquema do arranjo para medida dos spins em pares de partículas (p. ex., elétrons). A fonte gera um par com componente total nula (S=0). Dessa forma, garante-se a correlação dos spins. Nas linhas I e II, mede-se o spin por meio de uma analisador "Stern-Gerlach" escolhendo-se um eixo de orientação preferencial (como mostrado na figura).

Como no exemplo não quântico, depois de algum tempo e conforme a sequência anotada de chegada dos elétrons, a tabela da Fig. 4 é produzida.

Fig. 4 Resultado das medidas sobre os pares de elétrons com medida da componente "z" dos elétrons.

As semelhanças entre o arranjo da Fig. 1 e da Fig. 3 são muitas De fato, cada par de elétrons medido apresenta uma componente pareada de forma aleatória, como no caso dos sapatos. Pode-se perfeitamente atribuir essa semelhança as mesmas causas:
  1. Que, assim como no caso dos pares de sapatos, os elétrons produzidos na fonte são criados com a propriedade "spin na direção z" já correlacionada;
  2. Que não existe "ação à distância", mas simplesmente manifestação de uma propriedade já existente;
  3. Que o fato do resultado da medida ser aleatório está ligado à falta de informação durante a formação dos pares.
Entretanto, no caso quântico, a escolha do tipo de medida a ser feita pode acontecer depois da criação dos pares! Em outras palavras, poderíamos ter escolhido o eixo "x", ao invés do "z" ou qualquer outra combinação de eixos e o resultado seria o mesmo. Conforme explicado em (2):
Segundo a mecânica quântica, quando os pares de coisas quânticas se separam, cada uma delas simplesmente não tem valor definido da propriedade S. Tudo o que a teoria diz é que há 50% de probabilidade que uma medida de S sobre a coisa dê +1, e 50% que dê -1. É durante a medida que o valor de S se torna definido, sendo em um certo sentido criado pela medida. (Note-se que tal processo guarda pouca relação com o conceito usual de `medida’.) Mas qual será o valor específico “criado” em uma determinada medida é, segundo a teoria, uma questão de puro acaso. Desse modo, fica claro que a teoria torna impossível a explicação do fenômeno em termos de propriedades inerentes a cada uma das coisas, e cujos valores tenham sido definidos na fonte. 
Mas, se não é possível associar um valor pre-definido antes de se realizar a medida, como é possível haver uma correlação entre medidas feitas a distâncias tão grandes ? Ou, segundo (2):
Se as coisas não tinham propriedade S alguma antes de serem sujeitas a mensurações dessa propriedade, por que fantástica coincidência sempre que a interação da coisa 1 com o aparelho 1 cria um determinado valor a interação da coisa 2 com o aparelho 2 cria o valor oposto, sendo que esses dois aparelhos podem estar situados a uma distância arbitrariamente grande um do outro (em galáxias diferentes, por exemplo) ? A única maneira de se evitar a atribuição desse fenômeno a uma coincidência de vastas proporções, é assumir que algum tipo de interação não-local desconhecida e estranha conecta os dois sub-sistemas de modo a que a criação (aleatória) de um determinado resultado em um deles cause a produção do resultado oposto no outro. 
As medidas realizadas demonstraram que as coisas se passam como prevê a física quântica, ou seja, os resultados são sempre correlacionados, e isso independe da escolha da propriedade feita nem do tipo de partícula (note que, em nosso exemplo, usamos elétrons, mas poderiam ser fótons, ou qualquer outra partícula quântica) e que a ação é "instantânea"; como se a decisão da escolha da propriedade (depois da criação do par) fosse comunicada instantaneamente de um braço a outro do experimento, sem respeito a conhecida lei da finitude da velocidade da luz. Eis o emaranhamento quântico manifestando-se.

Seria como se a propriedade "direita" ou "esquerda" de um dado sapato fosse criada quando uma caixa fosse aberta (e não quando foram separados pelo funcionário louco) e que isso é comunicado imediatamente ao seu outro par na ponta oposta. Poderíamos pensar em usar o resultado "+1" e "-1" para transmitir uma mensagem em código binário, mas isso não é permitido, pois o resultado da medida é aleatório. Em outras palavras o arranjo EPR não pode ser usado para transmitir informação, não obstante o fato de a informação sobre a propriedade escolhida (bem como sua medida) ser comunicada acima a velocidade da luz!

O processo de medida quântico

O arranjo da fábrica de sapatos corresponde exatamente ao que os autores do paper EPR tinham em mente para explicar o que acreditavam ser um problema na teoria. Para Einstein, em particular, era inconcebível admitir transmissão instantânea antes de se explicar melhor o processo de emaranhamento, o que implicava em assumir que a física quântica seria uma teoria incompleta.

As tentativas posteriores admitiram essa incompletude e assumiram a existência de variáveis ocultas, não levadas em conta durante o processo de criação de par e da medida. A segunda grande contribuição veio com John Stewart Bell (3) que derivou uma série de desigualdades que, se obedecidas, implicavam na incompletude da física quântica. Mas, eis que resultados experimentais violaram as desigualdades de Bell, de forma que o caminho de se assumir a existência de variáveis ocultas locais como responsáveis pelo fenômeno ficou bloqueado. Portanto, a teoria rejeita explicações clássicas e nada foi colocado em seu lugar para explicar ou tornar "intuitivo" o processo de emaranhamento.
Fig. 5 Uma caixa com dados é um sistema físico que apresenta indeterminismo extrínseco. O resultado do processo de se chacoalhar a caixa e ver um número na face do dado é previsível desde que as condições iniciais sejam conhecidas. 
É importante ressaltar a noção de indeterminismo intrínseco que caracteriza todos os sistemas quânticos. De novo, fazemos isso apelando para um equivalente "clássico". Imaginemos uma caixa fechada com dados em seu interior (Fig. 5). Ao se chacoalhar a caixa e abrir, um determinado número aparece na face superior de um dado (que pode estar entre "1" e "6"). Dizemos que o resultado aleatório se deve ao indeterminismo extrínseco do sistema. "Extrínseco" significa que nossa ignorância sobre todas as propriedades iniciais desse sistema impede uma previsão precisa do resultado, pois se conhecêssemos todas elas - velocidade inicial da mão, posição inicial do dado na caixa, tamanho da caixa, massa da caixa, massa do dado, coeficientes de atrito etc - seria possível prever com grande precisão qual face sairia antes de se abrir a caixa.

Já um sistema quântico equivalente tem indeterminismo intrínseco. A  física quântica simplesmente não prevê ou fornece nenhuma maneira de se conhecer outras variáveis interferentes (elas não existem), e o resultado da medida é inerentemente aleatório - uma propriedade intrínseca do sistema. Além disso, no caso "clássico", temos certeza que, assim que a caixa é deixada em repouso, o número resultante está lá - quer a caixa seja aberta ou não. No caso quântico, isso não acontece, enquanto a caixa não for aberta não é possível afirmar qual o resultado. Isso é uma consequência do indeterminismo intrínseco, mas também de uma possível interferência do processo de medida no sistema (4).

A questão do emaranhamento quântico está envolta em um mistério ao se querer julgar seu sentido pela visão do "senso comum". Que ponto de vista racionalista, rigoroso ou intuitivo acreditaria que características de objetos quânticos podem ser definidas depois que esses objetos são criados e também transmitidas à distâncias incomensuráveis, aparentemente à velocidade instantânea? Sim, a Natureza é o que é, e não aquilo que aprendemos com nossos sentidos comuns.

Referências e comentários

(1) A. Einstein, B. Podolsky, N. Rosen, N. (1935). Can Quantum-Mechanical Description of Physical Reality Be Considered Complete? (PDF). Physical Review 47 (10): 777–780. Este trabalho pode se acessado aqui.

(2) S. S. Chibeni (1992). Implicações filosóficas da microfísica. Cadernos de História e Filosofia da Ciência, Série 3, 2 (2): 141-164. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(3) J. S. Bell (1964) On the Einstein Podolsky Rosen paradox. Physics 1:195-200. Este trabalho pode ser acessado aqui.

(4) ​Porém, não devemos associar a perturbação inexorável no sistema provocada pelo processo de medida como uma manifestação quântica. Mesmo sistemas clássicos apresentam perturbação de medida, só que há a perspectiva de se reduzir a perturbação de tal forma que o resultado convirja para o esperado classicamente - sem a presença do observador. A física quântica, porém, parece ter colocado um limite a essa redução de perturbação. Como os sistema quânticos são muito delicados - envolvem quantidades de ação mecânica muito pequenas (como medido pela chamada "constante de Planck") e troca de pacotes de energia, não é possível realizar uma medida sem que uma quantidade finita (portanto limitada a um mínimo) esteja envolvida.

5 de março de 2014

Conceitos básicos de Física Quântica VI

Estrutura de orbitais atômicos no átomo de hidrogênio obtidos por meio direto, exibindo a existência de núvens de concentração eletrônica em torno do núcleo. (1)
Toda a matéria se origina e existe somente em virtude de uma força 
que agrupa as partículas de um átomo em vibração 
e as mantém juntas como se fosse um sistema solar em miniatura. 
Devemos assumir como causa dessa força uma mente consciente e inteligente. 
A mente é a matriz de toda a matéria. Max Planck.

Um átomo e seus vários estados

É comum representações pictóricas do átomo - conhecido como unidade fundamental da matéria - na forma de um "mini sistema solar", com um núcleo e partículas elétricas - os elétrons - girando em torno dele em órbitas bem definidas. Essa representação é reconhecida como símbolo universal e está representado na Fig. 1.

Há inúmeras referências na web sobre esse 'modelo atômico'. É um modelo porque seu objetivo é representar os elementos principais do átomo (até suas posições relativas), sem compromisso de ser uma imagem exata da realidade.

De fato, desenvolvimentos em física quântica mostraram que essa 'visão exata' da realidade, no que diz respeito à realidade atômica, não pode ser obtida. Para ver de uma maneira simples como isso é impossível, basta que você considere o processo de 'observação' de uma coisa. Observar algo é, antes de tudo, jogar luz no objeto a ser observado, sem o que é impossível apreciar suas formas, cores e profundidade. Mas, o que acontece ao se jogar luz em um objeto microscópico como um elétron?

Um elétron é uma partícula fundamental da Natureza. Tem uma massa muito pequena (da ordem de 10E-31 kg, ou seja, precisamos de 31 zeros depois da vírgula para registrar a primeira casa significativa de massa). Ao se tentar iluminar um átomo para poder observar o elétron, a intensidade da luz - por menor que seja - poderá destruir completamente o que se pretende ver. No reino quântico, isso também depende de uma série de fatores tais com o a frequência da luz que se joga. Se ela tiver uma frequência determinada abaixo do que é chamado 'limite de ionização' do átomo, a luz será espalhada de forma que será impossível formar qualquer imagem do átomo. Se estiver acima desse limite, o resultado será a destruição do estado atômico original (2). Portanto, é impossível determinar diretamente a forma dos átomos, pelo menos por processos conhecidos tradicionalmente e que se aplicam ao nosso mundo 'macroscópico' (3).

Estados atômicos.

Fig. 1 Representação um átomo 
com seu núcleo e elétrons em órbitas bem 
definidas.  
Além de ter massa, o elétron também tem outra propriedade fundamental chamada carga elétrica. Por convenção, essa carga tem sinal negativo e é muito pequena (da ordem de 10E-19 Coulomb). Embora seja pequena, é carga suficiente para gerar boa parte dos fenômenos do mundo em que vivemos. 

Acontece que partículas carregadas em movimento acelerado acabam por perder energia. Essa energia - presente na partícula em seu estado de movimento original - acaba sendo perdida de uma forma inusitada: a partícula emite radiação eletromagnética. Como, na Natureza, energia não pode ser destruída, essa energia vai embora com a radiação que é emitida. 

Agora, imagine um elétron a girar indefinidamente em torno do núcleo do átomo. Para simplificar, imaginamos um núcleo de hidrogênio (ou seja, somente um elétron se faz necessário na 'eletrosfera' do átomo). Ao se aproximar do núcleo, o elétron está acelerado. Ele sofre influência da força elétrica advinda de uma carga de sinal oposto no núcleo. Mas, mesmo assim, por que, no caso do elétron no átomo, estando ele acelerado, o átomo não perde energia? Esse foi uma dos problemas fundamentais que motivou a revolução da física quântica.

De fato, em todos os átomos, os elétrons estão constantemente em movimento e, mesmo assim, a matéria é bastante estável, não há "perda de energia" por emissão de aceleração. Como isso é possível? Além disso, uma vez que elétrons e núcleo tem cargas que se atraem, como é possível que eles não terminem grudados uns aos outros?

Um mecanismo que é frequentemente invocado para explicar de forma qualitativa esse processo de "estabilização" é o princípio de incerteza. Esse princípio cria um limite para o estado de movimento e posição de uma partícula pela física quântica. Ao determinarmos com precisão sua posição, será impossível conhecer sua velocidade (ou, mais especificamente, quantidade de movimento). Ao se determinar com precisão o seu movimento, será impossível saber sua posição. Assim, se o elétron perde energia e se aproxima do núcleo, o crescente aumento de determinação em sua posição faz com que seu momento aumente consideravelmente, o que o afasta novamente do núcleo. Nas palavras de R. Feynman (4):
A resposta tem a ver com efeitos quânticos. Se tentarmos confinar nossos elétrons em uma região que é muito próxima dos prótons, então, de acordo com o princípio de incerteza, eles deverão apresentar algum momento médio quadrático que será tanto maior quanto mais tentarmos confiná-los. É esse movimento, exigido pelas leis da mecânica quântica, que evita que a atração elétrica aproxime ainda mais as cargas. 
Portanto, o que acontece ao redor do núcleo não é a configuração de cargas em órbitas estáveis (como sugere imagens como a da Fig. 1), mas o estabelecimento de um estado atômico sem emissão alguma de energia.

Mas, é um estado de quê? Trata-se do estado de probabilidade de se encontrar elétrons ao redor do núcleo. Esses estados têm energia muito bem definida e conferem uma estabilidade extraordinária à matéria. Não podemos nos esquecer que a principal propriedade da matéria quântica é seu caráter ondulatório. Esse caráter era, no começo, apenas associado à luz e à radiação, mas a principal contribuição da física quântica foi demonstrar que, mesmo a matéria mais dura que se conhece, também se comporta como uma onda.
Fig. 2
Uma maneira de compreender como esses estados poderiam ser formados foi feita pelos pais da física quântica ao tentarem curvar ou fechar uma onda ao redor do centro atômico (Fig. 2). Como o elétron tem uma onda associada, então, buscou-se saber quais seriam as condições necessárias para que uma onda eletrônica se 'fechasse' completamente ao redor do núcleo como mostrado. Essas condições dão origem aos estados de energia bem definidos dos elétrons porque somente ocorrerá o 'fechamento' da onda para determinadas frequências.

Podemos entender os estados atômicos como se fossem "ressonâncias" nas ondas de probabilidade dos elétrons ao redor do núcleo atômico. Lei rigorosas proíbem, portanto, que energia seja perdida nesses estados de forma espontânea (embora existe sempre uma chance de, espontaneamente, ocorrer uma perda; ela é muito pequena no nível quântico), o que resulta em grande estabilidade para a matéria ordinária. 

Referências e notas

(1) Uma imagem  de um estado quântico do átomo de hidrogênio recentemente obtida para determinada condições especiais:
(2) Se for um valor exato, poderá causar uma transição de estado (chamado de 'excitação atômica'). Se for excessiva, poderá causar ionização do átomo que é o afastamento do elétron de seu núcleo.

(3) No caso do 'mundo macroscópico', os objetos são formados por muitas quantidades de átomos. Luz tem efeito desprezível sobre esse grande agrupamento de partículas e é, portanto, espalhada de tal forma que os contornos dos objeto podem ser vistos, mas nunca detalhes até a escala atômica. De fato, podemos ver muitos detalhes microscópicos de objetos, mas até o nível em que efeitos quânticos não são importantes.

(4) Ver: http://www.feynmanlectures.caltech.edu/II_01.html









18 de setembro de 2013

Livro VI - Os vivos e os mortos na sociedade medieval (de J.-C. Schmitt)

Sem indagarem se tais contos, despojados dos acessórios ridículos, encerram algum fundo de verdade, essas pessoas unicamente se impressionam com o lado absurdo que eles revelam. Sem se darem ao trabalho de tirar a casca amarga, para achar a amêndoa, rejeitam o todo, como fazem, relativamente à religião, os que, chocados por certos abusos, tudo englobam numa só condenação. (A. Kardec, 'O Livro dos Médiuns', Primeira Parte, Capítulo 1, 'Há Espíritos?')

Eis a criança investida da função de médiume seus vaticínios, de início reservados ao círculo dos vizinhos, logo são recolhidos e explorados pelos clérigos. Um desses últimos chega mesmo a substituí-la  para traduzir, sob forma adequada, as verdades de além-túmulo. (J.-C. Schmitt, ref. 1, p. 112)

Todas as épocas da humanidade testemunharam a existência de fenômenos invulgares, ocorrências incomuns ou insólitas que participaram e foram incorporadas ao imaginário e à cultura de povos. Frequentemente, cientistas humanos analisam narrativas antigas onde vestígios alterados segundo a ótica de uma determinada época aparecem. Esse é o caso da obra de Jean-Claude Schmitt (1999) "Os vivos e os mortos na sociedade medieval" com tradução de Maria Lúcia Machado e editado pela Companhia das Letras (Ref. 1).

Há que se distinguir dois aspectos após a leitura dessa obra de Schmitt:
  1. Aspecto sociológico ou relativo às ciências sociais (historiografia) que cuidam de interpretar as narrativas culturais que formam as crenças e que embasam uma 'teoria' ou explicação sociológica para as narrativas (Ref. 2);
  2. Aspecto fenomenológico: ao leitor que conhece a fenomenologia espírita não deixa de ser no mínimo curioso observar as várias ocorrência descritas por Schmitt e correlacionar a fontes que atestes sua origem mediúnica (e, portanto, fenomenologicamente real).
O mais interessante de uma leitura espírita da obra de Schmitt é que muitos detalhes passam desapercebidos do historiador, que está interessado na sua teoria histórica para os fatos. Sabemos que a história não é uma ciência exata e suas afirmativas dependem bastante das interpretações e das 'escolas de pensamento' que a influenciam. Portanto, analisar a obra de Schmitt (mesmo que muito brevemente como fazemos aqui) é um exercício interessante de aplicação do conhecimento espírita.

Ao apontar a origem fenomenológica das narrativas, nossos comentários reforçam o aspecto historiográfico, mostrando como elas foram interpretadas e recontadas ao longo do tempo, que é objetivo da obra de Schmitt. O fenômeno de interpretação social e cultural é, assim, tão real como aquele que lhe dá origem. Mas, é preciso separar cada componente, cada contribuição do fenômeno psíquico, segundo ele nos parece hoje, para que se possa conhecer aquele, histórico, que lhe deu origem. Isso possibilita compreender desdobramentos históricos que não são aparentes na narrativa e que jamais poderiam ser descobertos pelo historiador desprovido do conhecimento relativo à fenomenologia das ocorrências espíritas.

Estamos diante assim de futuras aplicações do conhecimento espírita que apenas vislumbramos a partir de uma análise muito limitada como a que aqui fazemos. A obra em apreço é composta de nove capítulos:

1) A rejeição dos fantasmas;
2) Sonhar com os mortos;
3) A invasão dos fantasmas;
4) Os mortos maravilhosos;
5) O bando Hellequin;
6) O imaginário domesticado?
7) Os mortos e o poder;
8) Tempo, espaço e sociedade;
9) Figurar os fantasmas.

Por ser relativamente densa, escolhemos alguns trechos da narrativa que denunciam a origem psíquica (mediúnica) das narrativas analisadas por Schmitt.

Castelo do imperador Carlos IV em Praga do século XIV. Esta construção foi palco de um curioso incidente de efeitos físicos. Com o tempo, a narrativa de Carlos se transformou no 'sonho do imperador', não obstante todos os cuidados que ele teve em certificar a veracidade do ocorrido.
Alguns exemplos

Manifestações físicas

Um exemplo interessante, que demonstra também como relatos são modificados ao longo do tempo, foi o 'sonho' do Imperador Carlos IV (p. 56):
Esse tipo de relato autobiográfico de fantasma parece muito raro. No entanto, pode-se relacionar com ele o relato bem mais tardio que o próprio imperador Carlos IV (1348-1378) fez, em latim, de uma agitada noite passada em seu castelo de Praga. Seu quarto encontra-se na parte antiga do castelo. Seu companheiro Buchko ocupava um outro leito  no mesmo quarto que, apesar da noite, está muito claro pelo fogo que arde na lareira e pelas numerosas velas acesas. Todas as portas e janelas estão fechadas. Mas, mal os dois homens adormecem, um rumor de passos no quarto os desperta. O imperador ordena que seu companheiro se levante, mas este não vê nada de anormal; antes de deitar-se novamente, ela atiça o fogo, reacende os círios e bebe uma taça de vinho que recoloca perto de uma grande vela. Contudo, mais uma vez o imperador ouve alguém que vai e vem, embora ninguém esteja visível. Depois, de súbito, a taça recolocada por Buchko é projetada como por uma mão invisível por cima do leito deste contra a parede, antes de voltar a cair no meio do aposento. (3)
O próprio imperador tomou todas as precauções para atestar a veracidade do ocorrido, que tem todos as características de uma manifestação de efeitos físicos e que foi descrita de forma semelhante em inúmeros outros relatos. Mas, o que aconteceu muito tempo depois? A narrativa de Carlos IV foi contada e recontada inúmeras vezes, até que atingiu uma versão em que o demônio apareceu para o imperador em um sonho. O processo de transformação de uma história real, baseada em fenômenos que hoje são conhecidos, foi paulatinamente apropriado pela Igreja e satanizado para servir a outros propósitos. Em várias outras passagens de documentos da época, essa história é conhecida como o 'sonho do imperador' e teria sido assim narrada hoje não fosse os documentos oficiais do monarca Carlos IV.

Manifestações de Espíritos em Beaucaire, França, em 1211: uma "pequena codificação" em pleno século XI?
A cidade de Beaucaire no sul da França (Languedoc-Roussillon) é o ambiente dos relatos de Gervais de Tilbury. Trata-se de comunicações do Espírito de um rapaz, Guillaume, a sua prima depois de sua morte em uma briga em 1211. O clero local instaurou um verdadeiro tribunal com perguntas e respostas ao Espírito de Guillaume que, auxiliado por seu Espírito protetor, fornece respostas. A narrativa foi adaptada para servir às concepções da época e reforçar a ideia do purgatório na Doutrina Católica.

O episódio conhecido como 'o fantasma de Beaucaire' foi compilado por um contista medieval, Gervais de Tilbury (p. 106 do livro de Schmitt), e narra a história de Guillaume, natural de Apt, morto em uma briga e que aparece a sua prima adolescente em 1211. A narrativa apresenta Guillaume em aparições no quarto da menina, vestido em andrajos e clamando por orações por sua alma. Pode-se identificar a natureza da manifestação através da jovem médium, mas a maneira como é contado e, principalmente, interpretado os ditados do morto, segue rigidamente a crença da época, que via nele uma alma em busca de orações por sua salvação. Entretanto, algumas características do relato são interessantes do ponto de vista espírita: as aparições começam três ou cinco dias após a morte de Guillaume que foi violenta; a jovem sente medo ao entrar em contato com o seu primo e sua conversa é acompanhada pelos pais, que ouvem apenas a voz da menina; várias pessoas aparecem desejosas de 'conversar com o morto' por intermédio da médium;o clero local toma posse do fenômeno e instaura o que Schmitt chama de inquisitio para testar o morto; muito interessante: o morto é acompanhado pela figura de São Miguel que, no simbolismo da época, representa seu Espírito protetor (uma entidade de caráter mais elevado); ao ser instaurado um tribunal para questionar o fantasma, São Miguel é quem, na verdade, dita ao Espírito de Guillaume as mensagens. Vemos então a figura de um Espírito de natureza inferior (Guillaume) que serve de intermediário entre a médium e um Espírito mais elevado. Segundo Schmitt (todos os itálicos são meus, 3):
O defunto confirma em primeiro lugar o horror da morte. A própria palavra lhe é insuportável e o espírito conjura a jovem a falar dela apenas por eufemismos, empregando o termo "trespasse"....O morto recorda as angústias de seu trespasse: viu os anjos bons e os anjos maus disputar sua alma até que os primeiros vencessem. Esse combate faz as vezes, então, de julgamento particular da alma, sem que seja mencionado uma intervenção do Cristo nem mesmo da Virgem... (p. 109)
Ao fim de alguns dias, as almas dos que não são nem santos nem condenados vão para o purgatório, designado, assim, desde o começo do século XIII, por um substantivo. Esse purgatório é aéreo, o que pode corresponder a uma das localizações por vezes alegada do purgatório, mas que o designa sobretudo, na lógica desse relato particular, como um lugar provisório...(p. 109) 
Falando de suas próprias experiências, ele descreve sobretudo a condição das almas no purgatório aéreo. Esse 'lugar' está sujeito a um tempo análogo ao tempo terrestre, com uma alternância de dias e de noites (mas ali as noites são menos escuras do que na terra) e, para as almas penadas, um repouso sabático, entre a noite do sábado e a noite do domingo... O nome de São Miguel não designa um anjo particular, mas uma função de proteção das almas penadas: a cada uma, seu "São Miguel". O do defundo Guillaume sopra-lhe as respostas que ele deve dar à prima ou ao padre. (p. 109) 
No purgatório as almas experimentam um alívio progressivo, apressado pelas preces, esmolas, missas dos vivos e também pela aspersão de água benta. (p.110)
O fantasma insiste muito em suas faculdades sobre-humanas de visão, ou mesmo de previsão. As almas vêem tudo o que se faz na terra. (p. 110)
O fantasma mantêm-se muito perto dos vivos, no mais das vezes à revelia deles. Mas, com a força da autorização divina, ele pode aparecer em dois lugares e de modos diferentes. (p. 110) 
Eis a criança investida da função de médium, e seus vaticínios, de início reservados ao círculo dos vizinhos, logo são recolhidos e explorados pelos clérigos. Um desses últimos chega mesmo a substituí-la  para traduzir, sob forma adequada, as verdades de além-túmulo. (p. 112)
Conforme explicado por Schmitt em sua obra, o relato do fantasma foi sistematicamente modificado para se adaptar às teses medievais católicas de um fantasma como a imagem de um morto, de sua adequação doutrinária à Igreja (o morto Guillaume afirma que é favorável à matança dos Albingenses) etc. As sementes de instruções de além-túmulo foram lançadas, mas caíram em solo infértil e foram adaptadas para seguir ao imaginário e o interesse religioso da época.

abadia de Cluny na França. Segundo Schmitt,  o modelo de sufrágio pelos mortos, a comemoração do 2 de novembro, foi uma 'inovação clunisiana'. As práticas se instauraram depois da constatação das evidências de comunicação e intercâmbio oriundas de diversos relatos medievais, muitos deles no interior de mosteiros como o de Cluny.

Conclusões

Jean-Claude
Schmitt.
Além dos exemplos acima, outros muito interessantes, falam da existência de manifestações mediúnicas extensivas em mosteiros medievais (ver o exemplo de Gertude do mosteiro de Hefta, p. 58, uma abadessa cisterniense que teve visões extáticas com presença de entidades desencarnadas em 1261), da diferença entre os relatos de aparição e o 'sonhar com os mortos', a coleção de relatos de aparição de mortos na abadia beneditina de Marmoutier em 1137 (p. 86), e muitos outros. A narrativa de Schmitt está de acordo com suas teses históricas, mas, como dissemos, é interessante uma leitura espírita, que permite adicionar outras informações quanto à origem fenomenológica de tais relatos medievais. Esses relatos são hoje interpretados livremente por historiadores, que tentam adaptar suas teorias para explicá-los como produtos do imaginário humano. De fato, os desdobramentos, com certeza, estão vinculados às crenças da época, mas a gênese dos relatos não é (4), gênese que ficou impregnada por essas mesmas crenças. 

Fica patente que inúmeros fenômenos psíquicos durante toda a idade média foram registrados, e incorporados à cultura local na França (que é a região de estudo de Schmitt) através do clero. Os relatos lidos nos documentos preservados demonstram as distorções (como no caso do 'sonho do imperador' Carlos IV), os exageros e sua total aderência à crença católica, embora não de uma maneira uniforme, quando muitos dos relatos serviram para desenvolver teses que até então não existiam. A ideia do purgatório, sem dúvida, é a mais notória delas. Essa foi uma ideia que amadureceu aos poucos, com base na observação de fatos mediúnicos em abadias como Cluny, Marmoutier, através das chamadas 'visões monásticas' e outros relatos seculares de visão dos 'mortos', o que atesta a sua contínua comunicação com o mundo dos vivos desde tempos imemoriais. 

Referências
  1. Schmitt, Jean-Claude (1999). Os vivos e os mortos na sociedade medieval. São Paulo, Companhia das Letras. O original tem o título: Les Revenants: les vivants et les morts dans la société médiévale (Gallimard, 1994); 
  2. Sobre esse aspecto, nossos leitores poderão consultar a crítica de Eduardo H. Aubert do FFLCH da USP. (Aubert, Eduardo H. (2001), Rev. hist. n.145, São Paulo, dezembro 2001, (versão impressa ISSN 0034-8309)); 
  3. Consultar o livro de Schmitt (1) sobre todas as referências.
  4. Isto é, a gênese dos relatos está ligada à fenomenologia mediúnica.

23 de fevereiro de 2013

Conceitos básicos de Física Quântica V (a questão do vácuo quântico)

Imagem de uma nuvem molecular no espaço. Pensava-se que se tratava de um espaço vazio, mas ela é, na verdade, preenchida por matéria opaca que não permite ver as estrelas ao fundo.

Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física. 

Uma considerável mudança na nossa maneira de compreender o 'vazio' e o 'nada' surgiu com o desenvolvimento subsequente da física quântica. Para compreender melhor as descobertas que foram feitas sobre essa questão (e as implicações filosóficas disso), é preciso saber qual era a situação antes dos desenvolvimentos fundamentais dessa nova física. Depois, veremos como o papel criador do vácuo quântico pode aparentemente substituir Deus e abrir uma via de argumentação para o ateísmo.

O papel do espaço vazio na física clássica

Em realidade, o espaço considerado 'vazio' (desprovido de qualquer tipo de substância) não correspondia ao conceito mais abstrato de vazio absoluto (que guarda correspondência grande com a noção de 'zero' da matemática). Desde o surgimento das primeiras teorias mecânicas no Sec. XVII, como foi o caso da teoria da Gravitação, uma lacuna enorme entre a concordância teórico-experimental que era observada e a ausência de uma justificativa ou 'interpretação' para a ação à distância que existia entre corpos gravitantes foi percebida.

Fig. 1 Lei de Newton entre corpos gravitantes. Triunfo analítico
sem explicação ou justificativa intuitiva.
Se os planetas e o Sol influenciavam uns aos outros, como se dava essa influência? Compreedia-se bem como uma força poderia ser transmitida entre dois corpos por contato entre eles, mas, entre o Sol e um determinado planeta, o que causava o efeito da força? Havia algo no espaço que era responsável pela transmissão dessa força? Se sim, esse 'algo' invisível preencheria o espaço entre o Sol e o planeta e tornava a ideia de 'nada' difícil de ser aceita de forma absoluta (Fig. 1). 

Mais tarde (segunda metade do Sec. XIX), a física clássica atingiu o apogeu com a formulação precisa das leis de Maxwell para o eletromagnetismo. Outros tipos de força à distância, além da gravitacional, foram descobertos e formalizados por meio de teorias especiais que resultaram na explicação de uma grande quantidade de fenômenos, bem como na previsão antecipada de outros nunca imaginados. 

A 'joia da coroa' em termos de interpretações de teorias físicas era a explicação para a propagação da luz. Reconhecida como um resultado da oscilação de dois tipos de 'campos' que eram gerados por cargas aceleradas, a radiação eletromagnética só poderia se propagar por causa da existência de um meio especial - chamado de éter luminífero (que não tem nada a ver com as substâncias do grupo éter em química!) - no espaço considerado vazio. 

A analogia com oscilações mecânicas era evidente: da mesma forma como o som precisa de um meio para se propagar (no caso ordinário, esse meio é 'invisível' ou 'transparente' - o ar), ondas de luz também prescindiriam de uma substância especial igualmente invisível que preencheria todo o espaço considerado vazio para os sentidos humanos. Se fosse possível retirar essa substância do espaço, fenômenos luminosos não ocorreriam. Como o éter era considerado 'intangível', jamais seria possível atingir a condição de vácuo absoluto.

Flutuações do ponto zero

Mesmo dentro da física clássica, diversos questionamentos ao conceito de éter luminífero foram feitos com o surgimento da Relatividade Restrita. De forma resumida, ficou claro que seria possível continuar com desenvolvimentos teóricos e explicativos de fenômenos físicos envolvendo a luz sem que a noção de um éter luminífero fosse invocada. Isso porque a ideia de um éter desse tipo estava ligado ao conceito, que se tornou desnecessário, de 'referencial absoluto' - o próprio referencial do éter luminífero (ou seja, o sistema de coordenadas em que o 'éter' estaria em repouso). O formalismo das equações do eletromagnetismo só exigia que tais equações fossem 'invariantes' (não mudassem de forma) entre referenciais chamados 'inerciais', dispensando a ideia de referencial absoluto e esse tipo de interpretação de éter junto (1).
Fig. 2 Um diagrama que descreve o fenômeno conhecido como 'polarização do vácuo'. Dois elétrons (e-) interagem através da força eletromagnética - o que se dá, fundamentalmente, por meio da troca de fótons 'virtuais'. Nessa interação, flutuações no vácuo podem causar a produção de pares 'partícula-antipartícula' (e-, e+) como representado no desenho. Essas partículas são geradas no 'vácuo quântico' em todos os pontos do espaço dando origem a fenômenos interessantes.
Um novo papel para o vácuo seria descoberto com a junção de duas grandes teorias físicas: a relatividade e os primeiros formalismos da física quântica. Conhecida como 'teoria de campos', essa nova teoria foi capaz de prever novos fenômenos na Natureza que foram interpretados como tendo origem no espaço considerado vazio. Isso foi feito por meio da quantização do campo eletromagnético. O processo de 'quantização' envolve tomar quantidades físicas bem conhecidas (energia total, momentos etc) e aplicar as regras da física quântica, de forma a se obter uma teoria aplicável ao mundo microscópico (Fig. 2).

A quantização do campo produziu um resultado notável: era impossível deixar de associar a cada ponto do espaço uma quantidade de energia oriunda do campo eletromagnético, mesmo na ausência total de cargas. Ou seja, cada ponto do espaço 'vazio' é preenchido por uma substância eletromagnética e tem uma energia 'infinita' associada. Como esse estado é o de menor energia, é impossível retirar energia dele, mas, nem por isso ele deixa de ter papel fundamental em vários fenômenos quânticos. O mais notável deles - por se manifestar no 'mundo macroscópio' -  é o da força atrativa entre placas de metal, força gerada por desbalanceamento da quantidade de modos eletromagnéticos dentro e fora das placas. Essa força mecânica é gerada pelos modos do vácuo que atuam sobre as placas e é conhecido como efeito Casimir (Fig. 3). Essa força foi medida quantitativamente em 1997 por S. Lamoreaux (3).

Ilustração explicativa de um efeito real do vácuo quântico . Duas placas de metal são constantemente atuadas por fótons 'virtuais' (partículas do vácuo) no efeito Casimir. As placas limitam a quantidade de modos de oscilação no interior de forma que a quantidade maior delas na parte externa gera uma força de atração que é mensurável experimentalmente. Se flutuações de vácuo quântico não existissem, não haveria nenhuma força. 

Pode-se imaginar que todo o espaço é sempre preenchido por campos eletromagnéticos quantizados que oscilam de forma aleatória. Por isso, o vácuo quântico também é conhecido como fenômeno de 'flutuações do ponto zero', numa referência ao estado de menor energia desse campo.

Um conceito agradável ao ateísmo

A noção de vácuo quântico mostrou ser útil nas críticas modernas do ateísmo. O 'poder criador' do vácuo quântico pode muito bem substituir a necessidade de um agente criador independente, a ideia de Deus. Como, numa interpretação superficial, a potencialidade do vácuo é infinita, então qualquer coisa pode resultar dele, inclusive tudo no Universo. Para apreciar melhor esse ponto, considere o trecho extraído de 'Daylight Atheism' (2):
Logicamente falando, há apenas duas possibilidades para a origem última do Universo: ou há uma regressão infinita de causas, ou existe uma causa primeira que não pode ser explicada em termo de causas ainda mais fundamentais. Ateus ou religiosos devem concordar que essas são as únicas alternativas. Se existe uma regressão infinita de causas, parece sem sentido continuar com investigações cada vez mais profundas; pois tal fim jamais será atingido. Se há uma causa, porém, podemos produtivamente nos perguntar sobre como ela seria 
Esse é o ponto onde Craig e Strobel tem problemas, porque nós já temos um candidato excelente para causa primária: o vácuo quântico, um estado infinito e caótico que continuamente gera novos universos através de flutuações estatísticas. Sabemos já que o vácuo existe, assim como muitas de suas propriedades, então, nenhuma nova entidade é mais necessária aqui. Numa tentativa arbitrária de decidir que o vácuo tem que ter uma causa, Craig introduz uma nova entidade ou divindade sobrenatural que ele acredita tem o poder de criar novos universos. Isso é coisa para a qual não temos evidência experimental alguma e que não resolve o problema da causa primária melhor do que o vácuo já o faz. (grifos nossos; sobre o trecho original ver 4)
Essa ideia é ingênua, pois  energia e matéria não são as únicas coisas que existem no Universo para as quais o vácuo seria causa suficiente. Ateus devem encontrar uma maneira de explicar como a informação, que organiza a matéria a partir de certo nível, apareceu desse "nada" também.

A noção de vácuo como 'vazio' ou 'nada' torna-se uma arma de retórica na língua de adeptos do ateísmo que consideram isso uma maneira de atacar o princípio básico de que 'nada existe sem uma causa'. Como vácuo tem como sinônimo o 'nada', então 'o nada pode gerar tudo' torna-se um novo motto para o ateísmo. O vácuo quântico não corresponde ao 'nada', mas está simplesmente preenchido por algo intangível.

Chegamos a uma situação engraçada hoje, quando espiritualistas exaltados, que vêem com bons olhos as descobertas da física sobre o papel do vácuo físico, fazem coro com ateus no reconhecimento do papel criador desse novo vazio que tem em comum com o 'nada' apenas semelhança de palavras...

Notas e referências
  1. Ainda hoje, há quem acredite no éter luminífero. O conceito de 'éter luminífero' tornou-se uma bandeira de físicos que não aceitam as explicações padrão em relatividade e cosmologia. 
  2. Ver: http://www.daylightatheism.org/2009/09/cfac-its-all-because-of-quantum.html (acesso em Dezembro de 2012);
  3. Lamoreaux, S. K. (1997). "Demonstration of the Casimir Force in the 0.6 to 6 μm Range". Physical Review Letters 78: 5;
  4. Trecho original:
Logically speaking, there are only two possibilities for the ultimate origin of the universe: either there is an infinite regress of causes, or there is a first cause that cannot be explained in terms of earlier causes. Both atheists and theists should be able to agree that those are the choices. If there's an infinite regress of causes, it seems pointless to keep investigating further and further back; such a quest would be guaranteed never to end. If there is a first cause, though, we can productively ask questions about what sort of thing it might be. 
This is where Craig and Strobel run into trouble, because we already have an excellent candidate for a first cause: the quantum vacuum, a timeless, chaotic state that continually spawns new universes through random statistical fluctuation. We already know that the vacuum exists and we know what many of its properties are, so no new entities are required in this explanation. In arbitrarily deciding that the vacuum must have a cause, however, Craig introduces a new entity - a supernatural deity which he believes has the power to create new universes. This is something we have no experimental evidence for, and it solves the first-cause problem no better than making the vacuum the first cause.

4 de agosto de 2012

Conceitos básicos de Física Quântica IV

Problema de identidade do fóton: "Sou um fóton de raio X, de rádio ou de luz visível? Bem..., por que se preocupar com isso?!?... Não sei nem se sou uma onda ou uma partícula...!!"
Apresentação elementar de conceitos básicos em física quântica para que o leitor possa melhor julgar e se posicionar diante dos que pretendem misturar espiritualismo com essa especialidade da física. 

Em 3 posts anteriores (1), discutimos alguns fundamentos de física quântica, com o objetivo de apresentar de forma simplificada alguns fundamentos dessa parte da Física. De forma resumida, a física quântica tem como objetivo:
  • Estudar fenômenos que ocorrem em uma escala de dimensão muito reduzida. É a teoria padrão da chamada 'microfísica'. Embora a questão da escala 'reduzida' aqui seja importante, a física quântica não se aplica apenas ao microcosmo. Sob condições especiais, há fenômenos chamados 'macroscópicos' (de 'macro' ou grande) que demonstram a operação dessa nova física (2).
  • O estudo dessa nova física tem como objetivo explicar e prever a ocorrência de fenômenos que são manifestadamente anômalos do ponto de vista da chamada 'física clássica'. Assim, a física quântica estendeu não só nossa compreensão a respeito da Natureza como também nossa compreensão a respeito da 'fenomenologia' (descoberta e previsão de novos fenômenos).
Para isso, foi necessário criar um novo 'formalismo'. Formalismo é a linguagem usada para a descrição dos fenômenos, o que envolve não somente  símbolos, mas também novas relações entre símbolos. No caso da física quântica, seu formalismo é essencialmente matemático e propõe um novo espaço especialmente criado para descrever os fenômenos quânticos. Esse novo 'espaço' não tem nenhum equivalente com o 'espaço' de nossa vida comum e é uma ferramenta matemática para descrever fenômenos e relações entre causas ou princípios quânticos.

Problemas de interpretação com a física quântica.

Talvez não fosse difícil prever que a física quântica, uma vez que propõe um novo formalismo para cuidar de fenômenos que são anômalos para a física anterior, tivesse dificuldades com a sua interpretação. No caso da física clássica sua 'interpretação' não é um problema. 'Interpretação' é um conceito usado em uma determinada teoria que se relaciona com ideias e noções consideradas 'intuitivas'. Por exemplo: a noção de velocidade de uma partícula e sua posição no espaço. Esses são conceitos primitivos de fácil compreensão. O mesmo ocorre com a noção de campo elétrico e magnético (3). Pode-se argumentar, porém, que mesmo a física clássica não está imune a problemas de interpretação. Isso porque, na imensa maioria das vezes, conceitos físicos primitivos não podem ser representados por noções derivadas da experiência humana ordinária. Poderíamos 'relaxar' essa necessidade, exigindo que os conceitos da física tivessem relação direta com quantidades medidas em laboratório. Isso também é uma maneira de se interpretar teorias, embora de forma indireta.

Essa integração com noções intuitivas do dia-a-dia ou mesmo conceitos primitivos da física clássica ficou  irrealizável na física quântica. Se na física não-quântica conceitos físicos primitivos são interpretados de forma indireta, na física quântica desaparece a possibilidade de qualquer tipo de interpretação, mesmo que indireta. Um exemplo é o problema da dualidade 'onda-partícula'. Não só as quantidades associadas a uma partícula (velocidade e posição) não tem equivalentes 'intuitivos' nessa nova física, mas a própria identidade dessa 'coisa' pode ser ligada à noção intuitiva de 'partícula' e 'onda'.

Se não há interpretações possíveis na física quântica, como é possível usar a teoria? A resposta reside no fato de que uma teoria física prescindir de interpretações diretas ou mesmo indiretas para que seja válida. Utilizando-se corretamente dos conceitos primitivos dessa nova física, é possível montar experimentos envolvendo quantidades mensuráveis que, de fato, são verificadas. Essa maneira 'instrumental' de se utilizar a física quântica resultou na chamada 'interpretação instrumentalista' da física quântica (Chibeni, 1992, ver nota 4). De acordo com essa interpretação, a física quântica nada mais é que um mapa que nos permite conceber experimentos e relações entre conceitos de sua própria linguagem, conceitos que não tem nenhuma relação com o que percebemos no mundo. De certa forma, todo propósito de uma boa teoria - não apenas na física - é fornecer um mapa ou compreensão que nos permita fazer previsões sobre sistemas da Natureza. O que a física mostrou é que uma boa teoria não exige uma interpretação direta com noções intuitivas de objetos físicos.

Se a física quântica tem dificuldades interpretativas, como podemos aplicá-la a fenômenos psicológicos?

Nossa introdução sobre o problema de interpretação de conceitos da física quântica é importante no contexto das tentativas de se usar essa nova física para explicar categorias de fenômenos psicológicos e mesmo de natureza totalmente diversa. Diante das dificuldades interpretativas da física quântica, como podemos garantir que ela deva ser necessariamente a linguagem ou teoria que deve ser usada para explicar fenômenos psicológicos? Como querer usar a física quântica para explicar ou descrever fenômenos psicológicos, psíquicos ou 'paranormais'? Tais questões (ou problemas) deixam claro a existência de  obscurantismo nas tentativas de uso da física moderna fora do contexto em que ela é usada naturalmente por especialistas em microfísica. Assim, longe de elucidar ou explicar novos fenômenos, o uso de conceitos e linguagem da física quântica contribui para tornar ainda menos claro (mais obscuro) o objeto de estudo das ciências psicológicas e de outras causas  então consideradas "anomalias" (5).

É importante, entretanto, examinar brevemente quais são as várias interpretações existentes para a teoria da microfísica, o que faremos em um próximo post.

Notas e Referências

(1) Os três textos anteriores são:
(2) Um exemplo é a da superfluidez do hélio. Embora seja um fenômeno de base quântica, ele pode ser observado facilmente no 'nível macroscópico' em que nos situamos:


(3) Ainda que o caráter intuitivo desses últimos seja menor do que no caso de posição e velocidade, esses são conceitos clássicos também. Um conceito mais intuitivo do que campo, mesmo na física clássica, é a noção de 'força'. Assim, os campos eletromagnéticos poderiam ser substituídos por uma representação de forças elétricas e magnéticas que, para operarem, exigem 'ação à distância'. Como pode-se ver, mesmo a física clássica não está imune a problemas de interpretação.

(4) Uma excelente introdução ao assunto é: