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18 de março de 2012

O Espiritismo como forma de conhecimento (texto de Érico Bomfim)


Ao longo de nossos estudos no eradoespirito também podemos postar textos ou artigos originais de pessoas que tenham interesse em participar do blog. Este é um exemplo. Trata-se de um texto interessante para reflexão escrito por Érico Bomfim. Saiba mais sobre este autor no final do post. 

O Espiritismo se opõe frontalmente às tendências majoritárias da filosofia recente. Ao resgatar a sobrevivência da alma e a reencarnação, o Espiritismo é visto como uma verdadeira anomalia na história do pensamento; é visto como afinado com ideias antiquadas e primitivas, como sendo um aglomerado de velhas supertições. No entanto, como explica Kardec (2009a) “uma ideia não é supersticiosa senão porque ela é falsa; ela cessa de sê-lo desde o momento em que é reconhecida verdadeira. A questão, pois, é saber se há, ou não, manifestações de espíritos”.

É em razão de seu conteúdo, portanto, que o Espiritismo sofre ataques. Nunca em razão de sua forma. No entanto, os mais diversos conteúdos são examinados pelas ciências. Segue-se daí que não é o conteúdo que determina uma atividade humana como sendo uma ciência. É a forma. Explicamos.

Por forma, aqui, entendemos as estruturas de acordo com as quais constroem-se as diversas ciências, segundo a epistemologia contemporânea (ver Apêndice). Por conteúdo, entendemos o assunto abordado. Por exemplo, a Filosofia da Natureza, dos pré-socráticos, e as diversas ciências da natureza estudam, por vezes, os mesmos assuntos. No entanto, suas formas são diferentes. O nível de especulação na primeira é muito maior, porque o de observação é muito menor.

A observação restringe as teorias (muito mais do que as “comprova”). É por isso que confia-se muito mais nos postulados da astronomia do que nos da cosmologia pré-socrática. Pode-se dizer que a confiança que se tem na ciência se dá porque nela a observação dos fatos tende a não permitir que os equívocos se perpetuem. De fato, quando uma teoria está errada, espera-se que os fatos o mostrem.

O Espiritismo está para todos os sistemas metafísicos anteriores (religiosos ou filosóficos), assim como a astronomia está para a cosmologia pré-socrática. O Espiritismo é a primeira atividade humana a estudar o suprassensível pela forma científica. Todos os sistemas anteriores tinham um alto nível de especulação. A coisa é bastante simples: nunca antes houve uma ciência que perguntasse aos espíritos (após verificar sua existência* ) como é o seu mundo. É por fazer isso que os postulados espíritas gozam de tanta segurança. Negar o Espiritismo porque ele parece “anacrônico” ou “antiquado” seria como negar que o Sol é o centro do sistema solar porque Jesus não pode ter encarnado na periferia. Ora, se a Astronomia observa que o Sol está no centro do sistema solar, ele não se deslocará para satisfazer a um capricho cristão. Do mesmo modo, se os espíritos reencarnam e progridem, e se essas são leis do mundo espiritual, não deixarão de fazê-lo porque isso parece uma ideia ultrapassada. “A questão, pois, é saber se há, ou não, manifestações de espíritos”, porque, se houver, não deixará de haver porque são vistas como superstição. Mas ainda se fará uma objeção: será possível fazer ciência do que não se dá aos sentidos, mas está além desses; será possível fazer ciência do suprassensível?

A História, muitas vezes, nos fala de um passado do qual nós não tivemos a experiência e nem por isso deixa de ser ciência. A ninguém ocorre questionar que o Brasil se tornou independente de Portugal em 1822 por não poder vê-lo com seus próprios olhos. As manifestações espíritas equivalem aos documentos históricos, porque tanto as primeiras como os segundos nos pintam um mundo do qual nós não podemos ter conhecimento a não ser através deles.

Os críticos que unirem obstinação e ignorância extrema farão ainda um ataque final: “Como poderá haver ciência do sobrenatural, uma vez que este foge a quaisquer leis e regularidades, que são necessidades da atividade científica?” De fato, segundo Marilena Chaui (2010) a atitude científica “opera um desencantamento ou desenfeitiçamento do mundo, mostrando que nele não agem forças secretas, mas causas e relações racionais que podem ser conhecidas e que tais conhecimentos podem ser transmitidos a todos”.

Ora, todo aquele que está familiarizado com Kardec sabe que nada ilustraria melhor sua postura do que o trecho citado acima. Mas para os que ainda não o estão, deixemos que o próprio Kardec lhos mostre:
O Espiritismo repudia, no que lhe concerne, todo efeito maravilhoso, quer dizer, fora das leis da Naureza. Ele não faz nem milagres nem prodígios, mas explica, em virtude de uma lei, certos efeitos até hoje reputados como milagres e prodígios, e por isso mesmo demonstra sua possibilidade.(Kardec, 2009a) 
[O Espiritismo] diz e prova que os fenômenos sobre os quais se apoia não têm de sobrenatural senão a aparência. (…) Mas eles não são mais sobrenaturais que todos os fenômenos aos quais a Ciência hoje dá solução, e que pareceram maravilhosos numa outra época. Todos os fenômenos espíritas, sem exceção, são a consequência de leis gerais e nos revelam um dos poderes da Natureza, poder desconhecido, ou dizendo melhor, incompreendido até aqui, mas que a observação demonstra estar na ordem das coisas. (…) Aqueles que o atacam a esse respeito é porque não o conhecem(Kardec, 2009). 
O maravilhoso, expulso do domínio da materialidade pela ciência, entrincheirou-se no da espiritualidade, que foi o seu último refúgio. O Espiritismo, em demonstrando que o elemento espiritual é uma das forças vivas da Natureza, força incessantemente agindo concorrentemente com a força material, fez de novo entrar os fenômenos que dela ressaltam no círculo dos efeitos naturais, porque, como os outros, estão submetidos a leis. Se o maravilhoso foi expulso da espiritualidade, não tem mais razão de ser, e é então somente que se poderá dizer que passou o tempo dos milagres (Kardec, 2009b).
O Espiritismo, portanto, longe de se nutrir do sobrenatural, operou o desencantamento final do Universo.

Apêndice: alguns critérios para se avaliar uma teoria ou hipótese.

Aqui são expostos de maneira muito geral e extremamente simplificada alguns esboços dos critérios das principais teorias da filosofia da ciência contemporânea para se avaliar uma teoria ou hipótese:
  1. Popperiano: Para o filósofo da ciência Karl Popper, uma hipótese só é científica se for falsificável, isto é, apenas se houver algum fato que, se observado, a torne falsa. Uma hipótese que sabe-se de antemão que se encaixa em qualquer fato observável não é, portanto, tolerável na ciência. Por exemplo, se um criacionista diz que Deus forjou as provas da evolução para testar a nossa fé, é difícil imaginar qualquer fóssil ou qualquer prova da evolução que, se encontrado, convença-o de que sua hipótese é falsa. Ainda que se encontre um ancestral de uma espécie qualquer congelado e em perfeitas condições, o criacionista dirá que Deus criou aquela prova para testar a nossa fé. Não há qualquer fato que, se observado, torne a hipótese criacionista falsa, para um criacionista. Sua hipótese de que Deus criou as provas da evolução para testar a nossa fé se adapta a qualquer fato que se verifique, porque o criacionista alegará que Deus, sendo onipotente, pode ter criado qualquer prova da evolução, com aquele intuito de nos testar.
  2. Kuhniano: para o filósofo da ciência Thomas Kuhn, uma teoria resiste até que acumule anomalias, ou seja, fatos que ela não explica. Em outras palavras, quando observam-se diversos fatos que uma teoria não explica, essa teoria é substituída por outra em que os fatos se encaixem. A teoria em que os fatos se encaixam é parte de um paradigma estável, porque não acumulou anomalias.
  3. Lakatosiano: Para o filósofo da ciência Imre Lakatos, uma teoria é tão melhor quanto mais antecipa os fatos. Uma teoria que prevê os fatos, além de se adequar aos já observados, é considerada integrante de um programa de pesquisa progressivo. A teoria que faz previsões equivocadas e precisa de explicações adicionais para dizer por que errou, correndo assim atrás dos fatos, integra um programa de pesquisa degenerante.
(*) Não tratamos aqui das evidências da sobrevivência e da comunicabilidade dos espíritos. Este seria um assunto para muitos artigos.

Referências

Chaui M. (2010). “Convite à Filosofia”. Ed. Ática. São Paulo.
Chibeni S.. “O que é Ciência?”
Kardec A. (2009) . “O Livro dos Espíritos”. Ed. IDE. Araras, SP.
  • (2009a) “O que é o Espiritismo".  Ed. IDE, Araras, SP.
  • (2009b) “A Gênese, os milagres e as predições segundo o Espiritismo”.  Ed. IDE, Araras, SP.

Sobre Érico Bomfim.

Nascido em 1991, no Rio de Janeiro e cursando (2012) o último ano de bacharelado em piano pela UFRJ. 

24 de dezembro de 2011

Ciência e Fé

“A Ciência e a Religião são as duas alavancas da inteligência humana: uma revela as leis do mundo material e a outra as do mundo moral. Tendo, no entanto, essas leis o mesmo princípio, que é Deus, não podem contradizer-se.” (Allan Kardec)

Há opinião generalizada de que não é possível haver acordo entre a Ciência e a Fé. Para muitos, Ciência e Religião jamais poderão ser integradas, posto que se colocam hoje em dia em posições diametralmente opostas no que diz respeito à maneira como o Mundo deve ser visto e interpretado. Como a Ciência - entendida como conhecimento e não meramente como opinião acadêmica - foi capaz de prodigalizar avanços nunca imaginados e de produzir conhecimento útil a respeito desse Mundo, enquanto que a Religião estabelecida é herdeira de um passado pouco memorável, prevalece o ponto de vista de que a Ciência deve substituir a Fé em todos os setores da vida humana.

Semelhante estado de coisas é apenas produto de um ponto de vista muito particular sobre o que Ciência e Fé realmente são. Quase sempre a última é descrita como filha da ignorância e herdeira da presunção humana que assume uma imagem do Universo sem a necessidade de provas. Os exageros pintados em cores escuras que cercam a noção de Fé, se contrapõem aos exageros semelhantes mas em tons coloridos que se formam em torno da Ciência. Esta é vista como produto da exação e da lógica, da aplicação rigorosa de um método isento de erros e acima de todos os interesses humanos. A favor desse quadro apresentaram-se versões de fatos históricos, que se cristalizaram como verdades absolutas seguindo a opinião de maior gosto e interesse de nossa época.

Entretanto, esse estado de tensão desaparece ao se encontrar uma nova noção de Fé que se completa a partir de uma nova visão da Ciência, nascida da compreensão integral de como esta opera e se estabelece realmente.  Tal mudança de ponto de vista com relação às noções de Ciência e Fé são parte dos fundamentos que deverão estabelecer uma nova sociedade, mais equânime e menos dogmática em seus pontos de vista. 

Pois, apenas a uma causa deve-se imputar o aparente conflito que existe entre Ciência e Fé: ao dogmatismo que ainda existe na sociedade humana. É a opinião dogmática que devemos combater como sendo o pior dos vícios quando a questão é fazer verdadeiramente Ciência e Religião caminharem lado a lado. Elimine o dogmatismo e veremos aparecer uma nova Ciência e uma nova Religião prontas as se darem as mãos em direção à Verdade. Elimine o dogmatismo e teremos uma síntese perfeita do que pode a alma humana alcançar em termos do que é belo e verdadeiro em sua plenitude: a respeito de nossas origens como espécie, de nossa posição no Mundo, sobre nossas aptidões em realizar o ideal de beleza no campo das artes, com relação a nossa 'religação' com a fonte primordial da Vida, que constitui Religião no sentido mais exato do termo. 

Repetimos que o dogmatismo é o responsável por todos os desvirtuamentos da Religião: ele pode ser encontrado em todas as decisões a respeito de assuntos que não eram de sua alçada, mas que se ligaram a ela por puro interesse. E, quando se trata de defender seus maiores interesses (ainda que tais interesses sejam inúteis e imaginários) é preciso ser dogmático. É o dogmatismo o responsável por negar à Ciência sua capacidade de estudar e compreender assuntos transcendentes porque tais assuntos fogem aos interesses imediatos de se fazer Ciência. Logo é preciso alimentar o dogmatismo. 

Em essência, nunca houve conflito genuíno entre o conhecimento puro a respeito do mundo e a necessidade humana de se conectar à fonte geradora desse mesmo mundo. Ambas são forças que nascem da ânsia de transcender a nossa vida cotidiana, em procurar e se ligar a nossa verdadeira origem. Mas, por causa dos interesses que se multiplicaram no meio do caminho que se traçou para essa busca, Ciência e Fé tornaram-se, de acordo com esse ponto de vista popular, pontos de vista antagônicos para se interpretar o Mundo. 

Um novo continente haverá de surgir desse oceano profundo, de águas escuras e enodoadas por sangrentas e cruéis batalhas de outrora. Que morram os interesses mesquinhos e veremos nascer uma nova Terra como uma nova síntese de estado de coisas, de noções mais perfeitas e conhecimentos ainda mais exatos.  Nesse novo mundo, desaparecerão as concepções de 'Religião' e 'Ciência', confundidas em uma mesma busca, em um mesmo método de procura da Verdade que é por si mesma a fonte de tudo que existe.

26 de fevereiro de 2011

Crenças Céticas XII - Tomando carona no ceticismo: Críticas ao 'Espiritismo' em Ateus.net


Vamos agora analisar alguns textos utilizando as discussões que apresentamos anteriormente sobre as crenças céticas. Com isso, fornecemos alguns fatos, como exemplos interessantes, que confirmam nossas exposições sobre o ponto de vista cético.

Nosso objetivo aqui não é discutir as crenças do ateísmo, mas fazer alguns comentários em torno de um artigo que pretende levantar críticas contra o Espiritismo, notadamente sobre a relação desse com as disciplinas acadêmicas. O artigo intitulado 'Espiritismo, Ciência e Lógica' é longo, mas uma síntese do pensamento do autor desse texto pode ser compreendida lendo-se a comparação que ele faz através de um quadro entre suas noções de 'Ciência' e de 'Espiritismo'. Esse quadro está mais ou menos no meio do artigo, e passamos a discuti-lo abaixo.

Um pouco antes desse quadro pode-se ler:

E o Espiritismo nessas mudanças? O fosso entre as metodologias da “ciência espírita” e as demais “ciências” do mundo material foi progressivamente aumentando.

Por 'mudanças' aqui, o autor entende as revoluções da física moderna que levaram a uma noção diferente do mundo em comparação aos critérios e interpretações da física chamada 'clássica'. Ele afirma que existe um 'fosso' entre as  'ciências do mundo material' e o 'Espiritismo'. Vejamos os pontos principais de sua argumentação, analisando o quadro comparativo que o autor coloca como argumentos a favor da existência de tal 'fosso':

"Ciência"

1) Comum novas gerações de cientistas refutarem trabalhos anteriores. Aversão a critérios de “autoridade”.

Aqui a palavra 'refutar' está sendo empregada de forma pouco precisa. Alguém já ouviu falar em 'refutação' dos trabalhos de Newton, Einstein, Maxwell? Será que 'Einstein refutou Newton'? Será que 'Maxwell foi refutado pela teoria dos campos'? Será que a Mecânica Quântica refutou a mecânica clássica?   Existem casos históricos de teorias - que eram as preferidas dos acadêmicos - terem sido suplantadas por outras. Um exemplo interessante foi a teoria do flogisto (antes dos desenvolvimentos da termodinâmica na Física), ou a teoria dos continentes fixos (na Geologia), suplantada pela tectônica de placas. Na Física, as teorias clássicas podem ser derivadas das teorias não-clássicas (ex., relatividade e mecânica quântica) a partir de determinados limites.  A tese de 'refutação' não se defende muito bem.

Também, a observação em análise demonstra conhecimento idealizado do mundo acadêmico: com relação à aversão aos 'critérios de autoridade', isso é um mito que corre entre cientistas. Todos sabem que um artigo científico receberá tratamento muito diferente se for publicado por um estudante (ou autor desconhecido) ou um prêmio Nobel, ainda que tenha o mesmo conteúdo. A autoridade se constrói no conceito: o 'nome' (número de artigos, citações, impacto etc). Ele conta muito e se correlaciona fortemente com quanto um pesquisador ou grupo de pesquisadores irá receber do governo ou de seus financiadores para a realização de pesquisa. Essa é a razão porque cientistas procuram sempre ter seus currículos atualizados com novas publicações e alunos. 

2) Obras de grandes mestres (Principia Mathematica, Origem das Espécies, etc.) ainda lidas como referência, fontes de valor histórico e como uma forma de adentrar no raciocínio do autor. Os estudantes, porém, usam bibliografia recente, expandida e corrigida.

É verdade, e, frequentemente, se acham erros de interpretação imperdoáveis em tais 'bibliografias recentes, expandidas e corrigidas' para tristeza dos estudantes (Campanario, 2006; Hubizs, 2003). Qualquer pesquisador sério sabe que não há nada melhor do que uma consulta aos autores originais para se encontrar os princípios que fundamentam as diversas teorias de sua ciência.

3) A lógica é usada como ferramenta apenas. O raciocínio precisa estar corroborado em evidências

Somos também brindados com essa preciosa observação: 

"Kardec depositava fichas demais na lógica. Ela é importante sem dúvida e tê-la é um requisito mínimo. Mas quem a estuda não demora a descobrir que ela não tem tanto poder assim como dizem."
Ao longo do texto, seu autor confunde a validade de pressupostos de uma argumentação lógica com a própria argumentação lógica. Não só Kardec, mas toda a comunidade de cientistas deposita fichas demais na lógica porque não existe outro método de raciocínio disponível.

4) O bom senso e a experiência usual nem sempre são seguidos (Relatividade e Mecânica Quântica que o digam. Idem para a “ação à distância” de Newton). Opta-se por soluções pragmáticas, ainda que esdrúxulas.

O autor diz que a 'Ciência opta por soluções esdrúxulas' e que isso é o resultado da Ciência se afastar do 'bom senso' e da 'experiência'.  Para quem compreende bem os fundamentos da Mecânica Quântica, ou da Relatividade sabe que essas teorias da Física estão estruturadas de forma lógica - sim a mesma lógica que o autor disse que 'não tem tanto poder assim como dizem'. Sob determinadas interpretações particulares, esses ciências podem revelar aspectos do Universo e do mundo que não estão de acordo com a experiência comum do dia-a-dia dos humanos. 

5) Há grande discussão em torno da filosofia da ciência quanto à questão da melhor metodologia para o estabelecimento de novos conhecimentos (refutabilidade, crise de paradigmas, etc.).

A Epistemologia é uma área acadêmica da filosofia. Entretanto, não existe consenso entre especialistas da área sobre o impacto dos estudos da epistemologia nas ciências. Na verdade, há quem defenda que estudos da Epistemologia não tem serventia na Ciência (Holton, 1984). Embora seja altamente positivo que estudantes das ciências se debrucem também sobre esse ramo da filosofia, sabe-se que a Epistemologia não é matéria obrigatória nos currículos da Física, Biologia, Química etc. Prefere-se não perder tempo com o assunto, embora sua aparente relevância para o desenvolvimento da Ciência.

6) Teorias inverificáveis, mas belas, são postas de lado.

Aqui,o que se entende por 'belas teorias'? Pois 'beleza' não é algo intrínseco do objeto admirado, depende também de quem admira. Uma teoria que é bela para um cientista pode não ser para outro. Exemplos dessa situação existem muitos na história da ciência. A teoria do movimento da Terra era insustentável para os defensores da Terra fixa e vice-versa.

Que exemplo que se pode dar de uma teoria inverificável? Como podemos saber que uma teoria é inverificável hoje diante dos avanços da tecnologia? Toda teoria é construída sobre algum fundamento empírico, entretanto, muitas teorias poderosas foram propostas bem antes de se registrar qualquer evento ou fenômeno que a suportasse.

7) Apropriações entre ramos da ciência (malthusianismo no darwinismo, biologia na sociologia – darwinismo social, eugenia) hoje são vistas com reservas. 

Talvez o mais apropriado aqui fosse dizer 'integração' e não 'apropriações'. De qualquer forma, a frase parece conferir status de ciência ao Darwnismo Social e a Eugenia. Talvez o objetivo seja dizer que determinadas interpretações ou extrapolações a partir de teorias científicas não mais são aceitas facilmente: o darwinismo social e a eugenia da biologia, o malthusianismo do darwinismo. A sociologia é uma teoria independente da biologia. 

8) Ciências que não têm acesso direto ao seu objeto de estudo (astronomia, história, etc.) lançam mão da análise indireta dos efeitos que chegam até nós. (espectro de luz, documentos históricos). 

Entretanto, porque ateus, céticos e materialistas exigem 'provas objetivas e repetitivas' dos fenômenos psíquicos? Por que a ênfase no 'rigor' e na 'objetividade'? A imensa maioria dos fenômenos chamados 'paranormais' não é acessível aos sentidos. Kardec foi a primeira pessoa a reconhecer as manifestações do Espíritos só podem ser acessadas indiretamente. 

9) Orações, Meditação e estados alterados de consciência são passíveis de estudo, mas isso não significa que seja verdade aquilo que seus praticantes dizem. 

Alguns estudos acadêmicos estrangeiros apontam para algo diferente, anômalo ou peculiar nos seres humanso: sua origem e natureza espiritual. Obviamente, todo cientista é livre para pesquisar o que bem entender, as limitações que se impõem vem da falta de recursos financeiros,  tempo (que é conseqüência da falta de recursos) ou capacidade intelectual.

A frase faz transparecer que a Ciência (no sentido de comunidade acadêmica) tem preconceito com relação a certas fontes de conhecimento. Mesmo assim, essa opinião contrasta com a de pesquisadores sérios em Parapsicologia que, frequentemente, reportam o que seus 'sujets' sentem (como informação importante), sem falar nos pesquisadores de experiência de quase morte. Infelizmente ainda não se desenvolveram métodos não humanos de se acessar as realidades do pós vida ou mesmo para praticar uma simples telepatia.

10) Não faz afirmações morais. Descobertas podem, inclusive, entrar em choque com a moral vigente. 

O objetivo das ciências naturais não é mesmo fazer afirmações morais. Mas isso não pode ser contado como uma virtude como a observação parece sugerir. O mais correto é dizer que as ciências naturais são neutras. De outra forma, aplicações tecnológicas (derivadas das descobertas científicas) podem tanto ser usadas para o bem como para o mal (Exemplos: avanços da genética, pesquisas nucleares etc).

"Espiritismo"

1) Medo de se distanciar da ortodoxia kardequiana. Culto à autoridade contido no espírito da Verdade ou Kardec. Há exceções, óbvio.

O culto à ortodoxia é o que mais se vê no ambiente acadêmico. Mais uma vez, a frase deixa transparecer conhecimento superficial do mundo acadêmico - que é o ambiente onde as ciências acadêmicas são 'produzidas'. Confunde-se repetidamente 'ciência' (teoria, hipótese, conhecimento) com o movimento humano que a produz. Assim confunde-se igualmente 'Espiritismo' com 'Movimento Espírita' tanto quanto 'ciência acadêmica' com 'academia'. 

O que na frase é chamado de 'culto' é o que ocorre em qualquer ambiente humano, que, no caso da Ciência, tem como objetivo proteger suas teorias contra revisões ou alterações mal intencionadas. Um cientista defende uma boa teoria com o mesmo zelo que um fazendeiro sua propriedade, e não há o que se achar estranho nisso. Pelo contrário, o oposto seria algo bastante inexplicável.

2) Livros de Kardec ainda utilizados sem alterações, mesmo no que há de errado. Notas de rodapé corrigem alguns erros.

Imaginemos uma situação hipotética: uma nova edição do 'Principia' de Newton sendo lançada repleta de 'revisões' e 'correções' a partir da relatividade restrita e geral. Imaginemos que os livros editados por Mawxell, Newton, Galileu, Boltzmann e outros grandes físicos fossem relançados com revisões completas - não notas de rodapé. Imagine lançar o livro fundamental de Charles Darwin em uma edição totalmente revisada conforme as novas descobertas da genética.

As obras dos pesquisadores pioneiros (em todas as áreas do conhecimento) representam um manancial de conhecimentos originais, onde se podem encontrar os princípios ou fundamentos das ideias e teorias e, portanto, não são passíveis de revisão.

Há muitas coisas que ainda devem ser 'descobertas' nas obras de Kardec. Justamente por não se dar o devido valor a certas passagens, é que não se consegue construir uma teoria correta sobre muitos fenômenos considerados 'anômalos'. 

3) A lógica é utilizada como meio de prova ou refutação de hipóteses, não havendo verificação de se a natureza pensa igualmente.

Quem 'pensa' em matéria de criação e teste de hipóteses são os seres humanos. A Natureza não pensa, ela simplesmente é. Aqui aparece a mesma crítica à lógica que o autor do texto diz 'que não tem tanto poder como pensam' (ver item 3 em 'Ciência' acima).

4) O senso comum, ao lado da lógica, é superestimado.

Em boa parte dos desenvolvimentos da Ciência, o 'senso comum' é utilizado como sinônimo de 'razoabilidade', ou seja, é uma percepção humana que permite distinguir o que é razoável do que não é. O mesmo ocorre com a lógica. (Ver considerações do item 3 em 'Ciência').

5) O conhecimento espírita ainda é majoritariamente indutivo, baseado em moldes científicos do século XIX (positivismo). 

Se por 'positivismo' entendermos a necessidade de se fundamentar o conhecimento em fatos ou fenômenos naturais, é compreensível que o Espiritismo tenha caráter 'positivo' neste sentido. Afinal aquilo que Kardec descreve em 'O Livro dos Médiuns' não é invenção dele, mas constitui uma fenomenologia verificável. É necessário que seja assim, pois a base do conhecimento não pode ser a crença ou a invenção. Toda ciência - ainda que nascida como pura teoria - só se estabelece ao se conectar a uma classe de fenômenos observáveis (não necessariamente através sentidos humanos). A ciência moderna continua a ser positiva ou positivista nesse sentido. 

Entretanto, é falso considerar o desenvolvimento e fundamentação do Espiritismo em uma acepção particular do positivismo: aquela que crê que o mundo deve ser explicado a partir de entidades que sejam acessíveis apenas aos sentidos humanos. Um positivista nessa definição só acredita naquilo que os sentidos lhe apresentam. Kardec aceitou a existência dos Espíritos e de muitas outras coisas a partir de evidências indiretas (afinal Espíritos não podem ser vistos ou 'detectados' por nenhum tipo de equipamento.

6) Persiste a presença de hipóteses “ad hoc” inverificáveis para sustentar pontos nebulosos da doutrina. (ex: vida “invisível” em outros planetas) .

Se o plano invisível existe na Terra, porque não poderia existir em outros planetas? Por que esse privilégio? Há aqui interpretação limitada da noção dos 'mundos habitados' . Ela não se refere a planetas, mas a planos de existência. Ao exigir 'hipóteses verificáveis' o autor está sendo incongruente com sua crítica de Kardec - o de acusá-lo de 'positivista'.

6) Apropriações correntes são feitas sem garantia de que são válidas (ação e reação, noções de mecânica quântica, etc.)

É verdade. Há muitas pessoas que fazem uso de paradigmas de ciências bem estabelecidas como modelos de entidades de natureza espiritual. Isso não só no Brasil como no exterior onde, dizem, o Espiritismo de Kardec não existe. Há que se explicar porque isso ocorre nesse contexto (além da argumentação simples exposta pelo autor), demonstrando que isso não é característica da Doutrina Espírita. Para ver um exemplo recente do uso de noções de Física Quântica, consulte a revista Neuroquantology.

7) Pede um lugar “especial” entre as ciências por não ter acesso direto ao seu objeto de estudo (espíritos).

Aqui temo outra afirmação totalmente falsa. Por isso é importante distinguir entre a noção de  disciplina acadêmica (disciplina que tem corpo de pesquisadores, cátedra, laboratórios, verbas, corpo de edição com publicações sujeitas à avaliação por pares etc) com ciência ou conhecimento sobre o qual ela discorre. Toda vez que dizemos 'O Espiritismo é Ciência', não estamos a afirmar  que ele é uma disciplina acadêmica nesse sentido especial. Assim, a afirmação não é válida.

Ainda assim, é possível ver que os 'objetos da Natureza' descritos e utilizados pela Doutrina Espírita são entidades que têm sua existência no mundo em que vivemos. Se eles não são objeto de estudo das disciplinas acadêmicas, então quem os estudará?

8) Verdades podem ser extraídas de “estados alterados de consciência”, vulga mediunidade. Contudo, nenhuma proposta rigorosa para a separação do joio e do trigo foi apresentada. 

Será correto igualar 'estados alterados de consciência' com a mediunidade? Se definirmos estado de consciência normal como o estado mental durante a vigília, então, quando dormimos ocorre mediunidade? Se o estado de vigília e sono são estados normais de consciência, então alguém bêbado terá mediunidade?

As 'propostas rigorosas' passam todas pelo crivo neo-positivista tece longas críticas à existência da própria fenomenologia psíquica. Aqui vemos transparecer incoerência: a Ciência aceita 'explicações esdrúxulas' e evidências indiretas fugindo do 'bom senso', mas  as investigações na esfera psíquica ou espiritual deve passar por um 'crivo rigoroso'. 

8) Produz cartilhas de certo e errado. Eufemismos são usados para se alegar que “não é bem assim…” 

Fica difícil avaliar essa afirmação do autor de 'Espiritismo, Ciência e Lógica' se ele não deu nenhuma referência a quais são essas 'cartilhas'.

Existem maneiras mais sofisticadas e razoáveis de se defender o ateísmo. Está claro que o referido artigo não só é tendencioso em relação à Doutrina Espírita, mas constitui uma defesa precária do ateísmo, que merece nosso respeito como crença. 


Referências

J. M. Campanario, (2006), Using textbook errors to teach physics: examples of specific activities. Eur. J. Phys. 27, 975–981 doi:10.1088/0143-0807/27/4/028

G. Holton (1984), Do Scientists need a Philosophy?, Times Literary Supplement 2, 1232.

J. L. Hubisz, (2003), Middle school text don’t make the grade. Phys. Today 56, 50–4


29 de janeiro de 2011

Fundamentos III - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

A tarefa agora é começar a entender como se estabelece a relação entre o Espiritismo e as ciências. Certamente, não será objetivo do Espiritismo competir com esses ramos de atividade humana. Por isso, não é tarefa do Espiritismo fornecer explicações alternativas ou desenvolver o núcleo principal das ciências com as quais o Espiritismo faz fronteira. Não se deve esquecer que o Espiritismo como movimento é uma realização humana. O cientista que é espírita – se trabalha profissionalmente com alguma dessas áreas correlatas – tem seus próprios meios e procedimentos, advindos do estudo adquirido de sua atividade. Como faz parte do processo de desenvolvimento da ciência normal, ele pode (e deve) utilizar os meios a sua volta (inclusive sua própria cultura) para fazer desenvolver sua ciência conforme suas regras próprias. Como dissemos, a ciência não faz caso da origem do conhecimento, o importante é que esse se organize como um paradigma bem estruturado, coerente e naturalmente integrado aos fenômenos. Trazemos abaixo alguns breves comentários das regiões de fronteira entre a Doutrina Espírita e as ciências, enfatizando alguns pontos que nos parecem interessantes:

Espiritismo X Astronomia: é bem conhecida as descrições da origem do sistema solar (nebulosa primordial) existente no livro “Gênese” [2] de Allan Kardec. O capítulo VI de “Gênese” também fala de inúmeras galáxias (denominadas “nebulosas” – entendidas como agrupamentos de bilhões de estrelas como a “Via-Láctea”) numa época em que não se havia certeza desse fato. Há relatos de comunicações de Espíritos anunciando a existência de satélites desconhecidos em outros planetas. Além disso, o Espiritismo parece ter se antecipado às discussões que deram origem à exobiologia, que foi proposta para estudar a possibilidade de vida em outros planetas. É interessante observar que, uma vez classificada como um planeta qualquer, a Terra passou a ser vista como um dos muitos planetas a ter vida inteligente no Universo (algo muito difícil de se acreditar no século 19). O Espiritismo prevê abertamente, pelo princípio da “pluralidade dos mundos habitados”, a existência de vida inteligente fora da Terra (ainda a ser verificada pelos métodos normais – contato físico). Antes disso, porém, previu a existência de inúmeros planetas orbitando as estrelas, um fato que se tornou tema de pesquisa contemporâneo, graças ao desenvolvimento de novos métodos de observação muito mais precisos. Muitos planetas foram encontrados a partir de 1990 em torno de estrelas próximas.

Espiritismo X Física: aqui deparamo-nos com algumas afirmações feitas em “O Livro dos Espíritos” que parecem ter antevisto a modificação radical por que passaria a física a partir do século 20. Os Espíritos falaram em uma forma que “que não sois capazes de apreciar” [4] a respeito da estrutura dos átomos (uma alusão às “nuvens de probabilidade” dos elétrons?) num contexto bastante diferente para a física da época. Considerações sobre a origem do Universo são feitas no começo de “O Livro dos Espíritos”, levando o Espiritismo para a fronteira com a cosmologia. É preciso, porém, ter cautela em se tratar a questão inversa: a da influência da física no Espiritismo. Muitos falam abertamente nas diversas “energias” que constituem o mundo espiritual, esquecendo-se que “energia” é um conceito muito bem definido em física e que não admite reinterpretações dessa forma [5]. Outros levantam a possibilidade de entender o próprio mundo espiritual como um “contínuo quadridimensional” do mundo físico. Para se utilizar conceitos e sugestões advindos do Espiritismo na física, faz-se necessário grande competência em física uma vez que os núcleos das teorias (tanto do lado espírita como material) possui certa resistência a mudanças, além de estar fundamentado em teorias profundamente matemáticas. Por isso mesmo, tentativas de modificação de conceitos por sugestão de ambos os lados (de um lado para outro) são muito duvidosas no que diz respeito a qualquer avanço significativo no conhecimento. É importante também considerar as questões de diferença de linguagem (significado de termos e conceitos dentro de cada teoria particular) quando essa linguagem tenta conectar um fenômeno supostamente descritível tanto pela física como pelo Espiritismo. Minha impressão particular é que o grau de especificidade atingido pela física (especialização na forma de pulverização de campos de compentência) torna pouco viável qualquer tentativa “fácil” de interação.

Espiritismo X Biologia (medicina): aqui a fronteira torna-se um pouco mais nítida. Em “O Livro dos Espíritos” [6], existem muitas questões a respeito da origem dos seres vivos. É também na “Gênese” que existe um famoso capítulo sobre a gênese orgânica. Naturalmente, esse capítulo faz eco às concepções da época, ainda às voltas com a “teoria da geração espontânea”, então a teoria mais aceita. É no Capítulo XI da II Parte de “O livro dos Espíritos” [3] que vamos encontrar questões cujas perguntas reafirmam a natureza espiritual de todos os seres vivos e sua submissão à lei de progresso. Naturalmente, os mecanismos da evolução das espécies não estão afirmados nesses livros, mas o princípio de evolução espiritual ajusta-se perfeitamente bem aos princípios da seleção natural, representando um mecanismo de modificação que atua na parte material levando o Espírito a se desenvolver. É importante considerar que as discussões sobre a gênese orgânica são complementares para a compreensão da Doutrina e seu desenvolvimento. Por isso esses pontos, assim como muitos outros, sofrem e sofrerão modificação, sem que haja impacto ao corpo principal de doutrina.

Tal não é o caso, porém, com as inúmeras patologias da alma [7] que citamos acima. Nos quadros obsessivos, a ação do Espírito obsessor pode levar ao colapso orgânico do obsidiado. A origem da doença, em sua íntima essência, encontra-se assim descrita através desse quadro de “simbiose espiritual”. É difícil entender como outra teoria – que desconheça a ação dos Espíritos – possa ter um sucesso maior no desenvolvimento de uma terapia apropriada. Aqui se vê claramente a enorme importância dos princípios espíritas no desenvolvimento de certos ramos da medicina pois não se trata apenas de construção ou progressão da ciênica mas do desenvolviemento de terapias apropriadas a inúmeros transtornos mentais.

Espiritismo X História: as contribuições que o Espiritismo pode dar à História são bastante evidentes. Um aspecto bastante inovador surge aqui, que é o de considerar os relatos históricos fornecidos pelos Espíritos, quando por meio de médiums conhecidos. São notórios os casos de médiums que colaboram com investigações policiais na elucidação de crimes. No Brasil a psicografia já ajudou a elucidar vários assassinatos. Com médiums equilibrados, os Espíritos podem fazer revelações úteis ao progresso moral da sociedade e, muitas vezes, essas revelações trazem noticias de relevante valor histórioco (como no caso dos inúmeros romances históricos de Emmanuel por meio de Francisco C. Xavier).

Espiritismo X Psicologia: o Espiritismo tem muito a contribuir com as disciplinas que tem como objetivo de estudo o homem em sua essência. Esse é o caso da Psicologia. Podemos falar em uma psicologia espírita que nasce por “inspiração” dos postulados da doutrina (principalmente de suas conseqüências morais) na maneira de viver, de se comportar e de interagir dos seres humanos. O conhecimento da lei de evolução e reencarnação é crucial para se entender as tendências inatas dos seres humanos que determinam o comportamento, além das limitadas considerações genéticas. Esse certamente é um campo com grande futuro, onde apenas vislumbramos um começo.

Espiritismo X Sociologia: o comportamento social e evolução das sociedades é função de seu desenvolvimento cultural, de seu passado e da maneira de ser de seus indivíduos. Como no caso da História e da Psicologia, o Espiritismo tem muito a contribuir para o estudo e desenvolvimento da história social do homem uma vez que o compreende como Espírito em perene evolução. Há uma interação natural, desde a mais remota antigüidade entre o mundo material e o plano espiritual. Esse fluxo é responsável pelo aparecimento e desenvolvimento de muitas religiões e culturas consideradas “inspiradas”. Dos princípios e informações fornecidos pelos Espíritos, é possível complementar a história de várias sociedades. 

Todos esses campos (assim como outros não listados acima tais como as artes) aguardam um futuro quando o espírita cientista seja capaz de utilizar judiciosamente o seu conhecimento de acordo com as regras estabelecidas por sua ciência particular. O objetivo não é fazer o Espiritismo brilhar para a sociedade como um concorrente das ciências, mas como fonte de inspiração e origem para proposição de novos mecanismos de explicação dos fenômenos e ocorrências características de cada uma delas.

Considerações diferentes dizem respeito à atuação do cientista espírita. Por esse termo referimo-nos àqueles que pretendem desenvolver a ciência espírita a partir de seus princípios ou com a modificação desses, utilizando ideias advindas de outras ciências. É uma conseqüência natural que se pretenda estabelecer um ambiente acadêmico espírita – uma vez verificado o caráter científico do Espiritismo. Mas cautela é necessária para não exagerar demais nas extrapolações. Se o Espiritismo é, de fato, uma ciência, não segue daí que, no nosso momento histórico, ele deva se preocupar com o estabelecimento de um ambiente acadêmico como uma cópia dos ambientes acadêmicos de outras ciências. Todos conhecem os efeitos que a excessiva profissionalização pode trazer em detrimento do fluxo de idéias, gerando estagnação. Imaginamos que no presente momento de desenvolvimento e expansão da Doutrina Espírita não temos um ambiente completamente apropriado à efetiva realização dos objetivos de um ambiente puramente acadêmico. Outras considerações sobre essa questão serão feitas em texto futuro.

3.Alguns comentários finais.

Tentamos limitadamente neste texto discutir algumas idéias sobre o conceito moderno (paradigma) de ciência “normal” – ou ciência amadurecida – e o que seria compreensível como uma salutar relação dessa ciência com o Espiritismo. A aplicação padrão dos procedimentos de construção da ciência leva a plena formação e progresso do conhecimento científico. A tentativa forçada de se estabelecer relações – não sugeridas pelo desenvolvimento científico, mas imaginadas como situações idealizadas – não só conduz a perda de tempo como ao descrédito. Da parte do Espiritismo, tentativas forçadas de querer transcrevê-lo ou moldá-lo segundo normas ou procedimentos de outras ciências pode conduzir à ilusão de falsificação da doutrina, uma vez que o conhecimento científico e sua interpretação é função de um contexto altamente específico e mutante, mas desconexo em relação a ela. Por outro lado, querer misturar conceitos de outras ciências com princípios espíritas não é científico, pois dentro da noção de paradigma cada um deles deve ser entendido dentro de seu contexto de pesquisa (ambientação acadêmica), não se permitindo enxertias ou fusões ainda que muito bem intencionadas.

Aprendamos a ver cada ciência – o Espiritismo entre elas – como linguagens a respeito do mundo. No procedimento de comunicação normal, plena compreensão só é conseguida quando o emissor e o receptor dispõem de bagagem linguística comum. Todo e qualquer procedimento de tradução leva necessariamente a perda de significado pela impossibilidade de se transcrever plenamente determinados conceitos e idéias típicos de um determinado referencial linguístico. O Espiritismo é uma linguagem a respeito do mundo espiritual, criada e desenvolvida para transmitir conceitos sobre esse mundo. As ciências materiais são linguagens distintas que tratam de outro cenário, embora o “palco” apresente áreas comuns ou adjacentes que, no momento, não dispomos de linguagem apropriada para utilizar.

Entretanto, a própria evolução das ciências levará à criação de uma linguagem comum em futuro incerto (talvez ainda distante). Esperamos que, quando esse futuro acontecer, o Espiritismo tenha cumprido em sua totalidade seu papel fundamental, que é o de promover a efetiva reforma moral em todos os Espíritos que dele tiverem se aproximado, buscando consolo e refazimento moral.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Agradecimento

Agradeço ao Alexandre F. da Fonseca pela leitura e comentários a este texto. 

Referências 

[2] A. Kardec, “A Gênese”, Uranografia Geral, o espaço e o tempo (Cap. VI). Ed. Federação Espírita Brasileira, 34a edição (1991).
[3] A. Kardec, “O Livro dos Espíritos”, Trad. Guillon Ribeiro, Ed. Federação Espírita Brasileira, 71a edição (1991).
[4] Referência [3] , questão 34.
[5] A. P. Chagas, Polissemias no Espiritismo, Revista Internacional de Espiritismo, pp. 247-49, Setembro de 1996.
[6] Referência [3], Cap. III.
[7] I. Ferreira, “Novos rumos à medicina”, Vol. I, Tratamento dos processos obsessivos no Sanatório Espírita de Uberaba, Edições Federação Espírita do Estado de São Paulo (1990). 

22 de janeiro de 2011

Fundamentos II - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Como dissemos, o sucesso da ciência contemporânea bem estabelecida advém de sua estrutura em paradigmas, onde os fenômenos não têm papel central.  Muitas vezes pode acontecer que uma determinada teoria seja melhor que outra, ao mesmo tempo que ninguém acredite nela. Teorias como realizações mentais ou afirmações sobre o mundo são criadas livremente por um grupo restrito de cientistas (às vezes apenas um indivíduo), e portanto, fazem parte de sua bagagem cultural como crenças. É pela adequação dessas teorias aos fenômenos que elas se tornam aceitas por um grupo maior. O problema é que a definição de experimentos ou a previsão de determinadas ocorrências fenomenológicas depende da teoria. Poderíamos dar inúmeros exemplos dessa situação. Em física – que é uma das ciências costumeiramente consideradas com grande prestígio – é bastante nítido a ocorrência de “previsões experimentais” como resultado direto de teorias sofisticadas onde nada remotamente parecido com o fenômeno em questão tenha entrado como ingrediente. Algumas outras vezes, são feitas previsões de objetos ou circunstâncias nunca observados anteriormente. Essa inversão de papéis, no que tange à importância para o desenvolvimento da Ciência entre teoria e experimento, é a principal causa de confusão tanto no que se refere à compreensão correta da Ciência em si como do aspecto científico do Espiritismo. Conseqüentemente deve-se fazer um esforço para compreender essa inversão, que será útil na discussão da relação entre o Espiritismo e a Ciência. 

A Ciência só tem início com a teoria. Essas podem ter qualquer origem – sejam motivadas por algum acontecimento experimental ou por algum sonho de pesquisador (como no famoso caso do sonho de Kekulé ao conceber o formato dos anéis de carbono no benzeno). A origem do conhecimento científico não é importante para a Ciência. Isto quer dizer que uma determinada teoria não tem valor maior ou menor conforme sua origem, embora muitos cientistas sejam levados a crer ou não nelas de acordo com a força de autoridade de seus proponentes. A partir da proposição da teoria, segue a tentativa de explicação dos fenômenos com ou sem a ajuda de leis complementares que não fazem parte do núcleo principal da teoria. Como um exemplo, podemos considerar o processo de previsão de tempo na meteorologia. As leis que governam os fenômenos meteorológicos são leis físicas, assentadas em princípios térmicos e termodinâmicos. Para prever a situação de tempo com todos os detalhes, pode-se construir modelos numéricos sofisticados onde essas leis estejam embutidas juntamente com “condições de fronteira” específicas tais como a separação entre continentes e mares, o estado inicial de temperatura de uma determinada região, a posição do sol (sua altura em relação ao solo) etc. Essas são as leis complementares. 

Dissemos que a maior parte das pessoas considera a noção popular a própria essência do “método científico”. Isso é particularmente forte nas denominadas “ciências parapsicológicas”, ou o conjunto de disciplinas que tem como objetivo explicar, de maneira supostamente científica, os fenômenos mediúnicos do Espiritismo. Essas disciplinas apresentam escassa discussão teórica, dando enorme ênfase à descrição puramente fenomenológica dos fatos psíquicos. Quando são fornecidas explicações, essas procuram se ligar fortemente aos fenômenos. Dessa forma, é comum a tentativa de explicação simplificada para cada fenômeno. Assim a telepatia é invocada como “hipótese” para explicar as comunicações dos Espíritos, negando-se a existência desses últimos. Ora a “telepatia” é definida simplesmente como a capacidade de transferência de informação entre duas “mentes” (no caso, pessoas). Essa capacidade pode ser constatada de forma experimental. É um fato e não um princípio sobre o qual se possa estabelecer uma explicação. Nas “ciências psi” busca-se dar explicações aos fatos utilizando-se os próprios fatos. Nesse processo, explicações têm a aparência de verdade  pela sua designação por nomes empolados, difíceis de se pronunciar e com nenhum apelo intuitivo. É muito conhecida a frase, dada à guisa de explicação, de que os fenômenos psíquicos se fundamentam nas capacidades desconhecidas do cérebro. Diz-se que os seres humanos normais utilizam apenas “10% da capacidade cerebral”. Ora, qual a base para semelhantes afirmações? Como se mede essa capacidade cerebral? Nas “ciências parapsicológicas” ocorrem falhas  de compreensão dos verdadeiros atributos de uma disciplina para ser denominada ciência. 

Já discutimos muito brevemente que uma verdadeira ciência se constrói utilizando modelos, teorias ou paradigmas. A Fig. 2 ilustra essa “concepção de ciência” mais próxima da realidade. Há um centro irradiador de explicações (a teoria) integrado naturalmente aos fenômenos naturais a respeito dos quais a teoria ou paradigma versa. Leis complementares reforçam a estrutura do paradigma e integram os princípios que fazem parte dele aos fenômenos. Juntamente com essas leis, o paradigma fornece explicações para os fenômenos, inclusive alguns desconhecidos. É possível assim que no corpo teórico que constitui o paradigma, já exista o gérmen para explicação de muitos fenômenos nunca observados. Esse modelo encontra respaldo na história do desenvolvimento de muitas ciências bem sucedidas.

Fig. 2

Também o modelo da Fig. 2 não faz nenhuma referência à necessidade externa de “instrumentos especiais de medida” e nem a métodos supostamente rigorosos de medida experimental, pois a existência desses aparelhos só se justifica pelo paradigma que explica seu funcionamento. É o caso, por exemplo, da utilização de equipamentos ópticos para estudar o movimento dos planetas e outros corpos celestes. A explicação do funcionamento dos equipamentos é fornecida pela óptica, uma área da física, não necessariamente ligada à astronomia ou astrofísica. É possível englobar os princípios da óptica e da mecânica dos corpos em um corpo de teoria comum (no caso a “física”), mas prefere-se mantê-los separados por referirem a domínios fenomenológicos diferentes. Ressaltamos porém que o grau de complexidade desses aparelhos não tem correlação alguma com o rigor com que eles realizam suas medidas. Muito ao contrário, nesse modelo, estimula-se a realização de testes experimentais simples, de observação direta, onde haja pouca influência de fatores de erro a comprometer a realização das medidas. No modelo da Fig. 2 a teoria tem papel fundamental e não o fenômeno. Desde de que se creia e desenvolva a teoria, explicações para os fenômenos irão aparecer. Visto de outra forma, os fenômenos são justificados (explicados) pelo modelo a ponto de só poderem ser percebidos por aqueles que disponham de conhecimento do paradigma. Muitas vezes é possível notar que um mesmo paradigma fornece explicações para inúmeros fenômenos – muitos deles tratados inicialmente como sem correlação alguma com a teoria. Há inúmeros exemplos como esses nas chamadas “ciências normais”, as ciências que se desenvolveram historicamente segundo o modelo “paradigmático” de ciência. Percebe-se que a negação dos fenômenos não traz consequência alguma para a ciência vista nesse sentido pois o paradigma tem papel fundamental. Nesse caso, negar um fato soa profundamente suspeito de falha de compreensão da teoria ou paradigma. Não há também nenhuma preocupação com o grau de comprometimento do cientista com sua crença: pelo contrário admite-se abertamente que ciência é uma atividade onde a criatividade e crença particular do cientista tem uma importância muito grande e benéfica para a ciência. Há, porém, limites para a livre criação, o corpo teórico deve ser interrelacionado e coerente, isto é, seus princípios não devem conflitar entre si. Além disso, a excelência de um determinado paradigma é medida em termos de sua capacidade de explicar os fenômenos a ele ligado e também prever outros. Assim, não basta apenas criar muitas explicações, essas originam-se de princípios mais primitivos e harmônicos, mais ou menos imutáveis. Mas, essa imutabilidade não deve ser entendida com a rigidez dos dogmas.

Entendemos que a parte científica do Espiritismo deve ser entendida no modelo da Fig. 2. Nele os fenômenos são parte secundária e não fundamental da doutrina. A Doutrina Espírita contém o núcleo principal teórico da ciência espírita. Pela utilização de leis complementares, chega-se a explicação dos fatos. No caso dos fenômenos mediúnicos, a existência do perispírito como agente intermediário entre o Espírito e o corpo material é fundamental para compreender a imensa maioria dos fenômenos mediúnicos também denominados psíquicos. Entretanto, a Doutrina Espírita, vista como paradigma com conseqüências mais profundas, toca um conjunto muito mais extenso de fenômenos: fenômenos sociais (principalmente comportamentais), biológicos, históricos, mentais etc. Assim, embora não seja seu objetivo principal, o Espiritismo contribui com muitas áreas do conhecimento, em particular com aquelas que buscam compreender a origem, essência e futuro do homem entendido como uma criatura sem limite no tempo. O Espírito é assim o objeto de estudo da ciência espírita e o paradigma espírita é formado por um conjunto harmônico e mais ou menos fixo de fundamentos. Princípios como a existência de Deus, do espírito como elemento fundamental (além da matéria), da evolução do Espírito e da comunicabilidade entre os Espíritos e os homens (reinterpretados como Espíritos encarnados) são alguns dos princípios fundamentais. Esses princípios juntamente com outros (tal como a busca da felicidade por parte das criaturas) explicam e preveem os fenômenos. Consideremos o caso das doenças mentais. Faz parte desse enorme grupo de patologias (que afetam o comportamento do indivíduo) um grupo não menos importantes de doenças provocadas por influências espirituais – as obsessões em seus mais diferentes graus. Compreender o surgimento dessas doenças, que fornece idealmente a base para um tratamento eficaz, é tarefa simples para o Espiritismo (desde que corretamente aplicado), mas muito difícil para as correntes que negam a existência do Espírito, e que buscam uma explicação puramente material. Já citamos aqui a telepatia. Dentro do paradigma espírita, a comunicação entre Espíritos é um fato bem estabelecido. Em particular, a comunicação entre Espíritos encarnados é uma forma particular dessa capacidade de comunicação. Temos assim uma explicação muito natural (dizemos “intuitiva”) da telepatia. Essa explicação funda-se num princípio muito mais geral que justifica, simples e igualmente bem, a enorme variedade de comunicações ou fatos psíquicos.

3. Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.

Depois dessa discussão inicial, fica claro que não se pode falar em uma receita infalível, tal como o sonho de um método rigoroso, para se fazer ciência. Ela é o resultado de uma atividade altamente complexa e integrada no tempo através de grupos de indivíduos formando uma cultura. O Espiritismo, diante das considerações feitas, classifica-se plenamente como uma doutrina científica. Não segue daí que deva adotar o modelo popular de ciência por algumas das falhas que discutimos anteriormente. Essa discussão é importante para os que consideram a Doutrina Espírita, desenvolvida nos livros básicos de Allan Kardec, como conhecimento ultrapassado. Não existe nada mais longe da realidade. Como dissemos, o corpo principal da teoria é protegido com certa rigidez. Modificações no paradigma só acontecem – são conclusivamente admitidos como necessários – se houver razões muito fortes para isso. Tal não é o caso do Espiritismo proposto pelos Espíritos que auxiliaram Kardec. Da mesma forma que negar os fenômenos é sinal de falha na compreensão do paradigma, com muito mais razão, as tentativas de “reforma” do núcleo principal do Espiritismo (invenção de novos princípios em desacordo com aqueles) é sinal forte de falha na compreensão desses princípios. Clamores recentes nesse sentido são assentados em considerações bastante pueris, e deixam entrever uma dificuldade de compreensão do verdadeiro caráter do Espiritismo.

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).



19 de janeiro de 2011

Fundamentos I - Como se deve entender a relação entre o Espiritismo e a Ciência.


Resumo


Discute-se aqui brevemente a interação entre a Doutrina Espírita e as ciências. Essa relação pode ser entendida de diversos aspectos, uma necessariamente que considera o aspecto científico do Espiritismo. É importante porém frisar que não pode haver compreensão correta dessa interação, se não se tem compreensão correta do sentido em que se fala do aspecto científico do Espiritismo. Essa discussão apresenta implicações importantes para os espíritas que acreditam na necessidade de atualização da Doutrina Espírita.

Observação: Neste artigo, 'Espiritismo' e 'Doutrina Espírita' são usados como sinônimos, entendendo-se por eles o conjunto de princípios definidos em 'O Livro dos Espíritos' por Allan Kardec.

1.Introdução

Todo adepto com razoável entendimento dos princípios da Doutrina Espírita sabe que ela é um conjunto de princípios que se apresentam como afirmações sobre o mundo. Não é menos certo que muitos desses princípios, ainda que se apliquem ao objetivo maior do Espiritismo que é o estudo do elemento espiritual, contêm afirmações singulares e gerais sobre o mundo material. Isso necessariamente nos leva à fronteira entre o Espiritismo e as ciências bem estabelecidas que também afirmam coisas sobre o mundo. Para que haja evolução na forma de aquisição de conhecimento – um dos objetivos das ciências e também do Espiritismo, no caso, conhecimento sobre o mundo espiritual – faz-se necessário conhecer exatamente como se dá essa relação.

A ciência, tal como a conhecemos hoje, é produto da evolução lenta com que nossa sociedade passou nos últimos séculos. Não existe um consenso geral (na forma de uma formula ou padrão estabelecido) sobre qual seria a definição exata de ciência. Podemos, porém, descrevê-la de acordo com alguns de seus atributos bem conhecidos. De todos eles, um que parece conveniente para caracterizar as chamadas ciências bem estabelecidas (física, biologia, química e outros) é a noção de paradigma [1]. Por paradigma entende-se um conjunto de princípios que versam sobre determinado objeto, e que se encontram naturalmente relacionados a um grupo ou conjunto de fenômenos naturais. Fazem parte do corpo que forma o paradigma também leis que complementam o conhecimento, permitindo a aplicação das leis do corpo principal aos fenômenos observados. Os paradigmas são os campos de trabalho tradicional na pesquisa normal das grandes áreas do conhecimento científico. Assim, Ciência não é a mera coleção de fatos e hipóteses mas algo muito mais complexo, em constante mutação através das gerações possuindo seus próprios sistemas de proteção a fim de evitar que seu corpo principal de doutrina seja corrompido. Não se pode mudar a orientação de determinado programa de pesquisa de uma noite para outra, ainda que se tivesse uma boa razão para isso. As mudanças nos programas de pesquisa que caracterizam o paradigma – conhecidas como revoluções científicas – necessitam de um tempo de maturação e, muitas vezes, uma mudança no posicionamento dos cientistas, na maneira como eles vêem o mundo. As revoluções científicas são acontecimentos de curta duração seguidos muitas vezes de estágios de desenvolvimento mais ou menos estáveis.

Semelhantes considerações, como pode se compreender, não devem ser deixadas de lado na análise do assunto que serve de título a este texto. Da mesma forma, de uma análise imparcial da própria Doutrina Espírita deve nascer um modelo de idéias que consiga descrever corretamente o que se entenda por “aspecto científico” do Espiritismo. De posse desses dois ingredientes (compreensão correta do aspecto científico do Espiritismo e do significado da Ciência) podemos então considerar seriamente um debate sobre a relação entre esses dois ramos do conhecimento humano. Apresentamos aqui brevemente alguns subsídios para se iniciar esse debate.

2. Noções incorretas de ciência espírita e ciência normal. Discutindo um modelo mais apropriado de ciência. 

Um número razoável de espíritas e simpatizantes procuram abordar o aspecto científico do Espiritismo de forma a moldá-lo segundo a visão parcial do conhecimento considerado genuinamente científico. Essa visão parcial vê a ciência como uma atividade extremamente rigorosa em seus métodos de análise e acredita que os sucessos obtidos com o desenvolvimento científico – que permitiram compreender os fenômenos e desenvolver novas aplicações tecnológicas – são produto direto desse rigor metodológico. Nada poderia estar mais longe da realidade. O sucesso da ciência atual, que se materializa na forma de produtos tecnológicos e sofisticados métodos numéricos de reprodução da realidade em seus mínimos detalhes, não decorre apenas de um rigor metodológico qualquer que seja ele, mas principalmente das teorias que nascem em sua forma primitiva na cabeça dos cientistas. Semelhante compreensão parcial da realidade é comum para muitos espíritas que acreditam que os fenômenos espíritas devam satisfazer necessariamente a critérios de adequação empírica conforme os moldes das ciências normais. Para esses, a “ciência espírita” tem a ver unicamente com a parte fenomenológica (na forma da mediunidade em seus múltiplos aspectos) com exclusão de qualquer consideração de princípios. O Espiritismo é visto como um amontoado de fenômenos a partir dos quais se pode inferir um conjunto de afirmações mais gerais e deduzir consequências. Seguindo esse caminho, logicamente os inimigos do Espiritismo se comprazem em negar os fenômenos ou inventar explicações alternativas que parecem atingir os princípios espíritas. Coincidentemente, essa visão também é popularmente atribuída à ciência. De uma maneira simplificada podemos esquematizar o entendimento popular de ciência – que dá origem ao chamado “método científico” – de acordo com a Fig. 1. 


Fig. 1

Nessa figura, um observador bem intencionado (quer dizer, isento de pré-julgamentos ou explicações próprias consideradas tendenciosas) observa os fenômenos da natureza. Essa observação deve ser igualmente isenta e completa suficiente para não permitir perda de informação a respeito dos fenômenos. Deve ser realizada de forma a cobrir o maior número de “condições” possíveis, o que leva à necessidade de se repetir testes experimentais um grande número de vezes. A partir dos fenômenos ele elabora hipóteses consideradas razoáveis que, por um processo mal explicado, degenera (ou se sintetiza) em “leis gerais”. Esse processo de criação de leis gerais é denominado indução. A partir das leis induzidas outros fenômenos semelhantes (ou os mesmos) podem ser explicados por um processo denominado dedução. Um ponto importante a ser considerado diz respeito às conseqüências para o desenvolvimento de uma ciência se o modelo mostrado na Fig. 1 for considerado ideal. Compreensivelmente pode-se com ele destruir qualquer tipo de explicação negando-se simplesmente os fenômenos. Desde que esses não existam, não há sentido em se acreditar nos princípios deles supostamente induzidos. Isso acontece com os que negam inúmeras vezes os fatos psíquicos e, com eles, a ideia de comunicação entre vivos e mortos com a sobrevivência dos seres após a morte. 

Artigo originalmente publicado no boletim do GEAE, número 472 (2004).

Referências

[1] A. F. Chalmers, “O que é ciência afinal ?”, (1993), Ed. Brasiliense.