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30 de novembro de 2013

Será que Kardec leu Darwin?

Charles Darwin em 1816.
Sabe-se bem que a segunda metade do século 19 foi uma época extraordinária. Invenções que marcariam o progresso no século seguinte, descobertas científicas inigualáveis que modificariam a visão científica do mundo e conquistas humanas nunca imaginadas foram então realizadas. No palco de revelações em que se converteu a Europa da época, o surgimento do Espiritismo em 1857 com a publicação de "O Livro dos Espíritos" e a publicação de "Sobre a Origem das Espécies por meio de seleção natural" por Charles Darwin (1809-1882) em 1859 contam como "algumas" das realizações notáveis.

Em um artigo recente (1), Paulo Neto analisa o argumento corrente de que Kardec antecipou Darwin, o que é comum se ouvir nos meios espíritas. Essa questão dá origem a uma pequena 'querela' (2) entre os que sustentam que Kardec antecipou Darwin e os que acham o contrário, inclusive que Kardec teria feito uso dos trabalhos do emintente cientista inglês. Para o autor do artigo citado:
Ficamos boquiabertos, tamanha a nossa surpresa diante de tal infirmação, pois, para nós, foi Kardec quem se utilizou da teoria de Darwin, conforme iremos demonstrar.
E, na conclusão do artigo:
Para nós, foi Kardec que se aproveitou da teoria da evolução das espécies de Darwin para voltar com o assunto e, como já havia suporte científico, os Espíritos foram mais explícitos na questão, reformulando o que disseram anteriormente, para afirmarem sobre a evolução do espírito através do reino animal.
Em que consiste a demonstração proposta? Consistiu sumariamente em comparar trechos da 1a edição de 'O Livro dos Espíritos' (LE, a saber a questão #127) e a questão #607 que reproduzimos abaixo: 
607. Dissestes (190) que o estado da alma do homem, na sua origem, corresponde ao estado da infância na vida corporal, que sua inteligência apenas desabrocha e se ensaia para a vida. Onde passa o Espírito essa primeira fase do seu desenvolvimento? 
“Numa série de existências que precedem o período a que chamais humanidade.”
Essa resposta é comparada à da questão #127 da primeira edição onde o estado da 'alma do homem' não é identificado como tendo migrado entre outras espécies. No que segue abaixo, tecemos alguns comentários para mostrar que a questão é muito mais complexa do que se pode imaginar tão só a partir da comparação dos textos propostos.

Alguns comentários relevantes
  1. O significado do termo 'alma do homem' pode ter evoluído da primeira para a segunda edição. No primeiro caso, ela pode se referir à alma do homem como ser encarnado e dispondo de consciência plenamente desenvolvida para o estado da 'humanidade';
  2. A sugestão de influência das ideias de Darwin na obra kardequiana não tem respaldo em evidência alguma. Pelo contrário, pode-se dizer de forma segura que a ideia de que as espécies se modificavam era amplamente conhecida na época da primeira edição do LE na forma de um conjunto de teorias de transformismo de espécie. O que não se conhecida era o mecanismo pelo qual isso ocorreria;
  3. A época em que essas ideias se desenvolveram não dispunha de meios de comunicação como os que temos hoje. Segundo o prof. Silvio Chibeni (3), é bastante provável que Kardec não tenha tido acesso à obra de Darwin e que, portanto, sua opinião reflete o ponto de vista conhecido entre a elite intelectual francesa da segunda metade do século XIX;
  4. Assim, o conhecimento de Kardec sobre a evolução pode totalmente ser compreendido no contexto do conhecimento da época, inclusive no momento da publicação da 1a edição.
  5. Ainda segundo o prof. S. Chibeni (3): 
"Eu também suspeito, como você, que o Kardec não acompanhava a literatura especializada em biologia (ou história natural, como se chamava à época), especialmente de um país de língua inglesa. Além disso, o livro do Darwin que trata do homem é o 'The Descent of Man', de 1871. No 'The Origin of Species', ele evita falar no homem, ao propor a teoria da seleção natural (e note-se que essa teoria é que é a teoria importante e original de Darwin, não a evolução, que já era amplamente admitida)." (grifos meus)
Portanto, o que Darwin escreveu em 1859 na  "Origem das Espécies" apenas por inferência se aplicaria ao homem no contexto histórico da época. Que a ideia da evolução não era novidade então (inclusive no tempo da 1a edição) pode ser compreendido por inúmeros trabalhos posteriores sobre a história da evolução natural, trabalhos que, inclusive, sugerem fortemente que Darwin se escorou em outros (4). O próprio mecanismo da evolução foi co-descoberto pelo grande espiritualista inglês Alfred R. Wallace. O trabalho de Robert Chambers (1802-1871) , Fig. 1, por exemplo, causou um grande furor antes de Darwin.
Fig. 1 Esta figura foi extraída do livro "Vestígios da História Natural da Criação" de Robert Chambers e mostra o modelo de desenvolvimento dos peixes (F), répteis (R), pássaros (B) dando origem aos mamíferos (M). O livro de Chambers foi publicado em 1844, demonstrando que a ideia da descendência entre espécies já era conhecida bem antes de 'O Livro dos Espíritos' e da 'Origem das Espécies'. Segundo o artigo 'Transmutation of species'. 
O que diz "A Gênese"

Em um texto posterior em "A Gênese" , de 1868, (Capítulo XI) podemos ler, no parágrafo 15:
Da semelhança, que há, de formas exteriores entre o corpo do homem e o do macaco, concluíram alguns fisiologistas que o primeiro é apenas uma transformação do segundo. Nada aí há de impossível, nem o que, se assim for, afete a dignidade do homem. Bem pode dar-se que corpos de macaco tenham servido de vestidura aos primeiros Espíritos humanos, forçosamente pouco adiantados, que viessem encarnar na Terra, sendo essa vestidura mais apropriada às suas necessidades e mais adequadas ao exercício de suas faculdades, do que o corpo de qualquer outro animal. Em vez de se fazer para o Espírito um invólucro especial, ele teria achado um já pronto. Vestiu-se então da pele do macaco, sem deixar de ser Espírito humano, como o homem não raro se reveste da pele de certos animais, sem deixar de ser homem.
Fique bem entendido que aqui unicamente se trata de uma hipótese, de modo algum posta como princípio, mas apresentada apenas para mostrar que a origem do corpo em nada prejudica o Espírito, que é o ser principal, e que a semelhança do corpo do homem com o do macaco não implica paridade entre o seu Espírito e o do macaco." (grifo meu)
Veja que, em 1868, Kardec considerava a possibilidade de transformação das espécies ainda como uma hipótese. E, mais para frente, no parágrafo 16:
"Admitida essa hipótese, pode dizer-se que, sob a influência e por efeito da atividade intelectual do seu novo habitante, o envoltório se modificou, embelezou-se nas particularidades, conservando a forma geral do conjunto (nº 11). Melhorados, os corpos, pela procriação, se reproduziram nas mesmas condições, como sucede com as árvores de enxerto. Deram origem a uma espécie nova, que pouco a pouco se afastou do tipo primitivo, à proporção que o Espírito progrediu. O Espírito macaco, que não foi aniquilado, continuou a procriar, para seu uso, corpos de macaco, do mesmo modo que o fruto da árvore silvestre reproduz árvores dessa espécie, e o Espírito humano procriou corpos de homem, variantes do primeiro molde em que ele se meteu. O tronco se bifurcou: produziu um ramo, que por sua vez se tornou tronco.  
Como em a Natureza não há transições bruscas, é provável que os primeiros homens aparecidos na Terra pouco diferissem do macaco pela forma exterior e não muito também pela inteligência. Em nossos dias ainda há selvagens que, pelo comprimento dos braços e dos pés e pela conformação da cabeça, têm tanta parecença com o macaco, que só lhes falta ser peludos, para se tornar completa a semelhante." (grifos meus)
Ora, em nenhum desses trechos transparece a ideia da seleção natural, mas, os conceitos estão de acordo com o que era conhecido antes de Darwin, ainda no campo das hipóteses. Portanto, é bastante claro que Kardec não leu nada de Darwin, mesmo em 1868. Também é de estranhar que esses trechos não tenham sido citados no trabalho (1). O assunto é, portanto, bem mais complexo do que a simples comparação de trechos limitados pode permitir.

Uma razão importante para considerar a falta de consideração de Kardec por essas teorias modernas em sua época era, provavelmente, a sua falta de tempo e a quantidade de trabalhos acumulados com a codificação (3).

Ressaltamos ainda que o Espiritismo é uma das poucas doutrinas religiosas que aceitam abertamente a noção de evolução e o mecanismo de sua operação, sustentando a proposta de que esse mecanismo serviria de base ao desenvolvimento do espírito.

Referências e notas

(1) Revista Espiritismo & Ciência nº 108. São Paulo: Mythos Editora, nov/2013, p. 18-22. Uma versão em PDF deste trabalho pode ser baixada aqui.

(2) No caso, esse ainda é um debate de reduzida importância frente a outros temas centrais do Espiritismo.

(3) Comunicação particular com Silvo Chibeni.

(4) Personalidades como: J. B. Lamarck (1744-1829), T. Malthus (1766-1834), Comte de Buffon (1707-1788), A. R. Wallace (1823-1913, praticamente um "co-descobridor" da seleção natural), E. Darwin (1731-1802), C. Lyell (1797-1875), J. Hutton (1726-1797) e mesmo G. Curvier (1769-1831) exerceram influência considerável sobre C. Darwin, assim como Robert Chambers.