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9 de maio de 2020

A Evolução de Deus

Deus-pai. Por: Cima da Conegliano (~1459).

Toda religião é verdadeira de uma forma ou de outra. 
Cada religião é verdadeira quando entendida metaforicamente. 
Mas, quando ela se prende a suas próprias metáforas, 
que são interpretadas como fatos, então temos problemas.  J. Campbell
A enorme dificuldade de alguns cientistas contemporâneos em aceitar a ideia de Deus está na raiz dos embates presentes entre ciência e religião. A primeira como mensageira avançada de uma revelação perene e a segunda como tendo iniciado uma revelação não menos importante para a vida humana, mas que parece ter sido sufocada pela ciência. Fundamentalmente, a religião aqui deve ser tomada em seu sentido amplo e original, como os muitos caminhos que levam a uma união ou "religação" do humano com o Divino entendido como causa do sentimento de transcendência universal encontrado em qualquer povo ou cultura. 

Inicialmente isolados por distâncias então enormes, povos antigos desenvolveram noções diferentes para o Divino. O que há em comum entre essas visões é justamente essa ânsia pela transcendência, o reconhecimento de um poder muito superior ao homem. Esse poder era visto nos inúmeros fenômenos naturais que os primitivos não entendiam a causa, e que, muitas vezes, modificavam de forma dramática a vida humana. O mediunismo como uma via, ainda que muito limitada, de contato dos humanos com os Espíritos foi uma das forças que talharam muitas religiões antigas. A morte como o destino último exercia seu fascínio. Em torno do fim da vida se levantaram inúmeras concepções de alguma forma ligadas à noção de Deus que controlaria a morte diretamente. Os antigos criaram diversos sistemas de crença que se distinguem enormemente em variedade de deuses no politeísmo até a síntese monoteísta, quase tão antiga quanto o primeiro.

Assim como se pode falar da 'progresso das concepções científicas' ao longo dos séculos recentes, é possível registrar evolução semelhante nas inúmeras ideias de Deus nas religiões, embora a um ritmo muito menor do que no caso da ciência. É como se à Humanidade tivesse sido negada uma compreensão mais dilatada do Divino, ao passo que, com as noções científicas, tendo as causas os fenômenos naturais facilmente acessíveis, nosso progresso foi muito maior. Há várias maneiras de se entender esse estado de coisa: apenas uma delas é pela negação da ideia de Deus porque, ainda que tenhamos feito muitos progressos em ciência, nenhum ser humano poderá garantir que esse progresso acabou.

Dessa forma, continuam a existir questões não resolvidas no Universo que invocam continuamente a ideia de Deus como solução. Como o Universo é muito grande, de certa forma nosso progresso foi muito pequeno, se comparado ao que ainda devemos progredir. Em relação à compreensão de Deus ainda estamos no mesmo ponto em que estavam os povos antigos. Definitivamente, a ideia de Deus é um dos temas sobre os quais ainda será necessário fazer progressos, inclusive científicos.

O Deus que morreu

Como são inúmeras as imagens de Deus dentre milhares de escolas religiosas que existem, essa variedade tem sido uma das principais bases para o ateísmo negar Deus: não é possível que todas essas noções sejam verdadeiras ao mesmo tempo. Ou, de outra forma, qual delas é a verdadeira?

Certamente, o maior de todos os erros religiosos foi ter tornado Deus à imagem e semelhança do homem. Nas diversas igrejas que surgiram depois do movimento cristão primitivo, a ideia pode ter sido sugerida a partir de antigo texto bíblico, como 1 Genesis: 26, 
Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança.
Depois, quando todo o texto se tornou suspeito e muito mais ameno a uma interpretação meramente figurativa, a concepção foi alterada para garantir que Deus teria em comum com os homens características como 'capacidade de raciocínio', 'livre-arbítrio', 'emoções' etc, ou seja, atributos todos derivados de uma personificação de Deus. Ora, de forma alguma os antigos negaram aos seus deuses (não bíblicos) tais capacidades. Assim, essas concepções fazem eco a esse passado distante: é uma versão pouco aprimorada dos deuses do politeísmo, onde, para ser aceito e compreendido, Deus foi concebido à imagem e semelhança do homem. 

Essa ideia de Deus herdada dos antigos cria um problema enorme para as religiões porque ela implica em rastros ou evidências de sua existência plenamente acessíveis à ciência. Como tais evidências nunca foram encontradas, essa noção de Deus tem sido severamente abalada pela evolução do conhecimento científico. Em qualquer parte para onde se olhe não se vê prova alguma da existência de um Deus antropomórfico. Pior ainda, a noção de ordem e hierarquia da Natureza implica em fortes restrições para as arbitrariedades dos supostos desejos Divinos. Assim, esse Deus feito à imagem e semelhança do homem morreu para sempre. É contra ele que se levantaram centenas de vozes da ciência e da razão como, por exemplo, uma mais extremas, a de F. Nietzsche (1844 - 1900):
Deus está morto! Deus permanece morto! E quem o matou fomos nós! Como haveremos de nos consolar, nós os algozes dos algozes? O que o mundo possuiu, até agora, de mais sagrado e mais poderoso sucumbiu exangue aos golpes das nossas lâminas. Quem nos limpará desse sangue? [1]
Tal como a ideia de Terra plana, a noção antropomórfica de Deus foi aquela ajustada à realidade de uma época que o tempo implacável levou para sempre. O apego a noções antropomórficas de Deus em diversas religiões é o maior empecilho ao diálogo entre a ciência e a religião, bem como uma das principais forças propulsoras do ateísmo moderno. A incapacidade de seus crentes atuais em entenderem a metáfora oculta na imagem, levará, no mínimo, à reinterpretação dessas religiões.

O infinito como ponte entre ciência e religião (não literalmente falando)
Se há um Deus, Ele é infinitamente incompreensível, pois, não tendo partes ou limites, Ele não tem relação conosco. Nós, portanto, somos incapazes de conhecer o que Ele é ou se Ele é. — Blaise Pascal (Pensees, 233)
A ideia de uma ligação entre Deus e a noção de infinito não é recente. De fato, os principais teólogos da Igreja defenderam a ideia de infinitude ligado à noção de Deus. Em primeiro lugar porque limitar Deus seria torná-lo parte de sua criação; não podendo haver limites a Deus, ele é concebido como infinito. Algumas passagens do texto bíblico  foram interpretadas como a implicar na noção de infinitude de Deus:
Mas, na verdade, habitaria Deus na terra? Eis que os céus, e até o céu dos céus, não te poderiam conter, quanto menos esta casa que eu tenho edificado1 Reis 8:27 
Grande é o nosso Senhor, e de grande poder; o seu entendimento é infinito. Salmos 147:5
Poderá alguém esconder-se sem que eu o veja?, pergunta o Senhor. "Não sou eu aquele que enche os céus e a terra? pergunta o Senhor.  — Jeremias 23:24
Entretanto, quando a maioria passa os olhos nessas passagens, dificilmente não as considera como meras figuras de linguagem que contrastam demais com outras em que o Deus do autor bíblico se contradiz. É possível questionar se esses autores tiveram algum dia uma ideia comum sobre Deus. A explicação mais óbvia é que a Bíblia, vendida presentemente como um livro único, na verdade, é um amontado de textos de autores diferentes que não tinham a mesma ideia de Deus.

De qualquer forma, é possível ler em S. Tomás de Aquino [2], a noção de 'infinitude de Deus' em várias partes de sua obra monumental:
E como o ser divino não é recebido em nenhum outro, mas é o seu próprio ser subsistente, como já demonstramos, é manifesto que Deus é infinito e perfeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
Por isso mesmo que o ser de Deus é por si subsistente e não recebido por nenhum sujeito — como infinito que é — é que se distingue de todos os demais, e todos dele diferem; assim como, se a brancura por si subsistente existisse, o fato mesmo de ela não existir em outro ser a diferenciaria de qualquer brancura existente num sujeito. (Questão 7, Artigo 1, "Da infinidade de Deus", [2])
Entretanto, a infinitude de Deus implicaria em um poder tão grande que seria possível a ele derrogar suas leis e atuar arbitrariamente no mundo dos homens, o que resultou em uma explicação conveniente para os chamados milagres. É óbvio que a resposta parece simples para inúmeros crentes, mas os princípios e as descobertas da ciência estão sempre a contradizer sumariamente qualquer explicação miraculosa. Ficaria assim aparentemente explicado a ordem do cosmo medieval, bem como a de inúmeras passagens de textos do Novo e Velho Testamentos aparentemente incompreensíveis. Entretanto, é errôneo julgar que S. Tomas acreditava que Deus tudo podia. Há limites para a ação divina mesmo para Ele:
Deus, pela perfeição do seu poder, pode tudo, mas lhe escapa à po­tência o que não tem natureza de possível. Assim também, se atendermos à imutabilidade do seu poder, Deus pode tudo o que pôde; porém, certas coisas que, antes quando eram factíveis, tinham a natureza de possível, já não a têm quando feitas. E, então dizemos que não as pode, por não poderem elas ser feitas. ("Se Deus pode tornar o passado inexistente", Art. 4, resposta à 2a questão, [2])
Assim, Deus não pode mudar o passado, o que também era conveniente para a doutrina da predestinação. Desnecessário dizer que, sendo a concepção dominante de Deus trinitarista, a mesma infinitude teve que ser estendida para todas as pessoas da Trindade. 

Hoje, distantes das controvérsias do princípio e iluminados pelas descobertas da ciência, podemos questionar porque Deus, sendo infinito, incriado e estando em todos os lugares etc, teve que se tornar homem para continuar a ser Deus. O automatismo observada nos fenômenos da Natureza, a existência de aleatoriedades, de limites ao que pode ser observado, a aparente infinitude de hierarquias de escala (microuniversos dentro de universos), a vastidão do espaço e do tempo etc, são questões relevantes para uma nova noção de Deus que seja incorporada à imagem científica do Universo. 

Mas Deus sempre permanece

Livres da ideia de um Deus humanizado, muitos podem imaginar que Deus foi completamente eliminado pela ciência. Entretanto, isso é um erro porque nunca foi objetivo da ciência buscar Deus, portanto, ela nunca teria podido negá-lo. Algumas noções da Divindade, como aquelas que o supõem como intervindo miraculosamente na vida dos homens, são de difícil ou impossível aceitação depois das descobertas da ciência. Mas é uma extrapolação não garantida afirmar a inexistência de Deus com base nas descobertas presentes da Ciência.

 A concepção espírita: Deus como causa primária.

1. O que é Deus?
"Deus é a inteligênica suprema, causa primária de todas as coisas." [3]
 
Podemos imaginar algo gigantesco, incontável, inacessível por qualquer critério, instrumento ou meio possível, o oceano onde a verdade está inteiramente guardada, a causa que deu início a tudo? Um ser que, por estar presente em tudo, é por isso mesmo inacessível diretamente aos seres por ele criados em escala infinitamente inferior. Um ser desse tipo jamais se conformará a qualquer imagem que os homens possam fazer dele. Assim, Deus, como causa primordial de tudo não é humano, não tem sexo, não se apresenta sob qualquer forma, não tem qualquer atributo, nem desejos, percepções, sensações, intenções ou ideias dos homens, ainda que esses últimos, por diversos atavios e por fixação no momento de culto, tenham criado inúmeras representações Dele.

Mas, o mais importante que os Espíritos revelaram sobre a questão de Deus, não tem a ver com definições, descrições ou comportamentos Dele, mas com aquilo que nos é dado saber sobre Ele:
"Deus existe; disso não podeis duvidar e é o essencial. Crede-me, não vades além. Não vos percais num labirinto donde não lograríeis sair. Isso não vos tornaria melhores, antes um pouco mais orgulhosos, pois que acreditaríeis saber, quando na realidade nada saberíeis. Deixai, conseguintemente, de lado todos esses sistemas; tendes bastantes coisas que vos tocam mais de perto, a começar por vós mesmos. Estudai as vossas próprias imperfeições, a fim de vos libertardes delas, o que será mais útil do que pretenderdes penetrar no que é impenetrável" [4]
Deus é o incognoscível, mas como consequência de nossas limitações. Por sua infinitude e grandeza, criou Ele o Universo de tal forma que o homem, nada mais do que uma partícula nele, somente pode comprendê-lo como a causa final de tudo o que foi descoberto e do que está para ser revelado.  Entretanto, a restrição severa feita pelos Espíritos sobre o que podemos hoje saber sobre Deus é acompanhado por uma promessa:
11. Será dado um dia ao homem compreender o mistério da Divindade? 
“Quando não mais tiver o espírito obscurecido pela matéria e, pela sua perfeição, se houver aproximado de Deus, ele o verá e compreenderá.” [3]
Como consequência de seus ensinos, as religiões criaram diversos sistemas de fé com base em concepções que fizeram da Divindade. Pelos Espíritos, entretanto, aprendemos que somente podemos fazer uma ideia limitada de Deus, porque a nós falta um sentido especial (ver [3], Questão 10). Os Espíritos recomendam o exame sistemático de nossas falhas e sua correção como a mais importante tarefa, independente da ideia limitada que temos de Deus. Conhecida essa limitação, que está na natureza da condição da existência humana, não é mais possível sustentar pela religião a separação sistemática daqueles que não dividem conosco as mesmas ideias de Deus. Hoje, como antes, sabemos que estão todos errados, e que a nós cabe apenas conhecer Sua existência como causa muita acima de nossa capacidade de compreensão. No que essa causa puder nos tornar melhores amanhã do que hoje somos, nisso é o que devemos nos concentrar.

Um dia, entretanto, conheceremos a Verdade. Por hora, depende apenas de nós o quão rápido avançaremos na direção dela. 

Referências

[1] F. Nietzsche. Assim falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Sobre versões dessa obra ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Assim_Falou_Zaratustra (acesso em maio de 2020).
[2] Permanência. Suma Teológica. https://permanencia.org.br/drupal/node/8 (Acessado em maio de 2020).
[3] A. Kardec. "O Livro dos Espíritos". Parte Primeira, "Das causas primárias", Capítulo , "Deus e o Infinito". Questão 1. Versão ipeak.com.br (acesso em maio de 2020)
[4] Ver ref. [3], resposta à Questão 14.

5 de janeiro de 2020

Comentários a uma tirinha sobre como é ser ateu.


Premissa 1: Há uma distinção entre a crença que se tem na maneira como o mundo é e aquilo que o mundo verdadeiramente é. Mas, em relação a quais temas de crença essa diferença é capaz de mais impactar a vida do indivíduo, observado certo intervalo de tempo?

É perfeitamente possível ter uma crença sobre como o Universo é e existe, mas o Universo em si ser completamente diferente.

Isso implica que, para a vida prática, manter crenças muito diferentes do 'real' com fatos da Natureza, por exemplo, têm pouco ou nenhuma influência sobre o bem-estar e a adaptabilidade do indivíduo que manifesta essa crença. 

É por isso que é possível ser ateu e viver muito bem, ou acreditar que a terra é 'plana' sem que isso tenha qualquer efeito mais grave na vida do indivíduo que crê nisso.

Premissa 2: Em geral se assume que quanto mais próximo do 'real' estiver tudo aquilo que se crê, tanto mais certo estará a vida do indivíduo. Portanto, tanto mais preferível será sua crença (em relação à outra menos real). Entretanto, essa correlação é falsa.

Assim, pessoas usam suas próprias crenças para se distinguirem das outras. Determinados credos políticos - que pouco tem a ver com a vida prática - podem impactar na vida social e separar as pessoas, o que é um grave erro.

O ateu vive muito bem sem acreditar em Deus e o terraplanista igualmente bem sem acreditar na Terra esférica: cada um se acha mais certo do que o outro, porque pensam que suas próprias vidas dão prova da correção de suas crenças. 

A realidade é que não existe tal correlação.

Onde está o problema

O problema aparece quando o indivíduo mantem crenças muito diferentes da 'realidade' em relação aos fatos e coisas que estão perto dele, ou seja dos fatos e coisas que podem em curto prazo prejudicar muito o próprio indivíduo, seu corpo ou sua condição de vida. 

Assim, não convém discordar ou se inconformar com a realidade financeira da vida, ou manter ideias heterodoxas ou pouco confiáveis sobre as motivações reais das pessoas. Isso pode resultar em problemas graves de relacionamento ou em dificuldades financeiras que logo surgem. Da mesma forma, não convém discordar da opinião do médico ou especialista em saúde em se tratando do bem-estar do corpo.

Mas, o maior impacto, sem dúvida, existe quando o indivíduo passa a manter crenças errôneas em relação a ele mesmo. Por exemplo: falha em perceber que poderia ter conseguido um alvo de vida, mas se sentiu incapaz para isso.

Em suma: essa diferença entre realidade e crença pessoal é mais grave com as coisas ou fatos do mundo psicológico, relacionamento pessoal, vida afetiva, profissional etc. Dai a enorme literatura de auto-ajuda, que pretende 'reprogramar' a crença pessoal de acordo com a realidade.

O problema do prazo de verificação das crenças

Por outro lado, qual o impacto de se manter determinadas crenças relaciadas ao mundo espiritual?

É certo que, para a vida prática, desde que ela não impacte a relação entre as crenças sociais e a realidade social, mental e de saúde, pouco ou nenhum efeito será observado. Esse é uma as grandes motivações dos indivíduos anti-religiosos.

Mas é preciso considerar o prazo em que se observa os efeitos.

Pois a manutenção de crenças errôneas pode impactar em diferentes prazos: curto, médio e longo. Alguém que fume moderamente pode não sofrer em poucos meses dos males do tabaco. Lenta mas inexoravelmente esses males virão, mais a frente, quando seu corpo envelhecido não mais conta com os recursos necessários para contrabalançar os efeitos do fumo.

Porém, o reconhecimento disso depende fortemente da própria crença que se tem no mundo. Para o ateu e materialista, não há que se preocupar como o 'longo prazo', pois a vida termina com a morte. É por isso que se vêem tantos ateus e materialistas dedicados à defesa de determinadas crenças políticas, visto que a única sobrevivência futura que entendem é a da própria sociedade que se pensa poder ser melhorada por meio de doutrinas políticas. 

Mas e se não for assim? Uma das razões de existir das religiões é esta: dar ao indivíduo uma crença do mundo espiritual que traga consequências práticas para a sua vida futura.

Houve um tempo no passado em que toda a estrutura da sociedade foi montada com o fim único em garantir a salvação do indivíduo. Tão forte era a crença nessa necessidade que a arte, a ciência e a política se voltavam exclusivamente para esse objetivo de longo prazo.

Entretanto, em matéria de religião há uma multiplicidade muito grande de propostas e, em uma visão 'realista do mundo' (a de que existe uma e apenas uma realidade externa), é impossível que todas estejam corretas ao mesmo tempo.

Em particular é grave erro acreditar que só porque se mantém uma determinada crença em Deus, ele deve obrigações ou benesses de curto prazo ao crente. É quase que um princípio lógico, que pode ser enunciado de forma independente que, existindo Deus, as consequências para a vida do indivíduo não devem depender de sua sorte em acreditar na imagem correta de Deus. Primeiro porque acreditar no  que seria o 'certo' não está equitativamente distribuido nem no espaço, nem no tempo, de forma que seria uma contradição com a própria justiça de Deus.   

Um dos maiores paradoxos para os crentes religiosos é constatar a existência de ateus endurecidos que se deram muito bem na vida. Como pode Deus ser tão bom para eles? Pensam que a vida de delícias do descrente é uma cilada ou antecâmara dos tormentos que o aguardam na vida futura. Mas, na realidade, é a própria ideia que fazem de Deus é que está errada.

É ai que está a maior importância da descoberta de Kardec da comunicabilidade dos Espíritos. Para não espíritas trata-se de uma crença. Mas, na realidade,  Kardec descobriu um caminho de investigação que conduziu a descobertas surpreendentes. Tão surpreendentes que conseguiu unir ateus e cristão rigorosos, os primeiros a exigir 'evidências' sem teoria e os segundos em um grito de blasfêmia.

Uma vez verificada a existência do Espírito e sua possibilidade de comunicação, é possível inspecionar o impacto em longo prazo da manutenção de determinadas crenças, inclusive aquelas sobre o mundo espiritual. E esse é uma das maiores contriuições do Espiritismo, ainda que não reconhecido talvez mesmo entre a maioria dos espíritas.

Nessa investigação, Kardec descobriu que as consequências para a vida futura do homem não dependem da crença que ele mantem na Divindade. Essa correlação, se existir, advem da chance de seus atos serem impactados por tais crenças. 

O destino de felicidade ou não dos humanos depende inteiramente do compromisso que têm para com o bem. Para isso, Deus dotou o homem da capacidade de discernir entre o bem e o mal em um prazo de tempo que não se restringe apenas a uma vida.  

Essas descobertas abrem um mundo completamente novo. Primeiro porque torna cientificamente irrelevante a crença específica em Deus, mesmo porque isso muda conforme as várias existências que o indivíduo tem. É uma marca da consistência interna do Espiritismo com Kardec que seus princípios se reforcem e não se contradigam uns aos outros. 

Depois porque se conclui que, mesmo diferentes, todas as religiões estão corretas ao mesmo tempo. O caminho de vida do agnóstico ou do não religioso pode ser apenas um pouco mais espinhoso do que a do crente. Ao constatar que as consequências para a nossa vida futura dos nossos atos não dependem de nossas crenças, mas dos nossos atos, abre-se um caminho igualitário para todos. As eventuais diferenças estão todas nos aspectos externos da existência, o que inclui nossas crenças. 

A linha de evolução da vida é dupla: há uma que constantemente se renova a cada nova existência e outra que permanece perene além dessa vida. A cada oportunidade, independentemente dos aspectos transitórios (condições materiais, crenças, educação herdada, oportunidades etc), o Espírito tem a chance de se reinventar marcando na linha perene as suas escolhas. Conforme assim procede ele colhe, mais para frente, as consequências. 
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente : quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas ideias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma consequência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização. 
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura. [1]

Referências

[1] A. Kardec. I Parte, "A Vida Futura", Óbras Póstumas. https://obraspostumasak.wordpress.com/a-vida-futura/