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23 de setembro de 2022

Experiências de quase-morte: considerações sobre explicações convencionais recentes.

 

Uma proposta nos chegou para divulgar experiências mais recentes de EQM (ou "experiências de quase-morte", em ingle NDE ou "near death experiences"). De fato, posts sobre essas experiências são um pouco antigos aqui (um deles já tem 10 anos...[1]). Desde então, o que mudou? Ao longo do tempo, muitas outras experiências foram relatadas. Os leitores poderão acessar, por exemplo, os sites da International Association for Near-Death Studies (IANDS e sua revista especializada Journal of Near-Death Studies) ou da Near-Death Experience Research Foundation (NDERF). Esses locais na rede dedicam-se ao acúmulo e estudo de relatórios de experiências de quase-morte de uma maneira sistemática.

De forma mais específica, de 2012 até 2022, o que a comunidade acadêmica disse a respeito do assunto? Por "comunidade acadêmica" entendemos aqueles que não comungam das mesmas explicações de alguns dos investigadores pioneiros do assunto, como é o caso de R. Moody, S. Parnia [3], ou o Dr. Bruce Greyson [4]. Esses pesquisadores têm sido em parte responsáveis pela divulgação desses eventos na grande mídia. Eles chamam atenção para o caráter anômalo dos reportes de EQM; ao fato de que elas "sugerem" continuidade da vida após a morte.

Um debate tem se estabelecido naturalmente entre os adeptos da explicação "sobrevivencialista" (de que as experiências informam sobre uma realidade maior além da vida) e os que negam qualquer coisa nesse sentido. Exemplos de opiniões nessa última direção podem ser lidos em [2], [2b], [5], [6] e [7]. Isso é plenamente compreensível porque não existe uma teoria completa sobre a consciência, que é considerada um subproduto da atividade do cérebro. De acordo com essa visão acadêmica majoritária, as EQMs seriam apenas reações normais de um cérebro em perigo de vida, algo como as reações de "tanatose" dos insetos.

O problema da falta e uma teoria da consciência

Problemas começam com as definições apropriadas de "morte cerebral". Essa definição é fundamental para se entender o fenômeno, uma vez todos que reportaram a experiência sobreviveram. Ou seja, o cérebro não estava "morto" de fato, não obstante a parada cardíaca. 

Para se ter uma ideia da confusão reinante, devemos considerar trabalhos extensivos de mapeamento de regiões cerebrais e sua associação com funções cognitivas fundamentais. Diz-se que tais funções são "geradas" ou "processadas" em regiões super específicas do cérebro. Isso  não é diferente de dizer que a causa para as operações do pensamento está no tecido neural dessas regiões. Essa explicação, porém, é abalada pelo conceito de "plasticidade cerebral" nos casos de pacientes com lesões sérias em determinadas parte do cérebro, mas sem qualquer impacto em seu comportamento cognitivo. Essa plasticidade é definida como a "capacidade do cérebro de alterar sua estrutura e função" [8]. Ora, diante disso, o que de fato, gera as funções cognitivas? Ao invés de regiões e tecidos específicos, a explicação envolve reconhecer que o cérebro em seu conjunto é a própria origem, o que torna o mapeamento inócuo de um ponto de vista fundamental. Toma-se o próprio fenômeno como a causa. 

A identificação mais profunda da causa é ainda obscurecida pela "complexidade" das conexões entre os bilhões e bilhões de neurônios que formam o cérebro. Essa complexidade seria a própria causa, como parece ser a explicação vigente, sendo que a variedade, riqueza e multiplicidade das experiências conscientes é resultado de uma organização inacessível na escala microscópica. Oculto na complexidade qualquer explicação é possível e talvez indique um problema na metodologia de pesquisa dos fenômenos de EQM.

Essas dificuldades metodológicas são evidentes diante de um dos primeiros monitoramentos aparentemente completos da atividade cerebral durante um episódio de óbito. Como descrito em [9], ele foi realizado apenas em 2022. Há claras dificuldades operacionais e éticas, como conseguir autorização da família para realizar estudos científico em um parente querido com quadro clínico constatado como irreversível. 

Opinião convencional vigente

A referência [2b] resume o estado de ânimo reinante nos defensores das explicações convencionais. A autora pondera:

Aceito a realidade dessas experiências intensamente vivenciadas. Elas são tão autênticas quanto qualquer outra percepção ou sentimento subjetivo. Como cientista, entretanto, opero sob a hipótese de que todos os nossos pensamentos, memórias, percepções e experiências são consequências inevitáveis de causas naturais em nosso cérebro ao invés de experiências sobrenaturais. Essa premissa serve muito bem a ciência e suas criações tecnológicas ao longo dos últimos séculos. A menos que existam evidências objetivas, convincentes e extraordinárias ao contrário, não vejo razão para abandonar esse pressuposto.

Há claramente um problema de percepção das causas aqui. A sobrevivência é considerada uma "experiência sobrenatural" sem se especificar o que isso significa: seria uma quebra da ordem natural completamente desnecessária na teoria da sobrevivência? De resto, é evidente que todas as experiências de EQM são filtradas pelo cérebro, tal como o são as experiências cognitivas normais. Não obstante isso, a essas últimas é conferido o caráter de "realidade" que existe independende da "recriação" cerebral. Mas não há nada nas explicações neurológicas convencionais que explique como isso é possível. Tanto faz, neurologicamente falando se "o cérebro vê uma lâmpada externa acesa" ou "imagina ver uma lâmpada" (as mesmas regiões do cérebro são usadas na percepçao e na imaginação de algo).

Desprovido de qualquer referência de informação da realidade externa, a explicação convencional é resumida por esta passagem em [2]:

Sem surpresa, muitos consideram as EQMs como evidências de vida após a morte, do céu ou da existência de deus. As descrições de deixar o corpo ou de uma bem-aventurada união com o universal parecem ter origem em crenças religiosas sobre almas deixando o corpo na morte e subindo em direação a um céu das bem-aventuranças. Mas, essas experiências são compartilhadas entre uma ampla gama de culturas e religiões de forma que não é improvável que elas sejam reflexo de expectativas religiosas específicas. Ao invés disso, esse caráter comum sugere que as EQMs se originam de algo mais fundamental do que expectativs religiosas e culturais. Talvez as EQM reflitam mudanças em como o cérebro funciona quando nos aproximamos da morte.

Em suma: a regularidade e uniformidade de relatos é atribuido a uma "crença religiosa generalizada", que tem como causa nada além de ocorrências comuns no cérebro. A universalidade da experiência tem como origem a universalidade da bioquímica do que ocorre no cérebro moribundo.

A extraordinariedade, objetividade e convencimento das EQM devem ser buscadas no caráter de "realidade externa" independente que alguns relatos demonstram e que é um mistério para as explicações convencionais. 

A ligação entre EQMs e a realidade externa

Assim, é bastante claro que, se as EQM permanecerem como "experiências vividas e significativas" para quem as experimenta, elas permanecerão também indistinguíveis de estados fantasiosos "normais". Esse caráter significativo e impactante é irrelevante para a explicação convencional da mente como produto do cérebro.  Qualquer coisas que se imagine, se vivencie será sempre uma experiência privada e, portanto, uma fantasia produzida pelos neurônios cerebrais.

Mas, será apenas isso o que as EQMs relatam?  O interesse contemporâneio de neurocientistas pelos casos de EQM passam muitas vezes longe de relatos anteriores na literatura especializada de EQMs verídicas [10].  Por esse nome se designam EQMs em que os pacientes descrevem coisas no mundo externo que seria impossível a eles descrever no estado e na posição de seus corpos no momento da experiência. Existem inúmeros casos reportados e um deles já foi descrito aqui [10b]. Porém, uma peculiaridade do meio de pesquisa simplesmente considera tais casos como "pura ficção".

Em um trabalho recente [11], Stripp considera que os relatos de EQM verídicas são desprezados intencionalmente pela comunidade acadêmica conforme o "viés reducionista" dominante. Sobre as "falácias ontológicas e epistemológicas" associadas a NDEs, Stripp pondera corretamente [12]:

Tais declarações são baseadas em suposições ontológicas materialistas. Essas são suposições para as quais os autores não conseguem mencionar nem discutir, dando origem a um falácia de pensamento circular: uma vez que tudo está na biologia, as EQMs tem um objetivo biológico. Não estou a argumentar contra esses aspectos comuns em todos os humanos, mas sugiro que tais aspectos podem não resultar integralmente dos componentes biológicos do corpo humano. Simplesmente não conhecemos tudo o que nos mantem coesos. Além disso, objetividade pura é, em muitos cenários, impossível, considerando que sempre haverá alguma subjetividade e decisões humanas em toda pesquisa. Essa subjetividade introduz um viés que deve ser criticamente avaliado. Mesmo os axiomas mais comuns da ciência são construções humanas e devem ser considerados como tal.

Em outras palavras: quando evidências verídicas são fornecidas, os relatos não são considerados suficientemente "objetivos" para merecerem "crédito acadêmico", sob uma suposta exigência de objetividade. Mas isso é imcompatível com a natureza do fenômeno estudado. 

Essa falta de consideração é cuidadosamente selecionada para que apenas os relatos que se adequam à visão materialista vigente façam sentido. Muitas abordagens convencionais acabam, portanto, apenas se dedicando aos aspectos do fenômeno que podem ser aparentemente explicados justamente por aquilo que pesquisadores acreditam desde o início. Por exemplo: reduzir NDEs a experiências semelhantes a  "alucinações provocadas por drogas" é uma das estratégias de desconstrução da rica fenomenologia dos relatos [12]. Alguns pesquisadores [13] têm denunciado essa postura que não pode ser considerada científica.

No nosso entendimento, esse estado de coisa é lamentável como postura "científica", mas perfeitamente compreensível. Não será possível promover uma revolução na maneira de pensar da academia sem estudos sistemáticos sejam conduzidos com os fenômenos de EQM. Aliás, sobre isso, o que será mais "extraordinário" realizar é a completa mudança de mentalidade a respeito do assunto. Por serem fatos que devem ser "colhidas de passagem" (como diria Kardec), será muito difícil estabelecer qualquer tipo de controle rigoroso  na sua frequência, ocorrência e avaliação. Seria o mesmo que querer validar em laboratórios fenômenos esporádicos que somente ocorrem na Natureza em grande escala. Entretanto, as EQM fornecem e sempre fornecerão evidências bastante convincentes da realidade da continuidade da vida a despeito das tentativas de acomodá-la a concepções preconcebidas.

Referências

[1] Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011). https://eradoespirito.blogspot.com/2012/11/reflexoes-sobre-o-contexto-de.html

[2] R. Martone (2019). "New Clues Found in Understanding Near-Death Experiences".https://www.scientificamerican.com/article/new-clues-found-in-understanding-near-death-experiences/

[2b] C. Koch (2020). What Near-Death Experiences Reveal about the Brain. https://www.scientificamerican.com/article/what-near-death-experiences-reveal-about-the-brain/

[3] Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia). https://eradoespirito.blogspot.com/2011/11/livro-iii-o-que-acontece-quando.html

[4] Near-Death Experiences (NDEs). https://med.virginia.edu/perceptual-studies/our-research/near-death-experiences-ndes/

[5] Evrard, R., Pratte, E., & Rabeyron, T. (2022). Sawing the branch of near‐death experience research: A critical analysis of Parnia et al.’s paper. Annals of the New York Academy of Sciences.

[6] Hannah Flynn (2022). When are we really dead? New study sheds lighthttps://www.medicalnewstoday.com/articles/when-are-we-really-dead-new-study-sheds-light

[7] Martial, C., Gosseries, O., Cassol, H., & Kondziella, D. (2022). Studying death and near-death experiences requires neuroscientific expertise. Annals of the New York Academy of Sciences. https://orbi.uliege.be/bitstream/2268/293819/1/comment%20on%20parnia%20et%20al_final.pdf

[8] Kolb, B., & Whishaw, I. Q. (1998). Brain plasticity and behavior. Annual review of psychology, 49(1), 43-64.

[9] Vicente, R., Rizzuto, M., Sarica, C., Yamamoto, K., Sadr, M., Khajuria, T., ... & Zemmar, A. (2022). Enhanced interplay of neuronal coherence and coupling in the dying human brain. Frontiers in aging neuroscience, 80.

[10] Ring, K., & Lawrence, M. (1993). Further evidence for veridical perception during near-death experiences. Journal of Near-Death Studies, 11(4), 223-229.

[11] Stripp, T. K. (2022). Near-death experiences and the importance of transparency in subjectivity, ontology and epistemology. Brain Communications, 4(1), fcab304.

[12] Van Lommel, P. (2011). Near‐death experiences: the experience of the self as real and not as an illusion. Annals of the New York Academy of Sciences, 1234(1), 19-28.

[13] Moreira-Almeida, A., Costa, M. D. A., & Coelho, H. S. (2022). Cultural Barriers to a Fair Examination of the Available Evidence for Survival. In Science of Life After Death (pp. 73-77). Springer, Cham.

17 de abril de 2013

Experimentum crucis: EQMs em pessoas cegas


"No Espírito, a faculdade de ver é uma propriedade inerente à sua natureza e que reside em todo o seu ser, como a luz reside em todas as partes de um corpo luminoso. É uma espécie de lucidez universal que se estende a tudo, que abrange simultaneamente o espaço, os tempos e as coisas, lucidez para a qual não há trevas, nem obstáculos materiais. Compreende-se que deva ser assim. No homem, a visão se dá pelo funcionamento de um órgão que a luz impressiona." (A. Kardec, comentário à questão #247 de "O Livro dos Espíritos". Foto: nossa homenagem a Dorina Nowill, 1919-2010)

É uma consequência natural da tese da sobrevivência que o ser humano deve possuir um outro corpo, de natureza diferente daquele conhecido. Nesse corpo residem verdadeiramente os sentidos, embora, na condição de "encarnado", os estímulos externos cheguem a ele por meio dos sensores de seu corpo material. Na ocorrência da morte, readquire o segundo corpo sua independência, ressurge o Espírito na posse de todos os seus sentidos originais.

Portanto, espera-se que, se determinadas condições especiais acontecerem, o Espírito encarnado, cujo sentido físico seja inexistente ou tenha sido severamente limitado durante sua vida normal, possa readquiri-lo em sua forma espiritual. Essa é uma previsão natural da tese da sobrevivência, uma previsão do paradigma espírita.

Por outro lado, para o reducionismo fisicalista ou materialismo, as experiências cognitivas estão totalmente atreladas aos estímulos externos recebidos. Portanto, não se espera que ocorram experiências cognitivas correspondentes àquelas ligadas à objetos inspecionados através de sentidos inexistentes (se eu, por exemplo, nunca vi um coelho, como posso sonhar ou imaginar ter visto um?). Surge aqui uma oportunidade para um "experimentum crucis" (1) porque, por lógica, cegos de nascença jamais poderiam descrever visões ou surdos de nascença jamais poderiam ouvir vozes. Mas, isso é justamente o que ocorre durante as chamadas EQMs (experiências de quase morte, 2). Nesses casos, torna-se um verdadeiro absurdo acreditar na tese da alucinação: como poderia alguém que nunca experimentou a visão, relatar experiências complexas relacionadas a ele? O absurdo é ainda maior ao se considerar que tais relatos ocorrem durante curtos períodos de tempo em que os pacientes são considerados "clinicamente mortos".

Alguns casos

Um trabalho de grande importância foi publicado em 1997 de autoria de Kenneth Ring e Sharon Cooper  (3) relatando, pela primeira vez de forma sistemática, diversos casos de experiências de quase-morte em cegos de nascença. A conclusão dos autores é que não existem diferenças de descrição na percepção com indivíduos, sejam eles cegos ou não, quanto ao conteúdo da experiência. No caso de cegos de nascença, há um momento na experiência em que eles começam a enxergar e tem visões complexas que se assemelham à das pessoas não cegas. O artigo de Ring e Cooper traz em detalhes dois casos, o de Vicki Umipeg e Brad Barrows. O caso de Vicki, cega de nascença vitimada por nascimento prematuro e excesso de oxigênio na incubaroda na década dee 1950, é interessante, por ter ela passado por duas EQM. Na última em particular  após uma acidente de carro em 1973, ela descreve um ambiente rodeado por árvores e flores e cheio de gente, depois de ter-se reconhecido a si mesma deitada na mesa do hospital.

Outro é o caso de Brad Barrows, cego de nascença, que teve uma EQM em 1968 após uma parada cardíaca motivada por uma pneumonia séria. Ele tinha então oito anos de idade, mas, durante a EQM ao ascender pelo teto do hospital, ele pode divisar o estado do clima, que o céu nas vizinhanças estava cinza e que a neve cobria os telhados das casas, menos as ruas. Os eventos descritos também incluem a audição de músicas de caráter 'celestial' e a lembrança de ter estado em um ambiente totalmente diferente do hospital, como um campo imenso, iluminado por luzes feéricas.  O artigo de Ring e Cooper fornecem ainda outros casos (como o de Frank e  Nancy  nas páginas 120 e 122, respectivamente) que demonstram a corroboração das experiências visualizadas pelos cegos por meio de evidências externas - os tipos de evidência que são costumeiramente desprezadas pelas "teorias da alucinação", mas que estão igualmente presentes nos EQM dos cegos.

Segundo os testemunhos dessas pessoas cegas, a sensação de visão chega a ser assustadora inicialmente, por falta de referência de aprendizado de sua vida presente. A conclusão dos autores do estudo é muito bem sintetizada no último parágrafo da ref. 3:
As experiências de visão dos cegos são mais surpreendente do que eles próprios descrevem. Na verdade, eles, assim como as pessoas normais, têm experimentado episódios semelhantes  quando transcendem totalmente a consciência baseada no cérebro e, por causa disso, tais experiências desafiam qualquer tipo de nomenclatura convencional. Será necessário uma nova linguagem, tanto quanto novas teorias de um novo tipo de ciência, para se começar a compreendê-las. Com esse objetivo, o estudo de experiências paradoxais e totalmente anômalas é de papel fundamental para fornecer aos teóricos de hoje os dados necessários para se moldar a ciência do século 21. E essa ciência da consciência, assim como o próprio milênio, já despontam no horizonte. 
Interessantemente, os relatos de NDE de cegos são completos o suficiente para que possamos fazer uma ideia do verdadeiro tipo de sentido envolvido na experiência. Não se trata de uma experiência visual comum. Como os autores descrevem (5):
A estória de Sarah implica que ela era realmente capaz de ver durante uma EQM da mesma maneira que uma pessoa normal poderia ver. Mostramos isso como uma inferência sem garantias. O que se parece análogo a uma visão física, deixa de ser quando examinado com mais detalhes. É um tipo totalmente diferente de consciência esse (awareness), algo que chamamos de consciência transcendental, que funciona independentemente do cérebro, mas que necessariamente é filtrado por ele e por meio da própria linguagem. Assim, na época em que esses episódios apareceram, eles são descritos em termos da linguagem da visão, mas as experiências de verdade parecem ser totalmente diferentes do que se conhece e não são facilmente descritas em termos da linguagem do discurso ordinário. Na verdade, nosso trabalho mostrou a necessidade de se exercer discernimento crítico antes de tomar tais descrições como elas se apresentam. Com certeza, elas compõem boas histórias para livros e  títulos de tabloides, mas nem sempre são o que parecem. Elas, na verdade, são ainda mais extraordinárias do que isso. (ref. 3, 2o, parágrafo)
Em outras palavras, a descrição de EQMs de cegos de nascença traz elementos para compreendermos o sentido real de visão do Espírito, como descrito e anunciado em "O Livro dos Espíritos" por A. Kardec (ver questão #247 citada acima). 

Conclusões
Como temos estudado em vários posts aqui (6), o reducionismo fisicalista prevê que todas as funções cognitivas são funções da atividade cerebral. Esse paradigma tem relativo sucesso em muitas explicações de fenômenos de percepção comuns e é a base de todas as ciências clínicas. Fenômenos como atuação de drogas ou lesões sérias no cortex ou partes do cérebro parecem validá-lo. Não desconhecemos esse sucesso, embora inexista nenhuma prova de que sua validade seja inconteste. 

Como vimos, o sucesso aparente dessa tese (7) só vai até um determinado horizonte, além do qual reina o desconhecido que é 'varrido para baixo do tapete'. Portanto, o materialismo é uma visão aproximada da realidade, que deve ser complementada pela visão espiritualista.

As descrições de experiências visuais durante ocorrências de NDE ou OBE em cegos de nascença não tem diferença em relação à de pessoas normais. Tal constatação permanece como uma das evidências mais fortes sobre a independência da percepção visual integral no ser humano que ocorre durante tais essas anômalas e colocam um problema sério para as teorias que explicam a cognição a partir de experiência aprendida, num modelo funcional da mente.

A experiências de quase morte em cegos de nascença permanecem como "observações cruciais" que desafiam o paradigma existente e requerem estudos aprofundados, na verificação de ocorrências semelhantes com outras pessoas que tenham problemas severos de limitação dos sentidos (tais como a constatação de experiência auditiva em surdos de nascença durante essas experiências). A expansão de sentido ou recuperação de capacidades mentais tem sido relatada em pacientes com severas limitações mentais e que, de um instante a outro, se tornam lúcidos. Essa é a chamada 'lucidez terminal' e, as ocorrências com os cegos caem dentro dessa categoria.

Notas e referências

(1) Ou, "experimento crucial". Um "experimentum crucis" - ou experimento crucial - é um situação ou teste experimental capaz de decidir sobre a superioridade de uma teoria (ou hipótese) frente a outra ou conjunto de outras teorias. Ele reúne em si as qualidades empíricas capazes de afastar definitivamente condições ou aspectos que seriam cruciais para evitar a rejeição de teorias concorrentes e decidir definitivamente pela teoria vencedora. Francis Bacon também chamava essas oportunidades de 'Instantia crucis' (instâncias cruciais). Não é fácil projetar ou conceber experimentos cruciais, pois isso exige conhecimento aprofundado das peculiaridades de todas as teorias envolvidas, além de uma possibilidade experimental ou de observação. Não existiria, assim, um 'experimento crucial' capaz de definitivamente demonstrar uma deficiência séria no reducionismo e abrir as portas para outras noções não materialistas da mente? Um experimento desse tipo deveria ser capaz de mostrar que respostas cognitivas poderiam ser produzidas na ausência de funções cerebrais extensivas.

(2) Já vimos (Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia) que as chamadas 'Experiências de quase morte' são instâncias de lembranças por parte de pessoas que sofreram paralisia severa das atividades cerebrais. Durante essas ocorrências, são comuns a visão de luzes, seres "e outras dimensões" e, na sua imensa maioria, parentes e amigos falecidos. Essas ocorrências anômalas são explicadas de forma precária por diversos tipos de teorias que envolvem mais ou menos a assunção de que alguma função cerebral remanescente atua durante esses instantes, provocando a experiência que seria totalmente ilusória. Já vimos a fragilidade dessas explicações e outras anomalias que acontecem no contexto das experiências de quase morte (Ver post "Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011)"). Vimos também que a validação das experiências de forma independente (quando o que o sujeito viu é comprovado como realmente tendo ocorrido nos instantes da paralisia cerebral) também não é levada em consideração pela maioria dos especialistas quando confrontados com o problema.

(3) Ring K., Cooper S. (1997), Near Death and Out-of-Body Experience in the Blind: a Study of Apparent Vision, Journal of Near-Death Studies, 16(2), p. 101-147. Ver também:
(4) Original em inglês:
What the blind experience is more astonishing than the claim that they have seen. Instead, they, like sighted persons who have had similar episodes, have transcended brain-based consciousness altogether and, because of that, their experiences beggar all description or convenient labels. For these we need a new language altogether, as we need new theories from a new kind of science even to begin to comprehend them. Toward this end, the study of paradoxical and utterly anomalous experiences plays a vital role in furnishing the theorists of today the data they need to fashion the science of the 21st century. And that science of consciousness, like the new millennium itself, is surely already on the horizon.
(5) Original em inglês:
The story of Sarah implied that she really could see during her NDE, in the way that a sighted person might. We have shown this is an unwarranted inference. What seemed like an analog to physical sight really was not when examined closely. It is a different type of awareness altogether, which we have called transcendental awareness, that functions independently of the brain but that must necessarily be filtered through it and through the medium of language as well. Thus, by the time these episodes come to our attention, they tend to speak in the language of vision, but the actual experiences themselves seem to be something rather different altogether and are not easily captured in any language of ordinary discourse. Indeed, our work has shown the need to exercise critical discernment before taking these reports at face value. To be sure, they make good stories, in books or in tabloid headlines, as the case may be, but they are not always necessarily what they seem. They are more remarkable still.
(6) Ver post 'O que acontece quando morremos' do Dr. Sam Parnia.

(7) Ver post, "Como a parapsicologia poderia se tornar uma ciência", Parte I de P. Churchland.



    

25 de novembro de 2012

Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011) - 2/2.

"No estado material em que vos achais, só com o auxílio de seus invólucros semimateriais podem os Espíritos manifestar-se. Esse invólucro é o intermediário por meio do qual eles atuam sobre os vossos sentidos. Sob esse envoltório é que aparecem, às vezes, com uma forma humana, ou com outra qualquer, seja nos sonhos, seja no estado de vigília, assim em plena luz, como na obscuridade." (A. Kardec. O Livro dos Médins, 2a parte, "Das manifestações espíritas". Cap. VI.)

Em post anterior (ref 1), discutimos brevemente trechos do artigo de Michael Nahm (2011) sobre o contexto de experiências de quase morte. Nesta segunda parte, comentamos outros trechos igualmente interessantes para compor nossa análise final do trabalho.

Relação entre NDE, Mediunidade e CORTs: do inglês 'Case of Reencarnation type'. Aqui o autor traça relações aparentes que existem entre relatos de experiências de quase morte (EQM =NDEs), fenômenos mediúnicos e eventos de lembranças de vidas anteriores (CORT):
Por exemplo, Giovetti (1999) descreve um caso no qual um NDEr reportou ter encontrado uma mulher de nome Mara durante uma experiência fora do corpo. Ela disse que ele poderia escolher entre permanecer naquele estado ou retornar ao seu corpo. O NDEr decidiu retornar. Mais tarde, descobriu-se que Mara era também um comunicante regular em um grupo mediúnico e que ela tinha dado uma comunicação independente em uma sessão descrevendo o encontro com o NDEr. 
Tal ocorrência singular está totalmente de acordo com o estado de liberdade do Espírito, na possibilidade de seu encontro com outros Espíritos e de trânsito de informação de forma não convencional, como nunca seria esperado por qualquer outro processo que jamais admitisse a independência e comunicabilidade dos Espíritos. Mas qual a relação com lembranças de vidas passadas? Em outro trecho do artigo, Nahm descreve:
No contexto presente, é relevante que várias crianças, de diferentes traços culturais, deram descrições complementares sobre como elas passaram o período intermediário entre duas existências. Frequentemente tais descrições começam dizendo que deixaram o corpo da personalidade anterior com a morte e que perceberam cenas a partir de cima. Algumas crianças também dizem que as pessoas presentes próximas ao corpo não conseguiam ouvi-las ou vê-las, embora as crianças tentassem fazer contato. Outras ainda descrevem corretamente o que aconteceu com o corpo da personalidade anterior, por exemplo, fornecendo informação verídica sobre eventos do funeral (Hassler, 2011; Stevenson, 1997; Tucker, 2006).
Tais descrições são ainda mais extraordinárias (sempre do ponto de vista que não admite a sobrevivência e reencarnação), pois provêm de fontes consideradas de difícil influenciação por ideias aprendidas. Vimos como crianças também podem fornecer relatos de experiências de quase morte (ver post da nota 2). Aqui, Nahm considera a existência de relatos de NDE por crianças que não experimentaram uma NDE realmente, mas que se lembram de experiência semelhante vivida por sua personalidade anterior. A descrição da NDE é, portanto, indireta e fornecida a partir de uma lembrança de uma vida anterior. Tais descrições sancionam não só a existência integral e consistente da personalidade após a morte como também as vidas sucessivas.


Anúncios de nascimento e posterior confirmação: Outra variedade de fenômeno relacionado a sonhos compartilhados, são os casos de lembranças nos pais de visitas de Espíritos de crianças antes de seu nascimento. Pensemos em toda controvérsia que existe em torno da questão do aborto e sua ética, diante de evidências de sonhos compartilhados desse tipo em que a criança posteriormente confirma a visita!
Mas, os casos mais típicos de anúncios oníricos CORT não recíprocos são bastante notáveis. Neles os futuros pais sonham frequentemente com uma personalidade falecida que declara ser seu interesse nascer a partir deles. Posteriormente, a criança nascida fala de uma vida que corresponde à existência da personalidade que apareceu durante os sonhos, sendo que a criança pode apresentar marcas de nascença que corresponde àquelas da personalidade anterior (por exemplo, o caso de Necip Ünlütaskiran em Stevenson, 1997)
Um interessante caso também é apresentado pelo Dr. Moody conforme vimos em um post anterior (ver ref. 4).

Lucidez terminal: Um fenômeno que tem sido observado durante eventos de EQM é o súbito retorno à lucidez de pessoas consideradas incapazes mentalmente ou doentes em estado avançado de ausência de consciência nos momentos que se aproximam da morte. Esse fenômeno pode ser chamado de lucidez terminal. Segundo Nahm:
Presentemente, conheço cerca de 85 casos publicados desse tipo. Eles incluem pacientes com tumores no cérebro, demência  doença de Alzheimer, derrame, meningite, esquizofrenia e outros sem diagnóstico médico preciso. Vários outros casos me foram relatados por comunicação pessoal. Os incidentes mais perplexos são aqueles em que a doença mental é causada por degeneração ou destruição de estruturas cerebrais no paciente tal como a doença de Alzheimer, tumores e derrames.
Sobre esse retorno à lucidez por alguns momentos, há ainda uma observação perspicaz:
A lucidez inexplicável que é mostrada por alguns pacientes pode também ser relacionada ao estado de extraordinária claridade mental que é reportada durante as EQMs e, como mencionado, aos momentos de lucidez que ocorrem nas visões de leito de morte (DBV). Guy Lyon Playfair reportou um caso de um DBV que torna evidente esse tipo de relação (correspondência eletrônica de 22 de Dezembro de 2009). Nesse caso, uma paciente em estado de demência experimentou uma DBV no dia anterior ao da sua morte. Nessa visão, a paciente viu e reconheceu membros familiares falecidos, a saber, um irmão e uma irmã que já haviam falecido há bastante tempo. A visão foi tão real que a mulher pediu a sua enfermeira, de forma surpreendente, que a servisse três xícaras de chá. Isso, considerando que no último ano ela era incapaz de reconhecer sequer membros da família que viviam com ela na mesma casa.
Ou seja, há uma relação entre a percepção de estado de grande lucidez durante uma EQM e sua ocorrência quanto o paciente encontra-se em um estado de doença mental. Não podemos deixar de lembrar aqui que a lucidez terminal é comprovação do que foi revelado no 'Livro dos Espíritos' em várias questões desde # 371 a #378 sobre o Idiotismo e a Loucura. Reproduzimos aqui a questão #375 do LE para comparação (ref. 3):
375. Qual, na loucura, a situação do Espírito?

"O Espírito, quando em liberdade, recebe diretamente suas impressões e diretamente exerce sua ação sobre a matéria. Encarnado, porém, ele se encontra em condições muito diversas e na contingência de só o fazer com o auxílio de órgãos especiais. Altere-se uma parte ou o conjunto de tais órgãos e eis que se lhe interrompem, no que destes dependam, a ação ou as impressões. Se perde os olhos, fica cego; se o ouvido, torna-se surdo, etc. Imagina agora que seja o órgão que preside às manifestações da inteligência o atacado ou modificado, parcial ou inteiramente, e fácil te será compreender que, só tendo o Espírito a seu serviço órgãos incompletos ou alterados, uma perturbação resultará de que ele, por si mesmo e no seu foro íntimo, tem perfeita consciência, mas cujo curso não lhe está nas mãos deter."
A lucidez terminal é, portanto, um fenômeno previsto pela teoria espírita que afirma a natureza dual do ser  humano. Evidências de lucidez terminal são fornecidas por Nahm nas seguintes referências: (Barrett, 1926, Bozzano, 1947, Kelly, Greyson, & Kelly, 2007)

Conclusões

Comentamos abaixo algumas outros trechos do excelente artigo de M. Nahm como conclusão deste post. Em primeiro lugar sobre as evidências existentes para o retorno à lucidez de pacientes terminais com doenças mentais:
Se essas observações forem substanciadas em investigações futuras, elas representam problemas sérios aos modelos amplamente aceitos para a consciência e processamento de memória. Segundo essas, a mente humana é considerada um subproduto de interação de disparos de neurônios. Mas, como no caso das EQMs, somos obrigados a nos perguntar: como pode a cognição e a memória funcionarem sob condições severas de paralisia cerebral ou mesmo degeneração avançada das estruturas neuronais necessárias? 
Aqui há pouco a ser comentado, deixando claro nossa concordância com essa observação de Nahm. Ele ainda desenvolve:
A hipótese de que uma EQM não depende do estado da organização orgânica no cérebro constitui-se em um modelo explicativo capaz de lidar com o enigma sobre porque as experiências NDE podem ser tão notavelmente similares sob condições tão variadas de fisiologia do cérebro.
Em outras palavras, as experiências de EQM são manifestações da parte espiritual do ser humano e, dessa forma, manifestam-se de forma independente do estado particular ou condição neurológica em que se encontre o corpo (embora, sua manifestação exige que partes inteiras do cérebro estejam profundamente comprometidas). Nesse sentido, as observações feitas com pacientes dementados em estado terminal são muito relevantes:
Se pacientes em estado de demência podem subitamente reconhecer membros familiares próximos vivos durante a lucidez terminal, outros podem muito bem reconhecer membros familiares falecidos durante uma visão de leito de morte ou EQM, talvez porque entrem semelhantemente em um processo de enfraquecimento de vínculos com a matéria física cerebral. De fato, é uma afirmação antiga do Espiritualismo que muitas doenças mentais podem ser revertidas ou curadas no estado desencarnado.

Como vimos, isso é corolário do que apresentamos acima com a questão # 375 de 'O Livro dos Espíritos'. Sobre desdobramentos empíricos das EQM, Nahm também lembra a existência de eventos onde múltiplas pessoas foram envolvidas simultaneamente em um evento de EQM (Gibson, 1999), o que possibilitaria a descrição simultânea da ocorrência entre diferentes indivíduos:
Se tais descrições puderem ser independentemente corroboradas por participantes diferentes em uma mesma experiência, isso forneceria um argumento forte a favor da possibilidade de experiências intersubjetivas durante o estado aparentemente desencarnado do ser. A crença de que aqueles que deixam seus corpos físicos - seja durante a vida ou durante a morte - são capazes de ver outros Espíritos desencarnados é parte de antigas tradições de muitas culturas ao redor do mundo.
Experiências de quase morte reciprocamente confirmadas, comunicações mediúnicas que confirmam experiências de EQM, crianças que lembram EQMs vividas pelas personalidades de uma vida anterior, pais que sonham recorrentemente com personalidades que pedem para nascer a partir deles e seus filhos então confirmam os sonhos dos pais, doentes mentais que repentinamente recobram a lucidez pouco antes da morte, pessoas afetadas por problemas neuronais graves que subitamente recordam EQMs exibindo um estado de grande lucidez, EQMs que relembram experiências vividas em outras existências...

Tais são os fenômenos desprezados e desconsiderados pelo conhecimento especializado da medicina, casos que ocorrem talvez aos milhares todos os dias, previstos e prescritos na lei, porque revelam a natureza real do ser humano, alma consciente e viva dentro da grande Eternidade que é a vida verdadeira do Espírito imortal.   

Notas
  1. Reflexões sobre o contexto de experiências de quase-morte: artigo de Michael Nahm (2011) - 1/2.
  2. Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia)
  3. A. Kardec. 'O Livro dos Espíritos'. Referência do IPEAK.
  4. Palestra do Dr. Raymond Moody sobre Experiências de quase-morte compartilhadas. (Set, 2011).
Referências
  • Barrett, W. F. (1926). Death-Bed Visions. London: Methuen.
  • Bozzano, E. (1947). Le Visioni dei Morenti. Verona: Salvatore Palminteri.
  • Gibson, A. S. (1999). Fingerprints of God. Bountiful, UT: Horizon
  • Giovetti P. (1999). Visions of the dead. Death-bed vision and and near death experiences in Italy. Human Nature 1, 38-41.
  • Hassler D (2011). Spontanenerinnerungen kleiner kinder an ihr 'früheres leben'. Aachen. Shaker Media.
  • Kelly, E. W., Greyson, B., & Kelly, E. F. (2007). Unusual experiences near death and related phenomena. Em E. F. Kelly, E. W. Kelly, A. Crabtree, A. Gauld, M. Grosso, & B. Greyson (Eds.), Irreducible Mind: Toward a Psychology for the 21st Century, Lanham, MD: Rowman & Littlefi eld, pp. 367–421.
  • Nahm, M (2011). Reflections on the Context of Near-Death Experiences, Journal of Scientific Exploration, 25, No. 3, pp. 453–478.
  • Stevenson I. (1997). Reincarnation and Biology. Westport. CT Praeger.
  • Tucker J. T.(2006). Life before life. London: Piatkus Books.

23 de novembro de 2011

Livro III - O Que Acontece Quando Morremos (Dr. Sam Parnia)

"Of course it is happening inside your head, Harry, but why on earth should that mean that it is not real?" J. K. Rowling, em "Harry Potter and the Deathly Hallows"

O Dr. Sam Parnia é conhecido pesquisador da área médica, especialista em cardiologia, com uma grande virtude: tem interesse declarado pelas ocorrências de 'experiências de quase morte' (EQM ou NDE - ver vocabulário abaixo para os termos comumente usados em inglês). Em seu livro 'O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a vida após a morte', ele nos fornece um relato interessante de suas primeiras pesquisas no fascinante mundo das experiências de quem esteve a um passo de se encontrar com a 'morte', mas voltou para nos contar como é.

Embora o subtítulo sugestivo da edição em português 'um estudo sobre a vida após a morte', o livro é, em essência, uma introdução ao tema discorrendo de forma paralela como um relato em primeira pessoa do interesse do autor pelo assunto. A 'vida após a morte' aqui é uma referência ao curto estado em que passam determinados pacientes em coma profundo que descreveram posteriormente NDEs. Do ponto de vista espírita, uma EQM é um evento de desdobramento espontâneo causado pela parada cardíaca que revela de forma independente a natureza dual do ser humano.

Divisão de capítulos

O livro está dividido nos seguintes capítulos: 1 - Experiências de quase morte: da antiguidade aos dias atuais; 2 - Organizando o estudo de Southampton; 3 - Como é morrer?; 4 - Paradoxo científico; 5 - Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência; 6 - Os ingredientes da vida; 7 - Isso é real; 8 - A Horizon; 9 - Implicações para o futuro. 

Faremos alguns comentários breves sobre alguns capítulos, enfatizando o que acreditamos ser mais relevante no que é apresentado pelo Dr. Parnia. O Capítulo 1 é, na verdade, uma introdução ao assunto, revelando que, desde cedo (adolescência), o autor teve grande interesse pelas questões relacionadas à "tanatologia". Há poucos relatos de NDE em 'casos da antiguidade' conforme relatado no Capítulo, exceto por uma citação de Platão (*). Os exemplos históricos de eventos de NDE fornecidos são muito mais recentes.  Mas o Capítulo 1 não deixa de ser interessante, pois o autor faz um resumo das teorias existentes para explicar as NDEs. Antes disso, convém apresentamos grosso modo uma visão cética sobre o assunto:
Todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente. Os cientistas já provaram esse fato, e afirmam que isso tudo não passa de reações químicas, falta de oxigênio ou qualquer outro distúrbio mental que provoca alucinações, sensações de expansão da consciência, e outras variedades dos chamados " fenômenos espirituais; sendo assim, a viagem para fora do corpo poderia ser explicada como um fenômeno mental....também! (retirado da Internet: ver Blog 'Crônicas do Frank')
Para essa crítica, 'todas as sensações de espiritualidade que sentimos ocorrem na mente'. E as sensações "reais" ocorrem onde? Para muitos que não conseguem ver o problema de forma mais profunda, elas ocorrem no mundo externo... Para sabermos se os cientistas "estão realmente provando isso" convém consultarmos Parnia. Ele relaciona nos seguintes grupos as explicações chamadas 'ortodoxas' para o fenômeno:
  • Teoria das alucinações;
  • Teoria do cérebro moribundo (depleção de oxigênio);
  • Teoria do dióxido de carbono;
  • Teoria das drogas (e seus efeitos);
  • Teoria dos receptores químicos do cérebro;
  • Teoria da epilepsia do lobo temporal;
  • Teorias psicológicas;
Se existisse qualquer consenso aceito para o fenômeno, então não haveria tantas explicações propostas. O conjunto de 'explicações não ortodoxas' (na verdade só existe uma) é chamada por Parnia de 'teorias transcendentais'. Trata-se daquela que postula a continuidade da vida após a morte e que explica as NDEs como relatos de experiências reais passadas pelo indivíduo (NDEr).  Das explicações acima, a mais aceita nos meios acadêmicos (e que constantemente se vê colocada como uma 'explicação' para os fenômenos pela grande mídia) é a 'teoria do cérebro moribundo' que supostamente explica a NDE como efeito de falta de oxigênio. Entretanto, Parnia vai a fundo na questão e pondera:
Do ponto de vista médico, a falta de oxigênio é um problema corriqueiro num hospital. Muitos médicos operando em emergência deparam com o problema frequentemente, particularmente com pacientes cujos pulmões ou corações não estão funcionando muito bem, por exemplo, em casos de asma ou falência cardíaca. Cuidei de mais de 100 pacientes com falta de oxigênio. Quando os níveis caem, os pacientes ficam confusos e bastante agitados. Esse 'estado agudo de confusão', como é conhecido na medicina, é muito diferente da experiência de quase morte. (Parnia, 2008, p. 44)
Parnia argumenta que as 'teorias químicas do cérebro' (todas baseadas em alguma modificação severa nos níveis de substâncias presentes no tecido cerebral, seja oxigênio, drogas, receptores químicos etc) não são boas explicações porque elas não preveem as condições em que os NDE ocorrem. Em outras palavras, eventos de NDE não são observados costumeiramente quando essas condições estão presentes. Experiências de quase morte são eventos singulares, únicos, imprevisíveis, mas com estatística de ocorrência alarmante para serem desprezados. De nossa parte nos perguntamos: será que isso demonstra que os NDE não são produzidos apenas a partir de condições endógenas (e. g. parada cardíaca etc) mas também exigem fatores externos (independentes do indivíduo) para acontecer? Isso certamente explicaria a aleatoriedade dos eventos.

Quanto às 'teorias psicológicas', elas se aglomeram em torno da tese de que as experiências seriam supostamente produzidas pela mente como resposta a uma situação potencialmente traumática. Para lidar com a situação, o cérebro supostamente inventa toda cadeia de eventos relatados pelos paciente que passa por uma NDE. Parnia chama a atenção que muitas teorias simplesmente partem do pressuposto de que os relatos são invenções e alucinações, descartando anomalias observadas durante as ocorrências. 

O Capítulo 2 (Organizando o estudo de Southampton) é uma descrição algo irônica das dificuldades de se estudar esse tipo de fenômeno na prática. Nesse capítulo, Parnia descreve com humor sua tentativa frustrada de iniciar um estudo das EQM por meio de cartazes fixados em salas de UTI no hospital de Southampton. A ideia é que, se as visões de NDErs forem reais (no sentido de se referirem a eventos externos), eles seriam capazes de ver e descrever posteriormente o que está escrito nesses cartazes, fixados de forma que os dizeres se voltam para o teto. A narrativa de Parnia mostra que um estudo considerado minimamente 'científico' exige tratar  fatores que vão muito além daqueles disponíveis quando se manipulam coisas simples de laboratório. Esse é mais um exemplo que mostra que a chamada 'metodologia científica', se exportada ou extrapolada sem modificações e cuidados, nunca irá funcionar de forma satisfatória. A cada fenômeno, um método.

Relatos infantis de EQMs

No Capítulo 4 (paradoxo científico), Parnia descreve vários relatos de crianças (com idade que pode chegar a 6 meses de vida) que passaram por experiências de quase morte. Esses são, para mim, os relatos mais impressionantes.  Em muitos desenhos feitos posteriormente, é possível ver que a criança reproduz a situação de se ver a si própria fora do corpo, em outro corpo e de se encontrar com outros seres ou pessoas, gente 'morta' como elas mesmas relatam posteriormente.
Desenho infantil como um relato de uma EQM. É possível ver como a criança se vê, 
estendida sobre a mesa e flutuando acima dela. Fonte: HubPages.
No que consiste esse 'paradoxo científico' ? O Dr. Richard Mansfield, colega de Parnia, nos conta um caso de um paciente que sofreu parada cardíaca por mais de 20 minutos e permaneceu por 15 minutos totalmente sem assistência de ressuscitação. Segundo Mansfield:
Quando o vi, ele me contou que tinha visto tudo de cima e descreveu em detalhes absolutamente tudo o que aconteceu. Disse tudo o que eu tinha dito e feito, como checar seu pulso, decidir parar com a ressuscitação, sair do quarto, voltar depois, olhar para ele, checar novamente seu pulso e não recomeçar o processo de ressuscitação. Ele contou todos os detalhes de forma correta e precisa, o que era impossível, uma vez que não apenas ele estava sob parada cardíaca, e não possuía pulso durante a parada, mas sequer estava sendo ressuscitado por cerca de 15 minutos depois. O que ele me contou realmente me arrepiou, e até hoje eu nunca havia contado a ninguém porque sabia que não conseguiria explicar...  (Parnia, 2008, p. 103) 
De outra forma, se a consciência é produto da atividade cerebral, como pode alguém ficar privado de oxigênio por quase meia hora e se lembrar de detalhes durante o ocorrido? Se a consciência é simples produto de atividade de circuitos neuronais, como alguém pode ter consciência perfeita de acontecimento quando seus circuitos neuronais sequer tem energia para cumprir os processos primitivos de controle metabólico? O paradoxo está na consciência anômala adquirida pelo paciente quando da parada cardíaca, consciência que se manifesta inclusive como total ciência, visão e audição dos eventos ao redor, produzindo informação verificável. Portanto, na medida em que se consideram muitos detalhes nos eventos de EQM (ou seja, que se estudem a fundo esses fenômenos), descobre-se que elas não são meras alucinações ou invenções do cérebro. 

O Capítulo 5 (Compreendendo a mente, o cérebro e a consciência) é uma introdução ao conhecimento presente sobre as teorias de funcionamento do cérebro e da mente. O estilo de Parnia é bastante livre e ele consegue passar de uma descrição autobiográfica para técnica em poucas linhas. Nesse capítulo, o autor discorre sobre limitações das teorias convencionais do cérebro e adentra no campo da filosofia e de física quântica, esta última entendida como explicação não convencional. O Capítulo 6 (Os ingredientes da Vida) é uma extensão do capítulo anterior e o autor descreve alguns fundamentos de física quântica que ele entende serem importantes para tentar responder às questões fundamentais. Na verdade, esse capítulo descreve que o que entendemos como 'matéria' não é algo tão 'tangível' como se pode pensar e que é possível, portanto, que no nível mais elementar, a mente seja formada por outro tipo de coisa.

A realidade 

No Capítulo 7 (Isso é real?), Parnia se põe a discutir métodos ou meios pelos quais seria possível separar uma experiência real de algo imaginário. A maior novidade na discussão são as propostas de  metodologias baseadas em imagens de tomografia que permitem observar em tempo real as áreas que são ativadas no cérebro quando um indivíduo está realizando uma atividade ou simplesmente pensando em algo.  Como vimos, a maior parte das teorias ortodoxas para as NDEs parte da hipótese de que as experiências não são reais, mas alucinações. Segundo Parnia:
Isso é uma maneira bem simplista de se olhar um assunto complexo que precisa de mais esclarecimentos e explicações. O que muitos que apoiam este argumento não mencionam é que exatamente as áreas do cérebro envolvidas com alucinações estão igualmente envolvidas com muitas das experiências 'reais' e 'normais' e emoções como o amor, ódio etc. Por conseguinte, simplesmente identificar essas áreas do cérebro como aquelas envolvidas em EQM não pode nos dizer se são experiências reais ou alucinações. (Parnia,  2008, p. 166)
De outra forma: exames de tomografia do cérebro não permitem que se diferenciem experiências 'privadas' das experiências 'públicas'. Os circuitos neuronais envolvido na atividade de se contemplar uma lâmpada acesa são os mesmos de simplesmente imaginar ver uma cena com essa lâmpada acesa. Não parecem existir bases em mapeamento neuronal suficientemente seguras para se caracterizar determinadas experiências como alucinações ou experiências reais. Isso complica bastante os métodos laboratoriais de pesquisa no assunto, já que não é possível diferenciar um caso de outro e todo o assunto, por essa via, parece muito complexo. Mais uma vez estamos diante de um objeto de estudo que escapa aos métodos presentes de pesquisa considerados científicos.

A Horizon (Capítulo 8) é uma fundação criada por Parnia que tem como objetivo apoiar estudos na área de EQM. De certa forma, essa foi a solução encontrada pelo autor para dar vazão à pesquisa na área, ainda incipiente ou pouco tolerada pelo meio acadêmico convencional. Há vários projetos em andamento e é bom sempre verificarmos esse link para sabermos das novidades na fascinante área da pesquisa das experiências de quase morte. 

Finalmente, no último capítulo (9 -Implicações para o futuro), Parnia  faz um resumo do que apresentou anteriormente, traça planos para o futuro e discute as consequências para  a humanidade de uma aceitação global do pós-vida a partir de evidências fornecidas pelas EQMs. Não seria apenas uma nova ciência, mas uma revolução como nunca antes vista:
Isto levaria a um estudo objetivo do que comumente é considerado assunto religioso e filosófico e, portanto, terminando muitos desacordos e levando, por conseguinte, a uma sociedade muito mais tolerante. Da mesma forma que a ciência revolucionou nossa compreensão do mundo externo, ela também poderia revolucionar nosso entendimento do mundo subjetivo dentro de nós.
De certa forma, isso já está acontecendo. Em síntese, o livro de Parnia é bastante elucidativo, trazendo discussões e contra argumentos ao ponto de vista cético padrão de considerar as EQM como meras alucinações. Certamente, as experiências de quase morte são uma via alternativa através da qual podemos acessar parte da realidade maior em que estamos envolvidos. Para a imensa maioria dos que passaram por essa experiência, hoje não há mais dúvidas: elas existem e são reais.

(*) A citação está no livro 'A República', Livro X, última parte onde Platão narra a fábula de Er. Parnia não fornece a referência completa. Ver o blog  Rotas Filosóficas.
  
Dados sobre o livro

O que acontece quando morremos - Um estudo sobre a Vida após a Morte.
Autor: Sam Parnia (2008).
Ed. nacional com tradução de Emanuel Mendes Rodrigues.
ISBN: 978-85-7635-360-7
Número de páginas: 246.
Editora Larrouse, São Paulo, SP.

Vocabulário

NDE (inglês) - 'Near Death Experiences'  ou experiências de quase morte (EQM em português) são relatos de vítimas de coma ou 'instâncias de quase morte' (em geral sobreviventes de paradas cardíacas) que mantem entre si determinadas características comuns. Dentre as mais marcantes está a de separação do corpo, sensação de grande paz, presença de pessoas já falecidas, visualização de uma luz ou tunel de onde retornam para continuar a presente existência. A experiência é descrita como não traumática e de grande impacto na vida do paciente. 
NDEr (inglês): É o indivíduo que passa por uma EQM.

Outros artigos de Parnia e colaboradores (ver www.horizonresearch.org)
  • Parnia S, Fenwick P, Near Death Experiences in Cardiac Arrest: Visions of a dying brain or visions of a new science of consiousness. Resuscitation 2002 Jan 52, 5-11;
  • Parnia S, Fenwick P: Do reports of consciousness during cardiac arrest hold the key to discovering the nature of consciousness? Medical Hypothesis 2007;
  • Parnia S, Waller D, Yeates R, Fenwick P, A qualitative and quantitative study of the incidence, features and aetiology of near death experiences in cardiac arrest survivors. Resuscitation, Feb 2001 48, 149-156.
Outros links

Outra página de referência (em inglês) é a da Near Death Experience Research Foundation.