31 de dezembro de 2020

O idioma da esperança para um novo mundo


Comecei a sentir que talvez a morte não fosse um desaparecimento, 
mas um milagre, e que há um tipo de lei na Natureza 
que nos guie para algum destino... L. L. Zamenhof [1b]

Essas foram algumas dos últimos escritos de Zamenhof, o criador do Esperanto, registrado em sua obra Mi estas homo (“Eu sou uma pessoa”, [1c] conforme citado em [1]). Esse trecho sintetiza um dos últimos pensamentos antes da morte de Zamenhof em 1917. Não é novidade que diversas línguas artificiais foram criadas para motivar a comunicação internacional humana. Entretanto, nenhuma delas teve maior apoio internacional do que o Esperanto, criado por Ludwik Lejzer Zamenhof (1859-1917). Neste post exploramos algumas das razões para isso.

Quase sempre quando se fala em uma língua internacional, todos nos lembramos que já dispomos de uma: o inglês. Por isso, a proposta de uma nova língua sempre enfrenta críticas aparentemente robustas. No mais, o desenvolvimento sem precedentes de sistemas de inteligência artificial projeta a possibilidade de sistemas de tradução em tempo real que tornariam – em tese – desnecessário sequer a existência de uma língua universal. Não obstante isso, pessoas continuam a escolher e estudar um idioma para sua comunicação internacional, porque não parece fazer sentido se comunicar face a face via aparelhos.

Entretanto, de tempos em tempos, perturbações mais ou menos severas na ordem econômica e social chamam a atenção mais uma vez para o problema linguístico entre nações. A ameaça do deslocamento do eixo econômico do mundo para o oriente dispara um alerta: com base no poderio econômico, seria possível ao inglês perder seu status de língua internacional, assim como aconteceu ao Grego, ao Latim, ao Francês para citar os casos mais famosos? Estaríamos nossos filhos fadados a ter que aprender o Mandarim [5] como próxima língua dos negócios e da técnica?

Visto como um “divertimento” inconsequente por uns ou como perda de tempo por outros, por razões diversas o Esperanto sobreviveu a perseguições e zombarias. Recentemente, recebeu um grande impulso: a plataforma Duolingo de aprendizado de línguas online disponibilizou as duplas Inglês-Esperanto, Português-Esperanto e Espanhol-Esperanto. Ao todo aproximadamente 2,9 milhões de pessoas começaram a aprender Esperanto por meio desta plataforma, 1,6 milhões do Inglês, 870 mil do Espanhol e 366 mil do Português. [2]. Esses números referem-se aos komencantoj (iniciantes), não necessariamente os que terminam os cursos.


Se toda língua humana carrega uma bagagem cultural e se impõe com base na economia (todos queremos imitar os povos mais adiantados economicamente), qual poderia ser a força do Esperanto? Sem nenhum país a apoiá-lo e nem recursos financeiros, o Esperanto se apresenta como uma proposta de comunicação, mas ligada ao desejo de seu criador: o de um meio de propagação da fraternidade universal.

A origem superior do Esperanto

Se nós, os primeiros defensores do Esperanto, 
somos forçados a evitar qualquer coisa espiritual em nossas atividades, 
seria melhor que rasgássemos e queimássemos 
tudo o que temos escrito para o Esperanto, que desfizéssemos dolorosamente 
o trabalho e o sacrifício de nossas vidas, 
que arremessássemos longe de nós 
a estrela verde que ostentamos em nosso peito para gritar com repugnância: 
"Nada temos a ver com esse Esperanto, que existirá apenas a serviço do comércio e das coisas práticas". (L. L. Zamenhof, citado em [1], p. 31.

Todos conhecemos o apoio dado pelo movimento espírita ao ensino do Esperanto no Brasil. Esse apoio se estabeleceu principalmente com as palavras de Emmanuel [3] em uma mensagem em 1940:
Também o Esperanto, amigos, não vem destruir as línguas utilizadas no mundo para o intercâmbio dos pensamentos. A sua missão é superior, é da união e da fraternidade rumo à unidade universalista. Seus princípios são os da concórdia e seus apóstolos são igualmente companheiros de quantos se sacrificaram pelo ideal divino da solidariedade humana, nessas ou naquelas circunstâncias. A língua auxiliar é um dos mais fortes brados pela fraternidade, que ainda se ouve nesse Planeta empobrecido de valores espirituais, neste instante de isolacionismo, de autarquia, de egoísmo e de nacionalismo adulterado. 
Para compreender a justificativa desse apoio, basta consultar a história do desenvolvimento do idioma. Muito antes de se tornar oftalmologista, Zamenhof apresentou um “proto versão” de sua língua universal em dezembro de 1878 aos seus alunos. A “canção do batizado”, entoada como um hino por eles depois de aprenderem seus fundamentos, dizia:
Caiam, caiam as barreiras hostis entre as pessoas. 
É chegado o tempo! 
Toda Humanidade deve se reunir como uma única família. [1, p. 8].
Mais tarde, quando o Esperanto já se encontrava na forma como o conhecemos presentemente, no primeiro congresso universal de Esperanto de dezembro de 1905 na França com participantes de vinte países, Zamenhof fez um discurso bastante emocionado em que declarou:
...Pela primeira vez na história da humanidade, nós, cidadãos das mais diversas nações, permanecemos lado a lado, não como estrangeiros, nem competidores, mas como irmãos que, compreendendo-se mutuamente sem forçar nosso próprio idioma entre nós, não nos consideramos com suspeição porque a ignorância não nos divide, mas nos amamos uns aos outros; e apertamos nossas mãos, não com a insinceridade de um estrangeiro para com outro, mas de forma sincera, de um humano para com outro humano. Que não haja dúvida sobre a importância deste dia, pois hoje, dentro das fronteiras hospitaleiras de Boulogne-sur-mer, não testemunhamos o encontro de franceses com ingleses, de russos com poloneses, mas de seres humanos com outros seres humanos. Louvado seja este dia, assim como grandes e gloriosos sejam os dias que virão! [1, p. 24]

O caminho futuro do projeto de Zamenhof e sua língua haveria, porém, de colher muitos dissabores. As tensões começaram desde o início, quando Zamenhof pretendeu dar esse “aspecto espiritual” ao Esperanto, o que foi imediatamente interpretado como suspeito por causa de sua origem judaica. De fato, o idioma artificial era apenas uma parte de um projeto maior de Zamenhof para os povos, o que incluía uma nova religião: o Hilelismo. Tendo vivido em um lugar de conflitos raciais constantes, Zamenhof abominava toda e qualquer forma de discriminação, inclusive a de origem religiosa. O Hilelismo se baseava nos seguintes princípios:
  1. Sentimos e acreditamos na existência de uma “força superior” que governa o mundo e que chamamos “Deus”;
  2. Deus escreveu sua lei no coração de cada pessoa, por meio da sua consciência;
  3. A essência de todas as leis dadas por Deus é expressa pela regra áurea: Amar ao seu próximo e fazer aos outros o que gostaria que fosse feito a si mesmo; nunca se envolver com atos que sua voz interna diga estar em desacordo com os desejos de Deus.
  4. Quaisquer outros ensinos que se ouçam de professores ou guias religiosos e que não estejam de acordo com esses três princípios anteriores são construções meramente humanas que podem estar certas ou erradas.
      Zamenhof raciocinava que seria necessário reformar o Judaísmo pelo Hilelismo de forma a abrir aquele para todas as etnias, tal como já se abriram as grandes religiões, o Cristianismo, o Budismo e o Islamismo. 

      Desnecessário dizer que essa motivação religiosa à linguagem se tornou um estorvo: para ateus ela era muito religiosa, para religiosos não-judeus, era muito judaica e, para judeus, constituía uma negação do Judaísmo. Por isso, Zamenhof mudou seu nome para Homaranismo que poderíamos traduzir como “Humani-ismo”, um credo que teria a pessoa humana como elemento central. Os “Homaranistas” seriam membros da “raça humana”, despidos de qualquer diferença étnica, cultural ou religiosa. 

      Colocado dessa forma, é possível entender as palavras de Emmanuel que citamos acima. Movido por um ideal claramente superior, Zamenhof não conseguiu fazer do Homaranismo a religião praticada pelos esperantistas. Entretanto, seu idioma iria se tornar a língua artificial mais querida e aprendida no mundo, em parte por um esforço incansável de seus seguidores igualmente movidos pelo mesmo ideal. 

      Uma língua para um novo contexto internacional?

      O Esperanto foi o único idioma artificial que "pegou" de fato. Porém, na atualidade, as intenções de Zamenhof continuam a aquecer debates, principalmente se mal colocadas por pessoas preconceituosas ou incapazes de entender seus motivos superiores. É fácil misturar esses objetivos com movimentos políticos. 

      Historicamente, porém, foram registradas perseguições a esperantistas em países com os mais variados credos políticos [4]. A existência de pessoas que falam uma língua desconhecida em uma comunidade é terreno fértil para incontáveis teorias de conspiração. E Zamenhof, assim como muitos esperantistas, foram acusados de conspiração.

      Além disso, toda ideia original se torna corrompida quando sofre com supostos adeptos que pretendem torná-la exclusiva e que são incapazes de entender a pureza dos objetivos originais. Frequentemente, esses adeptos mal intencionados se tornam maioria e desviam o movimento completamente. Nesse sentido, a revelação do Esperanto também foi corrompida por atos e condutas divisionistas dentro do movimento original, como resultado da inferioridade do espírito humano. Até aqui, nada de novo.

      Importa, hoje em dia, que nos concentremos nas vantagens que o aprendizado do Esperanto pode ter, porque as “coisas práticas” podem ser decisivas para o sucesso futuro de uma proposta de língua universal efetiva. Alguns pontos recentemente observados na literatura, estão resumidos abaixo:

      • O ensino do Esperanto tem sido descrito na literatura como promotor do aprendizado multilinguístico [4c, 4d]. Ele é, portanto, uma excelente ferramenta de aprendizado de línguas;
      • Soa suspeito dizer que o “Inglês é fácil” depois de se ter investido décadas no seu aprendizado, de se ter consumido milhares de horas ouvindo músicas, filmes e discursos nessa língua. É preciso fazer realmente as contas de quanto países investem de recursos próprios [4a] no aprendizado do Inglês como uma contabilidade necessária de planejamento futuro. Além disso, as distancias linguística entre o Inglês para os idiomas não anglo-saxões tornam seu aprendizado, de fato, difícil.
      • A acusação de “falta de neutralidade” do Esperanto é consequência da opção de ação política de alguns grupos esperantistas, porém, nenhuma língua humana estará isenta da mesma acusação, que também pode se estender a presente língua franca, o Inglês. A recente saída do Reino Unido da Comunidade Europeia reaviva debates sobre o uso do Esperanto como língua dessa comunidade [4a].
      • O uso do Esperanto obedece a um princípio de “justiça linguística” [4b] pela não imposição de uma cultura associada a uma língua. Sua “falta de contexto” – como colocam os críticos – é justamente sua maior vantagem [2b]. Por outro lado, seu contexto é a fraternidade universal que tem com base a justiça, primeiramente a linguística.
      • Considerando tudo isso, também não é verdade que o Esperanto seja uma “língua fácil”. É um idioma com regras simples, mas isso não se traduz em facilidade imediata de aprendizado como muitos esperantistas afirmam. Como ferramenta de comunicação, sua eficiência já está provada. Como mecanismo de propagação da fraternidade universal, até agora, o Esperanto também demonstrou sua relevância [2b].

      Em tese o Esperanto poderia ser usado para promover relações internacionais em um cenário em que uma língua nacional perdesse sua importância por questões econômicas. A imagem mostra o Décimo Congresso Nacional de Esperanto, realizado na Província de Shandong, na China. Para saber mais sobre a curiosa trajetória e interesse dos Chineses pelo Esperanto, consulte [6].

      Conclusão

      Que uma língua só ajuda na administração de um vasto território não há dúvida: basta ver a praticidade de se usar o Português por 200 milhões de habitantes em um gigantesco país como o Brasil, ou o inglês nos Estados Unidos com idêntico território. Não se contesta o benefício de uma língua comum disseminada entre os povos. 

      Porém, preconceitos e hostilidades não desaparecem entre as pessoas pelo fato de adotarem uma língua única. Essas barreiras, entretanto, são reduzidas entre povos se eles passam a se compreender. Um idioma universal é, portanto, um primeiro passo para a concretização da fraternidade universal que exigirá nada menos que a reforma do coração humano. Contribui para essa reforma, antes de tudo, a educação.

      Nesse sentido, é importante considerar que o Esperanto não tem como objetivo substituir qualquer língua. Ele sempre será uma língua auxiliar. Passado tanto tempo do uso do inglês – que cumpre, por enquanto, o papel de língua franca e os objetivos previstos por Zamenhof – a proposta do Esperanto se apresenta num contexto de “justiça linguística” e de ameaças de perda do eixo econômico do mundo, o que enfraqueceria o Inglês (como aconteceu no passado com outros idiomas internacionais). 

      Isso resgata a necessidade de se planejar globalmente o ensino de idiomas, ou seja, é uma atividade a ser feita com base na cooperação entre os povos, o uso de um só idioma. Por outro lado, todos os outros idiomas usados internacionalmente se impuseram com base em poderio econômico ou influência política. 

      De qualquer forma, o Esperanto somente vingará em um ambiente onde a educação seja valorizada. Ou seja, desde que se prevejam todos os recursos típicos de educação de qualidade, onde seja possível estudar um idioma como complemento de sua familia lingvo (língua familiar, como diria Zamenhof), e onde haja boa vontade e prazer em estudar. Nesse sentido a combinação “Esperanto-internet” com todos os recursos de comunicação em plataformas rápidas ainda devem demonstrar seus efeitos. O Duolingo é um exemplo recente do poder da tecnologia no aprendizado de idiomas e poderá popularizar o Esperanto como nunca visto antes. 

      Restará, porém, tornar evidente a mensagem de fraternidade universal imaginada pelo seu criador, que contribuiu para que o sonho do Esperanto como língua universal não se extinguisse. Em um mundo em transição como a Terra, temos certeza que a mensagem de fraternidade imprimida por Zamenhof ao Esperanto se faz completamente necessária e disputará sua importância bem acima de qualquer outra motivação de ordem política ou econômica.

      Referências

      [1] A. Korzhenkov (2009) Zamenhof: the life, works, and ideas of the author of Esperanto. Mondial; Abridged Edition (4 maio 2010).

      [1b] Citado em [1], p. 50.

      [1c] Zamenhof L.-L. Mi estas homo / Komp., koment. A. Korĵenkov. Kaliningrado: Sezonoj, 2006.

      [2] R. Nielsen (2020). Kie estas la Duolinganoj?   https://www.liberafolio.org/2020/03/31/kie-estas-la-duolinganoj/

      [2b] P. Murphy. A Language for Idealists. Princenton Alumni Weekly. Janeiro de 2017.

      [3] “A missão do Esperanto. Mensagem psicografada por Francisco Cândido Xavier na cidade de Pedro Leopoldo (MG), em 19 de janeiro de 1940. Disponível em: https://www.febnet.org.br/blog/geral/estudos/a-missao-do-esperanto/

      [4] Lins, U., & Tonkin, H. (2016). Dangerous language: Esperanto under Hitler and Stalin. London: Palgrave Macmillan.

      [4a] Utri, R., & Warszawski, U. Could Esperanto be the Common Language in TheEuropean Union? Researchgate.net

      [4b] Brosch, C., & Fiedler, S. (2018). Esperanto and Linguistic Justice: An EmpiricalResponse to Sceptics. In Language Policy and Linguistic Justice (pp. 499-536). Springer, Cham.

      [4c] Roehr-Brackin, K., & Tellier, A. (2018). Esperanto as a tool in classroom foreign language learning in England. Language Problems and Language Planning, 42(1), 89-111.

      [4d] Tellier, A. (2012). Esperanto as a starter language for child second-language learners in the primary school. Esperanto UK.

      [5] "China deve se tornar a maior economia do mundo em 2028, diz centro de estudos britânico". Jornal "O Estado de São Paulo". Notícia de 26 de dezembro de 2020.

      [6] Chan, G. (1986). China and the Esperanto movement. The Australian Journal of Chinese Affairs, (15), 1-18.

      Um comentário:

      1. Li recentemente em Memórias de um suicida a apologia do Esperanto como uma língua do futuro. Seu artigo nos mostra que talvez isso esteja ainda por vir, em um futuro não muito distante. Charles Richet dizia que se ele pudesse ser ministro da educação da França, ele aboliria o ensino de outras línguas nas escolas e ensinaria a língua pátria e o esperanto, que se aprenderia em muito menos tempo que qualquer das outras línguas europeias.

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