5 de janeiro de 2020

Comentários a uma tirinha sobre como é ser ateu.


Premissa 1: Há uma distinção entre a crença que se tem na maneira como o mundo é e aquilo que o mundo verdadeiramente é. Mas, em relação a quais temas de crença essa diferença é capaz de mais impactar a vida do indivíduo, observado certo intervalo de tempo?

É perfeitamente possível ter uma crença sobre como o Universo é e existe, mas o Universo em si ser completamente diferente.

Isso implica que, para a vida prática, manter crenças muito diferentes do 'real' com fatos da Natureza, por exemplo, têm pouco ou nenhuma influência sobre o bem-estar e a adaptabilidade do indivíduo que manifesta essa crença. 

É por isso que é possível ser ateu e viver muito bem, ou acreditar que a terra é 'plana' sem que isso tenha qualquer efeito mais grave na vida do indivíduo que crê nisso.

Premissa 2: Em geral se assume que quanto mais próximo do 'real' estiver tudo aquilo que se crê, tanto mais certo estará a vida do indivíduo. Portanto, tanto mais preferível será sua crença (em relação à outra menos real). Entretanto, essa correlação é falsa.

Assim, pessoas usam suas próprias crenças para se distinguirem das outras. Determinados credos políticos - que pouco tem a ver com a vida prática - podem impactar na vida social e separar as pessoas, o que é um grave erro.

O ateu vive muito bem sem acreditar em Deus e o terraplanista igualmente bem sem acreditar na Terra esférica: cada um se acha mais certo do que o outro, porque pensam que suas próprias vidas dão prova da correção de suas crenças. 

A realidade é que não existe tal correlação.

Onde está o problema

O problema aparece quando o indivíduo mantem crenças muito diferentes da 'realidade' em relação aos fatos e coisas que estão perto dele, ou seja dos fatos e coisas que podem em curto prazo prejudicar muito o próprio indivíduo, seu corpo ou sua condição de vida. 

Assim, não convém discordar ou se inconformar com a realidade financeira da vida, ou manter ideias heterodoxas ou pouco confiáveis sobre as motivações reais das pessoas. Isso pode resultar em problemas graves de relacionamento ou em dificuldades financeiras que logo surgem. Da mesma forma, não convém discordar da opinião do médico ou especialista em saúde em se tratando do bem-estar do corpo.

Mas, o maior impacto, sem dúvida, existe quando o indivíduo passa a manter crenças errôneas em relação a ele mesmo. Por exemplo: falha em perceber que poderia ter conseguido um alvo de vida, mas se sentiu incapaz para isso.

Em suma: essa diferença entre realidade e crença pessoal é mais grave com as coisas ou fatos do mundo psicológico, relacionamento pessoal, vida afetiva, profissional etc. Dai a enorme literatura de auto-ajuda, que pretende 'reprogramar' a crença pessoal de acordo com a realidade.

O problema do prazo de verificação das crenças

Por outro lado, qual o impacto de se manter determinadas crenças relaciadas ao mundo espiritual?

É certo que, para a vida prática, desde que ela não impacte a relação entre as crenças sociais e a realidade social, mental e de saúde, pouco ou nenhum efeito será observado. Esse é uma as grandes motivações dos indivíduos anti-religiosos.

Mas é preciso considerar o prazo em que se observa os efeitos.

Pois a manutenção de crenças errôneas pode impactar em diferentes prazos: curto, médio e longo. Alguém que fume moderamente pode não sofrer em poucos meses dos males do tabaco. Lenta mas inexoravelmente esses males virão, mais a frente, quando seu corpo envelhecido não mais conta com os recursos necessários para contrabalançar os efeitos do fumo.

Porém, o reconhecimento disso depende fortemente da própria crença que se tem no mundo. Para o ateu e materialista, não há que se preocupar como o 'longo prazo', pois a vida termina com a morte. É por isso que se vêem tantos ateus e materialistas dedicados à defesa de determinadas crenças políticas, visto que a única sobrevivência futura que entendem é a da própria sociedade que se pensa poder ser melhorada por meio de doutrinas políticas. 

Mas e se não for assim? Uma das razões de existir das religiões é esta: dar ao indivíduo uma crença do mundo espiritual que traga consequências práticas para a sua vida futura.

Houve um tempo no passado em que toda a estrutura da sociedade foi montada com o fim único em garantir a salvação do indivíduo. Tão forte era a crença nessa necessidade que a arte, a ciência e a política se voltavam exclusivamente para esse objetivo de longo prazo.

Entretanto, em matéria de religião há uma multiplicidade muito grande de propostas e, em uma visão 'realista do mundo' (a de que existe uma e apenas uma realidade externa), é impossível que todas estejam corretas ao mesmo tempo.

Em particular é grave erro acreditar que só porque se mantém uma determinada crença em Deus, ele deve obrigações ou benesses de curto prazo ao crente. É quase que um princípio lógico, que pode ser enunciado de forma independente que, existindo Deus, as consequências para a vida do indivíduo não devem depender de sua sorte em acreditar na imagem correta de Deus. Primeiro porque acreditar no  que seria o 'certo' não está equitativamente distribuido nem no espaço, nem no tempo, de forma que seria uma contradição com a própria justiça de Deus.   

Um dos maiores paradoxos para os crentes religiosos é constatar a existência de ateus endurecidos que se deram muito bem na vida. Como pode Deus ser tão bom para eles? Pensam que a vida de delícias do descrente é uma cilada ou antecâmara dos tormentos que o aguardam na vida futura. Mas, na realidade, é a própria ideia que fazem de Deus é que está errada.

É ai que está a maior importância da descoberta de Kardec da comunicabilidade dos Espíritos. Para não espíritas trata-se de uma crença. Mas, na realidade,  Kardec descobriu um caminho de investigação que conduziu a descobertas surpreendentes. Tão surpreendentes que conseguiu unir ateus e cristão rigorosos, os primeiros a exigir 'evidências' sem teoria e os segundos em um grito de blasfêmia.

Uma vez verificada a existência do Espírito e sua possibilidade de comunicação, é possível inspecionar o impacto em longo prazo da manutenção de determinadas crenças, inclusive aquelas sobre o mundo espiritual. E esse é uma das maiores contriuições do Espiritismo, ainda que não reconhecido talvez mesmo entre a maioria dos espíritas.

Nessa investigação, Kardec descobriu que as consequências para a vida futura do homem não dependem da crença que ele mantem na Divindade. Essa correlação, se existir, advem da chance de seus atos serem impactados por tais crenças. 

O destino de felicidade ou não dos humanos depende inteiramente do compromisso que têm para com o bem. Para isso, Deus dotou o homem da capacidade de discernir entre o bem e o mal em um prazo de tempo que não se restringe apenas a uma vida.  

Essas descobertas abrem um mundo completamente novo. Primeiro porque torna cientificamente irrelevante a crença específica em Deus, mesmo porque isso muda conforme as várias existências que o indivíduo tem. É uma marca da consistência interna do Espiritismo com Kardec que seus princípios se reforcem e não se contradigam uns aos outros. 

Depois porque se conclui que, mesmo diferentes, todas as religiões estão corretas ao mesmo tempo. O caminho de vida do agnóstico ou do não religioso pode ser apenas um pouco mais espinhoso do que a do crente. Ao constatar que as consequências para a nossa vida futura dos nossos atos não dependem de nossas crenças, mas dos nossos atos, abre-se um caminho igualitário para todos. As eventuais diferenças estão todas nos aspectos externos da existência, o que inclui nossas crenças. 

A linha de evolução da vida é dupla: há uma que constantemente se renova a cada nova existência e outra que permanece perene além dessa vida. A cada oportunidade, independentemente dos aspectos transitórios (condições materiais, crenças, educação herdada, oportunidades etc), o Espírito tem a chance de se reinventar marcando na linha perene as suas escolhas. Conforme assim procede ele colhe, mais para frente, as consequências. 
Tal deve ser, para ele, a vida futura, quando esta não estiver mais perdida nas nuvens da abstração, mas uma atualidade palpável, completamente necessária da vida presente, uma das fases da vida geral, como os dias são fases da vida corpórea; quando verá o presente reagir sobre o futuro, pela força das coisas, e sobretudo quando compreenderá a reação do futuro sobre o presente : quando, em uma palavra, verá o passado, o presente e o futuro se encadeando por uma inexorável necessidade, como a véspera, o dia e o dia seguinte na vida atual, oh! então as suas ideias mudarão completamente, porque verá, na vida futura, não somente um objetivo, mas um meio; não um efeito distante, mas atual; será então, também, que essa crença exercerá, forçosamente, e por uma consequência muito natural, uma ação preponderante sobre o estado social e a moralização. 
Tal é o ponto de vista sob o qual o Espiritismo nos faz encarar a vida futura. [1]

Referências

[1] A. Kardec. I Parte, "A Vida Futura", Óbras Póstumas. https://obraspostumasak.wordpress.com/a-vida-futura/









Um comentário:

  1. Excelentes reflexões. Eu mesmo, que sou espírita, se alguém me propusesse viver imaginando que o TEMPO TODO estou cercado de seres invisíveis e inteligentes que me sugerem ideias e tentam influenciar meu comportamento, diria a essa pessoa que ele está sofrendo de uma psicose delirante, de uma paranoia ou esquizofrenia, e, no entanto, é assim que é. Não nos vemos num Universo múltiplo, e, no entanto, ele é.

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