2 de setembro de 2016

A questão sobre o magnetismo animal e o nome "magnetismo" I


A maior parte das pessoas frequentemente emprega as mesmas palavras para designar coisas diferentes. As pessoas têm mais intuição do fenômeno da polissemia do que uma compreensão racional imediata dele. Tomemos como exemplo a palavra "amor". Pode-se compor um dicionário inteiro com diferentes significados dessa palavra, claramente polissêmica. E esse fenômeno ocorre em muitos outros idiomas. Porém, no caso de "amor", não parece existir divergências quanto ao seu uso, já que o significado é dado pelo contexto em que a palavra é empregada. O que "amor" realmente significa é tão fácil de ser apreendido pelo contexto que mais informações são desnecessárias. 

Coisa bem diferente ocorre quando a palavra é pouco usada ou está inserida em um contexto pouco usual (por exemplo, científico). Podem então surgir confusões consideráveis. Isso é o que acontece com o significado do termo "magnetismo", principalmente se usado sem cuidado ou na mistura entre Espiritismo e outros assuntos. Alguns comentários elucidativos são abordados neste post.

Origens da palavra

Frequentemente, a multiplicidade de significados está ligado à origem das palavras. No caso de "magnetismo", é importante conhecer sua origem. Segundo a monumental obra de Wittaker (1), 
Os antigos estavam cientes das propriedades curiosas de dois minerais, o âmbar (ηλεκτρον) e o minério de ferro (η λιτθος Μαγητισ). O primeiro, quando atritado, atraia corpos leves; o último tinha o poder de atrair o ferro.
A referência (1) também cita o conhecimento chinês muito antigo da propriedade de atração dos magnetos. Em (2) encontramos indicações sobre a origem da palavra propriamente dita:
Na Grécia, Aristóteles reportou que Tales de Mileto (625 a C - 547 a C) conhecia a pedra-imã, e Onomácrito nos forneceu o mais antigo nome que se refere a ele, o magnetes que evoluiu para magnitis, de onde se deriva o termo moderno magnetita. Sófocles (495 a C - 406 a C) chama a pedra-imã de "rocha Lidiana", enquanto que Platão (427 a C- 347 a C) no "Timeu" a denomina "rocha Heraclitiana". Esses vários nomes sugerem que, na antiguidade Greco-Romana, os primeiros magnetos eram feitos de minérios encontrados em Sípilo, próximo a uma cidade da Ásia menor chamada "Magnesia ad Sipylum". Essa cidade é a origem da palavra "magnetismo" e "magnetita". (grifo meu)
Outra referência à "Magnesia de Sípilo" (atual Manisa na Turquia) pode ser encontrada em (3). Essa mesma fonte diz que o próprio nome Magnesia "deriva da tribo dos magnetes, que imigraram para a região vindos de Magnésia, na Tessália". Para complicar ainda mais, existe uma outra Magnésia próxima a Manisa, chamada "Magnesita de Meandro" (3). 

De qualquer forma, o significado físico de magnetismo é anterior ao que foi dado no Século XIX para o magnetismo animal, o que portanto difere daquele que aparece citado em várias obras de Kardec (6). Ainda segundo (1), William Guilbert (1540-1603): 
...fez a descoberta capital sobre a razão porque magnetos se orientam de forma definida com respeito à Terra; que é, do fato de a Terra ser ela mesma um grande magneto, tendo um dos polos nas latitudes mais ao norte e outro nas mais ao sul. Assim foi a propriedade da bússola descrita pelo mesmo princípio, de que o polo que busca o norte de todo magneto é atraído pelo polo que busca o sul de outro magneto, e é repelido pelo que busca o norte deste último. Gilbert foi além e conjecturou que as forças magnéticas seriam capazes de explicar a gravidade da Terra e o movimento dos planetas.
Ilustração do fenômeno físico de atração magnética causado por um imã que só ocorre com alguns tipos de corpos materiais.
Modernamente, magnetismo é descrito como:
Uma classe de fenômenos físicos que são mediados por campos magnéticos (4); 
Fenômeno associado a campos magnéticos que surge do movimento de cargas elétricas. Esse movimento ocorre de várias formas. Pode ser uma corrente elétrica em um condutor ou uma partícula carregada movendo-se no espaço, ou o movimento de um elétron em um orbital atômico. O magnetismo está associado a partículas elementares tais como o elétron que tem uma propriedade chamada spin. (5)
Entra o conceito de "ação a distância"


A ação do magneto fornece uma imagem viva da atuação do que parece ser uma força invisível, que atua a distância. Se hoje nos maravilhamos com esse fenômeno, não menos assombrados ficaram os antigos. De acordo com (1):
Agora, um dos problemas da filosofia natural era resolver o problema da ação transmitida entre corpos que não estavam em contato um com o outro, tal como aqueles indicados pela ação dos magnetos ou pela conexão entre a posição da lua de um lado e o fluxo das marés de outro. 
Para os antigos gregos, não poderia haver força se não fosse por ação da pressão ou do contato. Logo, deveria haver a intervenção de um meio que causasse o fenômeno. Essa ideia foi incorporada na física de Descartes, que surgiu quase que ao mesmo tempo de Newton e que defendia a existência de uma substância sutil a permear todo o espaço. Essa substância seria responsável pela força de atração e repulsão nos fenômenos do magnetismo (físico), eletricidade e gravitação (1):
Descartes tentou explicar os fenômenos magnéticos por sua teoria dos vórtices. Adotando a sugestão de Gilbert, ele postulou um vórtex de matéria fluídica ao redor de cada magneto, a matéria do vórtex entrava em um polo e saia pelo outro: assumia-se que essa matéria atuava sobre sobre o ferro e o aço em virtude de uma resistência especial ao seu movimento garantida pelas moléculas dessas substâncias. 
Identificamos nos vórtices de Descartes a ideia antiga de um fluido a impregnar todo o espaço, o famoso éter, que foi usado para explicar a ação a distância e a propagação da luz. Entretanto, a teoria dos vórtices de Descartes foi abandonada diante do triunfo de Newton e seus seguidores com a teoria da gravitação, que dispensava qualquer mecanismo tangível responsável por sua força. A teoria de Newton era eminentemente pragmática, sua  proposta representou acima de tudo um rompimento com a filosofia e sua busca por causa mais profundas dos fenômenos. Para os adeptos de Newton, isso não era necessário porque a teoria já permitia medir e calcular tudo o que fosse de fato possível saber sobre o fenômeno (7):
Não fui capaz de descobrir a razão para essas propriedades da gravidade a partir dos fenômenos e não faço hipóteses. Pois, o que quer que não seja dedutível dos fenômenos precisa ser chamado de hipótese; e hipóteses, sejam elas metafísicas ou físicas, baseadas em qualidades ocultas ou mecânicas, não tem lugar na filosofia experimental. Nessa filosofia, proposições particulares são inferidas a partir dos fenômenos e, depois, generalizadas por meio da indução.
A cisão introduzida por Newton perdura até hoje. A maior parte das teorias da física, entretanto, substituiu esse agente  sutil por outros responsáveis pela força.

Ação de um fluido

Ainda que a física Newtoniana tivesse dispensado o uso de uma substância intermediária responsável pela força de ação a distância, seu uso como agente explanativo continuou a ser feito por cientistas por boa parte dos Séculos XVIII e XIX. Isso pode ser lido na diversas referências históricas nos desenvolvimentos das teorias da eletricidade (1):
Um interesse em experimentos elétricos parece ter sido passado por du Fay para outros membros da corte de Luís XV; e, de 1745 em diante, as Memórias da Academia contêm uma série de trabalhos sobre esse tema de autoria de Abbé Jean-Antoine Nollet (1700-1770), que foi nomeado preceptor em Filosofia Natural da família real. Nollet explicou os fenômenos elétricos como devidos ao movimento de duas correntes de fluido 'muito sutis e inflamáveis' em direções opostas, que ele supunha estarem impregnados em todos os corpos em iguais circunstâncias.Quando um corpo do tipo 'elétrico' é excitado por fricção, parte desse fluido escapa de seus poros formando uma corrente efluente. Sua perda é contrabalançada por uma corrente afluente desse mesmo fluido que entra no corpo do outro lado.
Um copo de plástico eletrizado atrai sem contato um filete de água. Esse fenômeno sempre maravilhou os antigos que imaginaram ser a prova da ação de uma substância invisível entre os corpos
A ideia de dois tipos de fluidos elétricos, um 'positivo' e outro 'negativo' deu origem mais tarde à noção de 'corrente elétrica' em experimentos de eletricidade dinâmica. Ela foi usado de forma fértil por grande parte dos "eletricistas" como uma heurística orientadora de experimentos e pesquisas. E, a partir das explicações criadas para a eletricidade estática, algo parecido foi aventado para o magnetismo (1):
A promulgação da teoria do fluido elétrico único na eletricidade, em meados do Século XVIII, naturalmente resultou em tentativas semelhantes com o magnetismo; o que foi efetivado em 1759 por Aepinus, que supos serem os 'polos' dos imãs lugares impregnados de fluido magnético em quantidade excedente ou em falta em relação às condições normais. 
A teoria do fluido magnético foi adotada pelo ilustre físico eletricista francês Charles A. de Coulomb (1736-1806), cujo sobrenome deu origem à unidade de carga elétrica. Para ele, o magnetismo se devia a decomposição de um fluido neutro em dois fluidos magnéticos (1). Na física, o uso de teorias envolvendo tipos diferentes de fluidos magnéticos foi abandonado por volta de 1850, com a descoberta de outros tipos de magnetismo, como o paramagnetismo e o diamagnetismo. Isso deu origem à teorias moleculares para explicar o magnetismo e a necessidade de se ter um fluido magnético foi descartada nas mesmas bases da teoria de Newton.

Corpos celestes que sofrem ação invisível de objetos distantes e que compõem a imagem do Universo em grande escala. Objetos ferrosos que são atraídos por algumas pedras especiais, sob quaisquer condições e mesmo embaixo d'água. Fluidos imponderáveis e invisíveis, supostamente trocados entre outros tipos de objetos após fricção no ar seco. Eletricidade vítrea e ambárica causadas pela emissão de eflúvios sutis. Esse era o "ambiente teórico" da física no final do Século XVIII e que serviu de palco para o surgimento do magnetismo animal, conforme veremos no próximo post.

Referências

(1) Whittaker E (1951). A History of the Theories of Aether and Electricity. "The Classical Theories",vol. 1, London: Thomas Nelson and Sons Ltd.

(2) du Trémolet de Lacheisserie E, Gignoux D & M. Schlenker (2002). Magnetism I, Fundamentals. Dordrecht, NE: Kluwer Academic Publishers Group.



(5) Enciclopédia Britânicahttps://global.britannica.com/science/magnetism

(6) "O Livro dos Espíritos", IV Parte: Das Esperanças e Consolações, "Conclusão". Versão www.ipeak.com.br

(7) Isaac Newton (1726). Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, General Scholium. Third edition, page 943 of I. Bernard Cohen and Anne Whitman's 1999 translation, University of California Press ISBN 0-520-08817-4, 974 pages.